quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

3421) O destino do McGuffin (13.2.2014)



 Estive fazendo uma pequena lista dos finais clássicos para história de aventura (inclusive SF, policial, etc.), onde está em jogo um McGuffin qualquer – uma fórmula secreta, código criptográfico, dinheiro roubado, uma obra de arte rara, etc..  Subentende-se que o herói e um ou mais grupos de bandidos disputam para ver quem fica com o objeto. (“McGuffin” é o termo criado por Alfred Hitchcock para designar esses objetos misteriosos, que têm pouco interesse em si mesmos, mas são alvo de uma disputa de vida-ou-morte que movimenta a narrativa. Um McGuffin clássico: O Falcão Maltês.

Um final típico: o herói fica com o objeto, e o entrega às autoridades (no caso de um McGuffin de interesse nacional).  Ou então: o herói fica com o objeto, e o entrega a uma pessoa que tinha direitos sobre ele (a família do falecido dono, etc.).  Estes são dois happy-ends convencionais.

Uma terceira versão seria: o herói ilude tanto os bandidos quanto as autoridades, e fica com o objeto para si.   Este é um final feliz típico de heróis fora-da-lei: Arsène Lupin (de Maurice Leblanc), O Santo (de Leslie Charteris), etc.  Outra variante: Um dos bandidos apossa-se do objeto, tenta fugir, e é destruído junto com ele.  Usado geralmente como um final moralista, “o-castigo-da-ambição”. Também uma maneira prudente de eliminar um McGuffin (em histórias de FC) que, continuando a existir, traria enormes impasses à verossimilhança da história.

Mais uma: O bandido apossa-se do objeto, mas nesse instante percebe que o objeto não era nada do que se imaginava: era algo maligno, ou com sistema-de-proteção, que destrói quem violar seu segredo (os espíritos que saem da Arca, em Caçadores da Arca Perdida).  Um final clássico e muitas vezes realizado com elegância dramática é aquele onde, na luta para ficar com o objeto, ele escapa das mãos de todos e é destruído ou fica inacessível (o dinheiro espalhado na piscina em Gangsters de Casaca, o ouro espalhado no meio da rua em 7 Homens de Ouro).


Variantes meio catastróficas são aquelas onde alguém (o herói ou bandido) ao se apoderar do objeto percebe que ele não vale mais nada (a fórmula está ilegível, o dinheiro é obsoleto e sem valor, o conteúdo do cofre fora esvaziado há séculos, etc.), ou então casos clássicos em que o bandido apossa-se do objeto e, ao perceber que vai ser alcançado pelo herói, o destrói (“Se não for meu, não será de ninguém!”): Conan Doyle, O Signo dos Quatro.  O McGuffin, conforme teorizado por Hitchcock, é aquele elemento essencial à história, sem o qual a história não aconteceria, mas a história nunca é sobre ele, e sim sobre as pessoas que acreditam nele. 


3420) Isqueiros do Vietnam (12.2.2014)


Os soldados norte-americanos que lutaram no Vietnam criaram todo um folclore próprio em torno de drogas, de música, de episódios de combate, etc.  O saite Juxtapoz (http://bit.ly/1gfD0Ug) faz uma interessante exposição dos isqueiros usados por eles durante a guerra, isqueiros onde eles tinham o hábito de gravar seus nomes e postos, além de imagem, frases, etc.  Hoje esses isqueiros (cujos donos morreram ou voltaram para casa, e cujos objetos pessoais se dispersaram) são procurados por colecionadores de “memorabilia”; arranhados, manchados, amassados, são resíduos humanos de uma situação absurda à qual eles tentavam se adaptar da melhor maneira possível, cada um de acordo com seu temperamento.

