quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

2446) O bandido João Branco (6.1.2011)



(Roy Barcroft, ou, no Nordeste, "João Branco")

Eu confesso que não tenho lembranças dele, mas muitos amigos meus recordam que Roy Barcroft era o indefectível vilão em mil faroestes em preto-e-branco das décadas de 1940 e 1950. Durão, mal-encarado, com voz intimidante, (apesar de na vida real ser, ao que se diz, um sujeito afável e brincalhão), Barcroft era o eterno fora-da-lei dando trabalho a mocinhos como Wild Bill Elliott ou Rocky Lane.

Ora, aqui no Nordeste surgiu, não se sabe como, a mania de dar aos personagens genéricos de Barcroft o nome de “João Branco”. Garotos de muitas cidades nordestinas sempre se referiam desse modo a ele quando contavam uns para os outros o filme que tinham visto na matinê da véspera: “Aí o artista entrou na caverna e quando viu apareceu João Branco com mais uns cinco bandidos, aí teve a maior briga, eles amarraram o artista em cima da linha do trem...”

Por que João Branco? Segundo Homero Fonseca, autor do romance “Roliúde” (a história do matuto que vive de contar filmes de Hollywood de cidade em cidade), os garotos de sua geração misturaram a figura de Roy Barcroft com o nome do autor das legendas em português dos filmes da época. E de fato eu me lembro que a maior parte dos filmes que eu via quando garoto se encerravam, na hora do “The End”, com uma derradeira legenda dizendo: “Legendas de João Branco”. (Anos depois, esta referência seria substituída por: “Tradução: S. da Rocha Spiegel”. Hoje, na TV a cabo, aparece: “Tradução: Drei Marc”). Por caminhos ínvios, o nome do tradutor foi associado, na imaginação dos pirralhos, à imagem do bandido.

Homero está tentando localizar quem foi de fato João Branco, que se ainda for vivo deve ter mais de 90 anos; e em que cidades essa relação entre seu nome e a figura de Roy Barcroft se estabeleceu. Isto é uma pesquisa curiosa porque o imaginário do faroeste norte-americano influenciou muitas gerações de garotos, desde os fãs de “Apolônio Cassíde” até os de Clint Eastwood.

Há pelo menos mais duas histórias curiosas misturando Nordeste e Faroeste. Não sei se muita gente fora dos limites de Campina Grande sabe que um dos grandes goleiros da Paraíba na década de 1950 foi o famoso Arricarêi, do Treze, e que este foi assim batizado por sua semelhança com Harry Carey, o grande ator de westerns dos anos 1920 e 1930. Um dos companheiros de infância e de peladas de Arricarêi era um neguinho chamado Zé Gomes, que, assim como o amigo, adotou para si um nome de cowboy, Jack Perry. Com o passar do tempo acabou ficando conhecido apenas como Jack, e depois que se tornou músico um diretor de rádio o batizou em definitivo como Jackson, e mais que isto: Jackson do Pandeiro.

Que pena não podermos perguntar a Arricarêi e a Jackson se eles alcançaram essa época em que o bandido era chamado de João Branco independentemente de seu nome em inglês. Seria um capítulo a mais na história do roliudismo que impregnou sucessivas gerações de garotos no brejo, sertão, cariri e agreste.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

2445) O colaborador de conteúdo (5.1.2011)



Abril de 2019 começou bem. Meus pais me convidaram para um almoço celebrando meu novo emprego. Achei ótimo, a não ser pelo fato de que chamaram meu avô, que não me dá força de jeito nenhum. No meio do almoço, Mamãe ergueu o suco de laranja dela e disse: “Vamos brindar, gente. Ao trabalho de Betinho, e muita realização profissional para ele!” Papai ergueu a cerveja: “E dinheiro, para ele repor o que a gente gasta há vinte anos”. Mamãe replicou: “Que coisa, Alberto, pra se dizer a um filho”. Vovô, que não bebe, ergueu um pedaço de carne espetado no garfo e tocou com ele no copo de meu pai, sem dizer nada. Ele não fala com minha mãe. “E você, meu filho?”, perguntou ela, “não vai brindar?” Eu ergui minha cerveja, fiz um gesto curto em semicírculo abrangendo a todos. “Do que se trata, afinal?” perguntou Papai.