Um deles grava em seu isqueiro: “A sucking chest wound is nature’s way of telling you you’ve been ambushed” (“Uma ferida aberta no seu peito é o modo da natureza avisar que você foi emboscado”).  Outro isqueiro diz, numa provocação aos vietnamitas: “Let me win your heart and mind or I’ll burn your god damn hut down” (“Me deixe conquistar seu coração e sua mente, senão eu toco fogo na sua maldita choupana”).  Todo soldado em combate precisa dizer a si mesmo o tempo todo que é durão e que não está com medo, mas poucos serão tão assertivos quanto o que gravou no isqueiro: “Yea though I walk through the valley of the shadow of death I fear no evil for I’m the evilest son of a bitch in the valley”; parodiando o famoso Salmo 23, ele diz: “Embora eu caminhe pelo vale da sombra da morte eu não temerei o mal, porque sou eu o filho-da-puta mais mau que tem no vale.”

Não só as bravatas dos guerreiros, existe também um certo menosprezo pelos pacíficos: “We the unwilling, trained by the unskilled, to do the impossible for the ungrateful ten minutes too late” (“Nós somos os relutantes, treinados pelos despreparados, para fazer o impossível em favor dos ingratos, com um atraso de dez minutos”). Outro afirma: “You have never lived till you’ve almost died for those who fight for it life has a flavor the protected will never know” (“Você nunca viveu se nunca chegou quase a morrer por aqueles que lutam; para eles a vida tem um sabor que os que protegemos nunca conhecerão”).

Frases curtas e definitivas: “Fighter by day, lover by night, drunkard by choice, marine by mistake” (“Guerreiro de dia, amante de noite, bêbado por escolha, fuzileiro por engano”). Ou então: “If I ever look like I give a damn call a dog” (“Se em algum momento parecer que eu me importo, chame um cachorro”). E a nostalgia final de algum californiano anônimo numa praia asiática: “You can surf later” (“Você pode surfar depois”).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

3419) A morte da Rainha (11.2.2014)



(foto: Mike Wells)

Era de madrugada, com uma chuvinha fina, quando bateram com força à minha porta, gritando.  A Rainha estava morrendo, e precisavam de mim. Pulei da cama, enfiei uma roupa às pressas, peguei meus apetrechos e segui o anão uniformizado, com dragonas, capacete e um sabre arrastando no chão.  Ele me acompanhou através do labirinto de becos e ruelas até a ladeira onde, numa casinha de alvenaria modesta, a Rainha estava vivendo após o fim do reino. Ele abriu e segurou para mim o portãozinho do jardim, seguimos a alameda por entre as flores e entramos na casa onde havia luzes acesas e o murmúrio das visitas.

Abriram passagem e eu sentei na borda da cama.  Não a via há duas semanas, e assim que meu olho bateu nela percebi que não duraria mais que algumas horas.  Ela pegou minha mão nas suas, lembrou meu nome, como sempre, contou alguma coisa antiga sobre minha família.  O sacerdote veio, preparou o ritual, arrumou todos em semicírculo. A Rainha apertou minha mão esquerda com força naquela mãozinha esquelética de mulher com mais de cem anos.  Com a mão direita apoiada em minha mesinha portátil, fui escrevendo de uma em uma as Senhas, que o Sacerdote repassava aos presentes, cada qual beijando e guardando a sua entre preces.

Ela lembrou-se de flores e de insetos dos jardins do palácio onde foi menina, falou do seu medo de múmias, reproduziu um gemido de engrenagem de moenda, enumerou famílias, espólios, currículos, recitou versinhos libertinos e resumiu em dez frases uma complexa história de aventuras. A cada trecho ouvido, eu meditava e depois escrevia a Senha, que era rapidamente distribuída; e a cada momento eu percebia na minha mão esquerda a mão dela diminuindo, um galhinho de mato que vai virando um graveto. À medida que ela falava, ia sumindo.  Por duas vezes o Sacerdote aplicou o estetoscópio, e sinalizou para continuarmos. 

Depois de quarenta Senhas ela já não tinha mais de vinte centímetros de altura. A voz era precária mas nítida, e quando ela soava o quarto ficava um túmulo.  Ela ia falando e se esvaindo, como se sacrificasse substância do corpo para que a voz se mantivesse plena. Eu já segurava sua mãozinha entre as pontas do polegar e do indicador, mas a sentia ainda morna, ainda pulsando, e fantasiava que se eu não a estivesse tocando ela já teria sumido.

Morreu antes de sumir; estava do tamanho de um fósforo queimado.  Todos se despediram, prepararam um lanche, aliviados, comeram e foram embora.  Eu e o Sacerdote esvaziamos um porta-jóias, colocamos o restinho dela lá dentro, e quando o dia amanheceu saímos para o jardim e a enterramos junto do relógio de sol.


domingo, 9 de fevereiro de 2014

3418) As estrofes da prosa (9.2.2014)



(Nabokov, O original de Laura)

O último livro deixado (incompleto) por Vladimir Nabokov foi O original de Laura. O livro existia apenas em forma de textos curtos em cartões pautados, essas fichinhas retangulares que a gente encontra em qualquer papelaria, em diferentes tamanhos.  Houve uma polêmica sobre autorização, mas afinal, publicou-se o livro (a edição brasileira é da Alfaguara, tradução de José Rubens Siqueira), com a reprodução de cada cartãozinho manuscrito.

Há escritores que fazem isso atribuindo um número ou sigla para cada episódio da ação, escrevendo-os em cartões e pregando todos na parede, onde é mais fácil brincar com sua ordem cronológica.  Em ambos os casos existe a percepção clara, antes mesmo de começar a escrever, que aquilo é uma unidade em si mesma, algo para ser trabalhado com sua própria sequência de efeitos.  Como acontece com uma estrofe na poesia.

Raymond Chandler também usava cartões, para disciplinar a prosa. Disse ele em 1957: “Eu faço todo o meu trabalho em papel amarelo, folhas cortadas ao meio, datilografadas ao longo do eixo maior, espaço triplo.  Essas páginas devem ter entre 125 e 150 palavras, e são tão curtas que a gente não consegue ser prolixo.  Se não houver alguma substância num trecho desse tamanho, tem alguma coisa errada.”

Chandler talvez pensasse tanto em termos de prosa quanto de enredo, mas mesmo um autor de prosa acelerada e pouco refletida como A. E. Van Vogt costumava dividir suas histórias em blocos de 800 palavras de pura ação; chegado esse limite, era preciso dar uma reviravolta na narrativa.  Van Vogt avisa (no seu ensaio “Complications in the Science Fiction Story”, 1947) que são 800 para ele, mas para outro escritor podem ser seiscentas ou mil. 

Muitos praticantes na FC do século passado tinham essa visão de uma história em blocos. Nenhum a teorizou tão bem como Lester Dent, o criador de Doc Savage, que em 1936 publicou um texto, conhecido como “Master Plot”, que forneceu sua fórmula mágica para histórias em torno de 6 mil palavras (tamanho ideal, achava ele).  Para Dent, a história se dividia em quatro segmentos bem nítidos (que ele explica em detalhe) com 1.500 palavras cada um. Diz ele que depois recebeu 780 cartas de jovens escritores agradecendo-lhe por terem seguido sua fórmula e conseguido vender sua primeira história de pulp fiction. (Sim, tudo isto está na Web.)

Nestes exemplos meio ao acaso dá para perceber que o burilamento do estilo talvez exija unidades bem menores, como as de Nabokov e Chandler, enquanto que a narrativa de pura aventura respira melhor adotando um ritmo de segmentos assim, mais largos, onde ela se desenvolva mais solta.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

3417) O ladrão (8.2.2014)



O ladrão é um personagem clássico das histórias de aventuras.  Meu preferido talvez seja o "Ladrão de Casaca”, Arsène Lupin, criado por Maurice Leblanc, grande sucesso popular da França entre 1905-1935.  Arsène Lupin é o mais intrigante e o mais complexo desses “cambrioleurs” das altas rodas. São indivíduos charmosos e perigosos infiltrando-se entre políticos, nobres e milionários, confrontando todos, travando duelos de morte, aplicando-lhes golpes, e sempre se dando bem. Criptógrafo, boxeador, rei dos efeitos especiais (disfarces e máscaras eram com ele mesmo), Lupin era uma resposta francesa ao inglês Sherlock Holmes, e na obra de Leblanc há mesmo um volume de embates detetivescos entre os dois (sob o nome de Herlock Sholmes, devido a reclamações de Conan Doyle).