Expliquei que eu agora era colaborador de conteúdo. O Space Booth já era a maior rede de relacionamento do mundo: quatro bilhões de usuários no planeta, 250 milhões só no Brasil. Estar ali era poder ser amigo de qualquer celebridade da música, do cinema, da TV. Havia até um novo setor, o da Política Radical, que estava fazendo muito sucesso. Vovô se manifestou: “Não são políticos radicais, são terroristas.” Tentei explicar que o conceito de terrorismo é subjetivo, afinal Tiradentes foi considerado terrorista, mas Vovô não deixa ninguém falar. Fez um discurso dizendo que no tempo dele terrorista não vendia autógrafo pela Internet e primeira-ministra do Irã não distribuía calcinhas com os eleitores. Na verdade, no tempo dele o Irã nem tinha mulher na política.

Mamãe pediu licença (ela fala e Vovô se cala pra não lhe responder, toda vez é assim) e peruntou o que era colaborador de conteúdo. Expliquei que eu tinha que fazer posts o dia inteiro, de tudo que me agradasse: músicas, filmes, vídeos, roupas... Cada post dando uma dica contava pontos. Quando eu acumulava pontos suficientes, tinha direito a brindes, viagens, Vale Lazer, Vale Barato, etc. Papai me interrompeu: “Sim, mas, e salário?” Papai é tão antiquado quanto Vovô, é do tempo de salário. Expliquei que na economia moderna a pessoa presta serviços e recebe produtos, e o dinheiro, mero intermediário, tende a desaparecer. Minhas refeições eram oriundas de meus posts sobre lanchonetes. Roupas, objetos pessoais, tudo tinha origem semelhante. Cem posts sobre música davam direito a um boné, e assim por diante. “Ah meu Deus, demora uma vida”, suspirou Mamãe, e eu disse que não, durante uma tarde normal eu fazia mais de 500 posts. E minha pontuação-de-perfil era repassada para meu Cartão de Crédito, me dando abatimento nas despesas relativas aos temas que eu postava. Vovô me chamou de vagabundo e lacaio do capitalismo; aí eu joguei meu trunfo: “Qué isso, Vovô, não banque o moralista, eu dei um comando de busca e vi que você já teve 3 mil amigos no Facebook”. Ele soltou um palavrão e saiu da sala. Toda vez é assim.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

2444) Uma noite em 67 (4.1.2011)



Assisti finalmente o documentário Uma Noite em 67 de Renato Terra e Ricardo Calil, que reconstitui a noite da grande final do Festival da Música Brasileira da TV Record. Misturando material de arquivo e entrevistas atuais, o filme pede aos artistas vencedores e derrotados, além de críticos e organizadores, que relembrem e comentem aquela época. Fazer filme assim é um dos muitos ovos-de-Colombo à disposição de documentaristas. O material de arquivo é farto (pelo que eu soube, tudo pertence á TV Record, então basta consultar um único arquivo em ver de fazer uma via-crucis de dezenas deles). Os entrevistados estão todos aí, acessíveis. E se o fato enfocado for de fato interessante, é só editar bem o material e correr pro abraço.

O Festival de 67 foi chamado o “festival da virada”, acho que porque marcou o surgimento do Tropicalismo como uma força musical, ainda meio sem forma e sem manifesto, uma espécie de dissidência pop da MPB. Isto ficou bem claro na premiação final. O primeiro e o terceiro prêmios foram para duas revelações da MPB tradicional, Edu Lobo (campeão com “Ponteio”, em parceria com Capinam) e Chico Buarque (“Roda Viva”). Ambos tinham ganho festivais recentemente (Edu com “Arrastão”, Chico com “A Banda”), então apesar de jovens já podiam ser considerados concorrentes pesos-pesados. O 2º. e o 4º. lugares foram para os tropicalistas: Gilberto Gil com “Domingo no Parque” e Caetano Veloso com “Alegria, Alegria”. Ficou explícito então o racha entre a música que recorria a fontes brasileiras tradicionais, principalmente o samba e outros ritmos regionais, e a música que assimilava influência do rock, da música pop internacional e de outras formas de linguagem (quadrinhos, cinema, etc.).

O filme é uma ótima Sessão Nostalgia para os que, como eu, acompanharam aquele festival pela TV, torcendo muito e sem saber direito por quem torcer. A rejeição ao Tropicalismo foi muito forte em alguns setores. Eu mesmo durante algum tempo martelei na tecla de que eles imitavam demais os Beatles, só depois reconheci o quanto havia ali de talento e originalidade. A oposição entre violão e guitarra era uma falsa oposição, uma metonímia mal colocada em que para rejeitar o todo (a invasão do lixo musical norte-americano) era preciso rejeitar uma parte (o uso de um instrumento elétrico).

Hoje já se sabe que o Tropicalismo venceu, e que sua vitória não eliminou o samba, a música rural, a canção regional e acústica. O estilo Tropicalista de se apresentar (guitarra, roupas exóticas, atitudes performáticas, modelos americanizados) virou um novo padrão. Algo parecido ocorreu com o tropicalíssimo programa de Chacrinha, que era transgressivo em seu tempo e hoje virou uma nova norma, sendo diluído e palidamente copiado por Faustão, Luciano Huck e todos os demais. Um padrão foi substituído por outro. O Sistema que assimila tudo assimilou o Tropicalismo, e os verdadeiros tropicalistas foram fazer outra coisa.

domingo, 2 de janeiro de 2011

2443) "Drummond: Esperteza" (2.1.2011)



Já falei nesta coluna (“Drummond: Poemas Natalinos”) sobre o “olho esperto” que o Modernismo jogou dentro da poesia brasileira. O termo é bem atual, bem 2010. É um olho rock-and-roll, um olho hip-hop, um olho típico de uma geração jovem e escolada, se bem que não na escola. É um olho “street-wise”, com a sabedoria das ruas; um olho malandro. Um jeito desabusado de ser, irreverente, levemente desonesto, ou pelo menos capaz de pequenas contravenções e de mentiras táticas. Não necessariamente um olho mau-caráter. Chega a sê-lo em alguns casos, e o uso insistente deste adjetivo na cultura urbana carioca o deixou contaminado de mau-caratismo aos olhos de muita gente. Quando em algum lugar do Brasil se quer menosprezar com acidez a desonestidade de alguém, é ao sotaque carioca que se recorre como exemplo: “Fulano é muito metido a ichpiérto...”

A esperteza é uma forma de inteligência em pequena escala e com objetivos imediatos, a curtíssimo prazo. Beira a desonestidade porque não está vinculada a valores eternos ou princípios morais, e sim à simples e imediata esgrima de vontades e de inteligências. Fulano quer isto, Sicrano quer aquilo, e o mais esperto é o que consegue o que quer, em detrimento do outro. A esperteza sempre se dá num contexto de disputa, de competição, de jogo, de confronto entre A e B. Sabedoria é outro papo.

No livro Alguma Poesia (que completou 80 anos), Carlos Drummond já vê de modo presciente a instauração deste valor no embate amoroso. O romantismo literário não prevê esperteza; prevê valores absolutos como a paixão, a devoção, o ciúme, a solidão, etc. Esperteza? Invenção modernista. Como a do poema “Esperteza” de Drummond, que diz: “Tenho vontade de / — ponhamos amar / por esporte uma loura / o espaço de um dia.” Vejam mesmo que heresia; no século 19 este poema iria para fogueira, por reduzir o amor a um esporte, e pressupor que esse amor de veneta duraria um dia apenas.