Lupin foi o primeiro de uma série de ladrões literários que vivem de roubar diamantes e letras de câmbio valiosíssimas (mas ele não hesita quando tem a chance de levar todos os quadros de um castelo). O Raffles, de E. W. Hornung, era também um desses sedutores jamesbondianos, circulando de black-tie em Mônaco ou cruzando a Sibéria. Uma contribuição norte-americana bem sucedida foi Simon Templar, “o Santo”, criado por Leslie Charteris.  O Santo teve seu próprio pulp magazine (no Brasil, chamava-se Meia Noite); suas aventuras são mais plausíveis (e menos imaginativas) do que as de Lupin.

Ao contrário do guerreiro, cuja função é bater de frente e destruir o outro, o ladrão quer apenas driblar, esquivar-se, ficar sempre um passo adiante da lei, e divertir-se no percurso. Cary Grant no Ladrão de Casaca de Hitchcock (o título brasileiro de To Catch a Thief deve ter sido dado por algum leitor de Lupin) descobre meio surpreso o poder sedutor que o furto e a finta exercem sobre algumas mulheres.  (Praticamente todos os citados até agora foram grandes conquistadores; o inverso de Holmes.) 

Uma variante desse “trickster” são os ladrões hoje popularizados nos videogames onde se atravessam telhados, se acham passagens secretas, se furtam chaves de portões e se tem acesso ao local onde é necessário praticar a façanha. Videogames como Thief (1998-2014, vários títulos) tiram o ladrão dos tempos modernos e o levam para um passado que tem um pé no “Lankhmar” de Fritz Leiber, onde Fafhrd e o Grey Mouser são dois ladrões de capa e espada.  O ladrão cabe em todas as épocas e todas as culturas. Suas aventuras podem ser bélicas ou policiais, sobrenaturais ou criptográficas, mas nelas a violência é uma necessidade do realismo. O objetivo real da história é a antiga arte de entrar onde é proibido, achar o que estava oculto, arrebatar o que era protegido, cuidar do que estava preso.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

3416) As horas de sono (7.2.2014)




(ilustração: Winsor McKay)


Quando eu era pequeno, um dos grandes mistérios do mundo era o que acontecia ao mundo após as 8 da noite.  Essa era a hora em que eu era mandado para a cama. Fui crescendo, o limite foi se ampliando, o mundo foi ficando maior e havia até as noites de festas em que ficávamos todos acordados, a casa toda acesa e cheia de gente, até meia noite ou mais.  

Qualquer pessoa prática dirá que o melhor sono é das dez da noite às seis da manhã. Dormindo-o, devemos acordar com a impulsão de um cavalo de turfe e a energia de um pequinês.  Só que... os que não abrem mão da madrugada não veem problema nenhum em dormir as mesmas oito horas de todo mundo, só que transferindo-as para a faixa das quatro da manhã ao meio-dia.

As indústrias e a eletricidade cortaram o dia em dois.  Antigamente, no tempo das candeias, dos lampiões de azeite, das velas nos castiçais, a noite ocupava quase metade da vida, mas foi sendo retalhada a golpes de incandescência, e hoje, nas grandes cidades, nunca mais existiu a noite intacta, primordial.  O que passa naquele céu é uma noite sonâmbula, insone, esvaída do seu poder em mil filetes de luz. 

Uma pesquisa de Roger Ekirch, professor de História na Virginia Tech (EUA), sugere que no tempo dos nossos trisavós as pessoas não costumavam dormir uma noite ininterrupta.  Dormiam durante três ou quatro horas, depois levantavam, passavam duas ou três horas acordados, e depois deitavam-se para dormir de novo até o amanhecer. 

As referências foram colhidas na literatura, documentos de tribunais,  documentos pessoais, os pequenos registros conservados daquele tempo.  As pessoas falam disso como algo de conhecimento comum e sabido por todos. Um médico inglês escreveu que o melhor momento para estudo e atividades contemplativas era entre o “primeiro sono” e o “segundo sono”.  Chaucer, nos Contos de Canterbury, mostra um personagem indo se deitar para o seu “primeiro sono”. 