Depois continua: “Certo me tornaria / brinquedo nas suas mãos. / Apanharia, sorriria / mas acabado o jogo / não seria mais joguete, / seria eu mesmo.” Jogo, brinquedo: o poeta considera a possibilidade de ver o amor como algo leve, sem compromisso. Algo fugaz e sem sequelas. Um amor que não traria grande abalos para a vida do amante, nem durante nem depois. Serviria no máximo para o propósito egoísta de deixá-lo mais senhor de si, de suas próprias forças. Um amor século 20. Um amor de cinema americano. (A “loura” sonhada dessa forma está mais para Jean Harlow do que para as ninfas pré-rafaelitas). E o poeta conclui: “E ela ficaria espantada / de ver um homem esperto”.

Será impressão minha, ou este poema de 1930 é um esboço do argumento de Acossado de Godard, além de tantos outros filmes em que um homem esperto pega uma loura, extrai dela o que lhe interessa (prazer, lazer, dinheiro) e depois se vai, assobiando uma canção pop? Se o século 20 foi o Século da Esperteza, Drummond o percebeu desde cedo.

sábado, 1 de janeiro de 2011

2442) Resoluções de Ano Novo (1.1.2011)




Respirar a fumaça do Vesúvio. 

Escutar o cabelo crescendo de novo. 

Anotar o momento em que o número de folhas na árvore da casa em frente for igual ao número de caracteres do artigo que estou escrevendo. 

Fotografar simultaneamente trinta chaminés na perpendicular. 

Levar uma bolha de sabão de João Pessoa até Campina. 

Aprender a chover e a colorir na primeira pessoa. 

Fazer a difícil opção entre envelhecer e virar vampiro. 

Desvendar um mistério, descantar uma música, desescrever um livro. 

Visitar em sequência sete cidades cujas iniciais são as letras do meu nome. 

Lembrar tudo que aconteceu em volta quando eu estava dormindo. 

Descobrir uma galáxia nova e guardá-la só para mim. 

Falar de corda em casa de enforcador. 

Desenhar um teclado numa cartolina e botar o povo pra dançar uma noite inteira. 

Fazer um gol de pênalti de cabeça. 

Criar uma espécie de partitura para som de pneu de carro. 

Passar vergonha na cara e esperar que seque. 

Ensinar um macaco a ler, um peixe a escrever, um teimoso a pensar. 

Fazer faxina nos advérbios e desempacotar preposições que ainda não foram usadas. 

Monitorar o espelho à espera do terrível sinal. 

Conseguir plagiar tão bem que o plagiado elogie minha originalidade. 

Ler sem ouvir minha voz repetindo baixinho o que é lido. 

Aprender a tocar cavaquinho, pandeiro e tantã – ao mesmo tempo. 

Atravessar uma rua do outro lado para o outro lado. 

Fazer uma cirurgia telepática para tirar a catarata do meu terceiro olho. 

Trancar a gaveta e jogar a chave dentro. 

Escrever como se a linha fosse uma corda-bamba solta no ar. 

Assistir um filme no Capitólio, outro no Babilônia, outro no Avenida e outro no São José. 

Inventar um sacarrolhas reto. 

Arrumar o primeiro, o segundo, o terceiro, e deixar para arrumar o quarto no ano que vem. 

Carambolar o ricochete quântico de duas ondas sem colapsar os cordéis de ambas em incontáveis quarks supérfluos. 

Amar sem orgulho e odiar sem preconceito. 

Criar um banco randômico de sílabas e um programa anti-entrópico que as faça formar frases ao longo dos dias. 

Misturar três vinhos numa taça e identificar cada gole. 