E o que faziam nessas horas? pergunta Ekirch no seu livro Day’s Close: Night in Times Past. E responde: o que era de se esperar. Muitos ficavam deitados, às vezes lendo. Outros rezavam; havia preces especiais dedicadas a essa parte do dia.  Outros iam fumar, conversar entre si. 

Esse intervalo era também o momento preferido para o sexo. Outros chegavam a sair para visitar os vizinhos.  Tudo indica que a luz elétrica e a maior segurança foram aumentando a atividade social noturna, e os dois períodos de sono foram misturados em um só.  

Hoje eu vejo pessoas irem dormir cedinho, acordar meia noite, tocar rock até as quatro da manhã, e depois dormir de novo.  Como diria Jessier Quirino, “normal normal normal.”





quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

3415) A Ordem e o Caos (6.2.2014)




As grandes batalhas cósmicas nos romances de Fantasia eram batalhas morais entre o Bem e o Mal.  Variam os sistemas éticos, mas a guerra é essa.  

Aqui, torna-se mais claro um equívoco que muitos moralistas, muitos autores e muitos leitores praticavam, e ainda praticam.  Dizem eles que a luta do Cosmos é para o Bem destruir o Mal.  Está errado.  O Mal faz parte da estrutura atômica e molecular do Bem. Deve se submeter ao Bem, e não a si próprio.  

O Bem não precisa destruir o Mal, aliás nenhum dos dois pode destruir o outro.  Eles têm um equilíbrio como o de cavaleiro e cavalo. O Bem doma o Mal.

Já outras fantasias mostram a batalha entre a Ordem e o Caos. Um trecho do Universo onde exista apenas Ordem (se isso é fisicamente possível!) é um espaço morto, e onde houver apenas Caos, idem idem.  

O mundo é um equilíbrio dinâmico constante entre milhões de sistemas físicos, químicos, biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, etc., interagindo, competindo, cooperando e se influenciando sem parar.  Um sistema estagnado, onde nada acontece, precisa de uma injeção de Caos para voltar à vida.  Um sistema totalmente aleatório, browniano, precisa produzir padrões de estabilidade e de Ordem, para se alimentar deles, captar sua energia, e reinvesti-la de novo.  É assim que as formas físicas crescem.

O Senhor dos Anéis é um misto dos dois. Uma história cheia de discussões morais, claro, onde J. R. R. Tolkien, embora não faça uma alegoria religiosa tão explícita quanto a que seu amigo C. S. Lewis fez na série Crônicas de Narnia, conta uma história de fundo moral. 

Tolkien dá a ela um interessante volteio narrativo: para destruir o símbolo do Mal, é preciso ir de encontro ao Mal, ir à borda do motor ígneo de sua energia, seu núcleo radioativo, a montanha-vulcão de Mordor.  É preciso ir ao coração das trevas. 

Essa luta é também uma luta entre a Ordem e o Caos. De posse do Anel de Poder, Sauron, o Homogêneo, transformará o Universo num “continuum” indiferenciado multidimensional com um buraco-negro no centro. Ele e seu Anel sugarão todo o Poder para esse centro-vórtice onde tudo colapsa em ausência, estendendo atrás de si um manto de entropia exponencialmente maior. 

O Mal é uma monocultura hegemônica. O Bem é feito de pequenas coisas sem objetivos maiores e com necessidades específicas. Hobbits, anões, ents, humanos, elfos, gigantes, cavalos, elefantes, árvores, frutas, as águas dos rios e assim por diante.  

O Bem é a cosmodiversidade. O Mal (Sauron) parece desejar uma Singularidade de pixels cinzentos, parece desejar uma Ordem superior, mas acaba criando o Caos por superconcentração.






quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

3414) O gato fantasma (5.2.2014)




Eu tenho um gato fantasma, que não existe e não está aqui, mas que mesmo assim caminha e se esquiva por entre minhas poltronas, meus livros empilhados no chão, minha cadeira de balanço.  