Tentar não esconder meus descuidos por trás dos meus excessos de cuidados. 

Fazer uma correntinha de clips unindo Brasília e Praga. 

Adotar um mineral de estimação e cuidar dele todos os dias. 

Autografar mil pedaços de papel para vendê-los quando ficar rico e famoso. 

Abrir livros no escuro até encontrar um que tenha luz própria. 

Respirar fundo e deslizar tobogã acima. 

Trocar meia dúzia de realidades fabricadas por uma ilusão verdadeira. 

Conseguir ler um jornal sem ficar procurando meu nome. 

Poder guardar na minha sala de visita todas as minhas cabeças de gado, todas as minhas sesmarias, todos os meus canaviais. 

Me preparar para o restante deste século com o auxílio de um dicionário chinês-árabe, árabe-chinês. 

Escrever alguma coisa que possa relida em 2110. 

Marcar um encontro em Samarra e não comparecer.











sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2441) O pequeno e o muito (31.12.2010)




Escrever é, em muitos casos, jogar no papel tudo que a gente pensa, e deixar fermentando. Chega um ponto em que basta a gente olhar de novo e muitas frases parecem estar implorando para ser cortadas. Já cumpriram sua função. Ficaram ali do lado, contaminando as frases com que se misturaram, impregnando-as de si mesmas; e agora podem sair. Caneta nelas! 

Isso ocorre muito com adjetivos. A gente enche uma frase de adjetivos com a intenção de fazer o leitor entender o que a gente está pensando. “O cavaleiro, altivo e imponente, desmontou do seu corcel suado e arquejante, e encaminhou-se vagarosamente para o portão fechado, no qual desferiu pancadas surdas e profundas que ecoaram nos corredores do misterioso castelo”. 

Beleza! Está dito tudo. Dito principalmente para nós, que na primeira passada da escrita precisamos ter essa cena, com todas as suas ressonâncias, bem nítida na imaginação. 

Pegando a página dias depois, não precisamos mais daquele nhenhenhém. Já sabemos. Basta dizer: “O cavaleiro desmontou e foi até o portão do castelo, no qual bateu com o punho cerrado”. A imponência do cavaleiro, o arquejo do cavalo, a sonoridade das batidas e o mistério do castelo devem estar subentendidos pelo conjunto da narrativa. Cada adjetivo é como um crachá a mais pendurado no peito de um substantivo. Economizemo-los!

Em suas anotações de diretor (Notas Sobre o Cinematógrafo) Robert Bresson dizia: 

“Duas simplicidades. A má: a simplicidade ponto-de-partida, buscada antes de tudo o mais. A boa: simplicidade-resultado, recompensa de anos de esforços”. 

A simplicidade deve vir desse desbastamento, mas ele só tem sentido se num primeiro momento a gente despejar tudo. É preciso, é indispensável escrever (nesse primeiro momento) tudo que a gente está pensando, porque a gente sempre tem medo de que alguma coisa pensada se perca. Melhor botar tudo e esperar para ver o que fica, o que se resseca e cai sozinho, e o que precisa apenas de um pequeno toque para virar poeira.

É por isso que reescrever é mais prazeroso do que escrever. Para escrever, a gente tem que transformar em palavras os impulsos sem forma que tomam conta da nossa mente. Achar a palavra certa é um sacrifício; mas cortar palavras erradas é um prazer cruel. 

Não preciso de você. Nem de você, nem de você. Já está tudo dito. Sai, sai, sai, cai fora, e você também. Já sei o que eu quero dizer. 

No primeiro momento, escrever é um trabalho aditivo, de produzir formas (verbais). No segundo é um trabalho subtrativo, como a escultura: tirar o que é supérfluo, deixando o essencial.

Paul McCartney dizia no filme Let It Be: “Eu pego uma ideia bem simples e vou complicando, complicando muito. Quando ela está muito complicada, eu passo a simplificar”. 