Às vezes julgo vê-lo como uma mera silhueta esgueirando-se entre uma porta e outra.  Já tirei todas as provas de sua existência para poder ter a certeza que tenho agora.  Ele existe, mas não é um gato desse mundo. 

Uma das experiências cruciais eu a fiz com meus próprios olhos, meio acometidos daquelas manchas escuras internas que dão a impressão de estarem flutuando no ar à nossa frente, só que próximas, desfocadas, boiando na lâmina aquosa do globo ocular, e é por isso que elas se mexem tanto, não como bichinhos que fervilham, mas como borrões flutuantes que os movimentos dos nossos olhos fazem ricochetear sem som de um lado para o outro, batendo, perdendo impulso, como petecas de badminton que são jogadas para longe e cujo voo, mal partiu, desfalece e míngua.  

A experiência consistiu de uma combinação de lâmpadazinha de bolso, espelhos e rebatedores de luz em pontos estratégicos da casa. A luz num certo feixe e num certo ângulo parecia realçá-los, então sempre que eu julgava ver o gato acendia a luzinha e zerava o foco no próprio olho, para ver se havia manchinhas-do-globo-ocular, cujos movimentos eu estava atribuindo a uma assombração.

Não duvido que numerosos casos de fantasmas entrevistos ou pressentidos (seu nome é Legião, porque são muitos) se devam a essas aberrações oftalmológicas, que fazem tal parte de nós que nem temos consciência delas. 

Mas o gato continuou a ser visto de relance: imiscuindo-se para dentro de um armário (que, ao exame, revelou estar sem gato algum); saltando à noite da pia para a geladeira; enrodilhado entre o teclado e o monitor aceso, e sumindo assim que entrei dois passos na sala; desarrumando à sua passagem os vasos de plantas no patiozinho de trás.  

Eu sempre estava perto, mas sempre olhando para outro lado. Quando o pressentia, virava-me, mas me restava somente uma réstia de sua passagem, o lance final de uma ausência que meu olhar descobria.

Como uma sombra sem corpo, ou uma linha negra solta no ar desenhando um gato, ou um fotograma borrado de um movimento de luz que a gente julga ver num aposento vazio.  

Nunca me derrubou um jarro, nunca me rasgou um livro, nunca fez porcarias pela casa afora, nunca morreu como os outros. Vive solto aqui na casa e não solto em lugar nenhum, e todos os dias me presenteia com fugas e esquivas e saltos de cavalo sobre o tabuleiro e teleportes instantâneos, por todos os lugares onde um gato de verdade passaria e onde nada passa mais.





terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

3413) Bowie e Burroughs (4.2.2014)





(foto: Terry O'Neill)


Em 1974, a revista Rolling Stone publicou um bate-papo entre o roqueiro David Bowie e o escritor William Burroughs, ocorrido no ano anterior, através do repórter Craig Copetas.  

Bowie estava no primeiro auge de sua carreira (que teve vários), após o lançamento do álbum Ziggy Stardust; Burroughs, já famoso por livros como Naked Lunch e Nova Express, estava superando uma das suas muitas fases de pindaíba, bebendo muito, escrevendo pouco. 

Os dois se conheciam mais de fama do que de obra. Bowie tinha lido Nova Express, Burroughs conhecia duas canções do outro (“Five Years”, “Starman”) mas tinha lido todas as suas letras. (A entrevista completa aqui, em português: http://bit.ly/1b88FE0, e no original: http://bit.ly/1lmyolJ). 

Bowie disse: 

Nova Express me fez lembrar de Ziggy Stardust, que pretendo transformar numa performance teatral. São 40 cenas, e seria legal que os atores aprendem todas elas de modo a que a gente pudesse misturá-las num chapéu, à tarde, e determinar a ordem em que seriam encenadas à noite. Peguei essa idéia de você, Bill... a de que tudo poderia ser diferente a cada noite.” 

Burroughs foi um defensor de numerosas técnicas para fazer o acaso interferir na criação e/ou apresentação de uma obra de arte, inclusive na literatura.

Falando do aspecto ficção científica do show, Bowie comentou a dificuldade de conseguir efeitos especiais para reproduzir um “buraco negro” no palco, e Burroughs comentou: 

“Sim, um buraco negro no palco daria uma despesa astronômica. E seria uma performance contínua, engolindo primeiro Shaftesbury Avenue, e depois o resto.”  

A FC e a arte de vanguarda eram dois territórios em comum entre artistas tão diferentes; foram também as interfaces que depois levaram Burroughs a trabalhar junto com roqueiras como Patti Smith e Laurie Anderson.

Bowie comentou, sobre novas mídias de então: 

“A próxima coisa é o videotape, e depois serão os hologramas. Nesse ínterim, vão ser criadas bibliotecas inteiras de videocassetes. Você não consegue gravar tudo que passa de interessante na sua TV. Eu quero poder escolher minha própria programação. É preciso criar software para isso. (...) A mídia ou é nossa salvação ou nossa morte. Prefiro achar que é salvação.”

Essa “terra de todos” que envolve rock/jazz, FC, arte de vanguarda, novas mídias e novas tecnologias é a origem de algumas das coisas mais interessantes que temos hoje. 

Pessoas como Burroughs e Bowie estavam no início desse processo, e a presença ubíqua de ambos na Web é uma mostra dessa afinidade de espírito.  Ele reúne o lado mais intelectualmente inquieto do rock, o lado mais lúdico da vanguarda e o lado mais aqui-e-agora da FC.


domingo, 2 de fevereiro de 2014

3412) O trabalho de editar (2.2.2014)



(Ilustração: Mario Bag)

Um jovem autor teve seu primeiro livro recusado por uma grande editora, e veio se queixar: “Editores são mercenários, só querem publicar coisas medíocres que vendem muito, como Paulo Coelho ou 50 Tons de Cinza. Eles boicotam o autor novo.  O governo deveria obrigar as editoras a publicar os novos autores, porque é uma questão de interesse social, de promoção da cultura.”

Tudo errado, e vou dizer por que.  Editores não são necessariamente mercenários, embora muitos sejam, assim como escritores não são necessariamente beberrões, embora muitos sejam. Todo editor gosta de publicar coisas que vendem muito – porque vendem muito, não porque são (ou deixam de ser) medíocres. Alguns dos maiores best-sellers que já passaram pelas livrarias brasileiras foram assinados por Umberto Eco, Rubem Fonseca, Milorad Pavic (Dicionário Khazar).  Mas se eu fosse editor, gostaria dos medíocres que vendessem bem, porque isso me possibilitaria publicar os autores que vendem pouco (ou seja, a imensa maioria do total).

O governo não tem o direito de obrigar editores a publicar autores individuais. No máximo, o governo pode criar políticas de compras (para bibliotecas, escolas, etc.) direcionadas para determinado tipo de literatura, e com isto estimular a publicação de livros com esse perfil.

O que os autores jovens não entendem é que nenhuma editora é obrigada a publicá-los.  Eles acham que é uma obrigação constitucional, e não é.  É um acordo entre dois parceiros (editor e autor) para colocar um produto no mercado; se o produto é também uma obra de arte, o futuro dirá. (Todo autor acha que o livro que escreveu é uma obra de arte.) Não existe teste químico para decidir se um texto é obra de arte ou não.  É a sociedade quem responde, e dá respostas diferentes com o passar do tempo.  Se um editor não confia no livro a ponto de apostar nele seu dinheirinho, a solução é o autor ir bater noutra porta.

Uma editora é um empreendimento industrial/comercial. Se eu mandasse no mundo, todo pretendente a escritor passaria 6 meses de estágio numa editora, trabalhando ao longo de todo o processo de produção de livros: avaliação de originais, tradução, revisão, editoração, diagramação, impressão, empacotamento, distribuição, publicidade...  Quando ele fizesse isso, ia ver que: 1) imprimir 2 mil exemplares de um livro é uma coisa muitíssimo trabalhosa e cara; 2) só vale a pena fazer isso se o livro valer a pena para alguém, senão é um desperdício de dinheiro e de tempo de vida dos funcionários. Para não falar no tempo de vida do próprio escritor de banalidades.