Um PhD. em literatura não definiria melhor esse processo de adições e subtrações, de filmagens e montagens. A criação começa pelo barroco e se encerra pelo minimalismo.





quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2440) "O novo regionalismo" (30.12.2010)



(Árido Movie)

Fala-se numa crise do regionalismo literário nordestino, como se nas últimas décadas não tivesse aparecido nenhum autor capaz de se comparar com José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz etc. A principal razão para isto é a de sempre: não aparece ninguém parecido porque todo mundo quer escrever parecido com eles, e eles não estavam querendo escrever como ninguém. Isto me lembra a frase de Robert Bresson: “Fulano quer imitar Napoleão e se esquece de que Napoleão não imitava ninguém”.

Um dos problemas do regionalismo literário é tentar obedecer em 2010 a uma temática e uma maneira de escrever que se consolidaram por volta de 1930 ou 1940. O maior símbolo disso é a presença recorrente, ainda hoje, dos “beatos e cangaceiros” como os dois grandes fenômenos de massa do Nordeste. Ora, hoje não existem mais beatos e cangaceiros: existem evangélicos e traficantes de drogas. Esta é a realidade do Nordeste de hoje. Essa mudança histórica não invalida a qualidade de, por exemplo, um filme regionalista como Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas para se saber do Nordeste de hoje é melhor assistir Árido Movie de Lírio Ferreira, que fala numa seita mística baseada na adoração da água e numa fazenda que substituiu o plantio do algodão pelo da maconha. É mais parecido com hoje-em-dia.

O Nordeste de hoje é isto. O que Graciliano & Cia. escreveram continua valendo como documento histórico e como obra literária de valor permanente, mas para fazer um livro sobre retirantes famintos à altura de Vidas Secas precisa ser mais escritor do que Graciliano foi, porque a comparação é hoje inevitável. Por outro lado, o primeiro sujeito talentoso que escrever um grande romance sobre a praga do crack na Zona da Mata não vai ter concorrentes ilustres com quem ser comparado, porque esse romance não existe.

Um caminho interessante que se abre para o regionalismo nordestino é a exploração de elementos místicos e futuristas, recriando um Nordeste diferente dos clichês habituais. Vejo isto em livros como Pequenas Catástrofes do potiguar Pablo Capistrano, da releitura bíblica de W. J. Solha em Relato de Prócula, do visionarismo futurista do cearense Carlos Emílio Corrêa Lima em Ofos e muitos outros que certamente não conheço. O Nordeste de hoje conserva elementos do Nordeste de Zé Lins, Rachel & Cia., mas superpostos a eles estão novos elementos temáticos que só muito lentamente estão sendo incorporados.

Por que? Acho que é porque o escritor nordestino (a começar por mim mesmo) não conhece o Nordeste. Vive num apartamento, indo de carro para o trabalho, fazendo compras no shopping e de noite lendo romances regionalistas de 50 anos atrás. Conhece o Nordeste através dos livros, e não das BRs. Se pegasse uma mochila e passasse seis meses viajando de ônibus pelo interior, se hospedando em dormitórios e comendo prato-feito, voltaria para cada com doze romances prontos para serem escritos.

2439) "O Ulisses alemão" (29.12.2010)



Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Doblin, o romance escolhido pelo escritor Joshua Cohen para ser o equivalente alemão do Ulisses de Joyce, tem seu nome mais conhecido, hoje, por causa do filme dirigido em 1980 por R. W. Fassbinder, um épico com 14 horas de duração feito para a TV mas também exibido em alguns cinemas. A TV Educativa (RJ) o exibiu em fins de semana consecutivos anos na década de 1980, quando tive a chance de ver um ou dois episódios. Sobre o romance de Doblin, Cohen faz este comentário: “Uma narrativa épica e infatigável sobre o ‘demimonde’ berlinense. Recheado de assassinatos, prostitutas, e o assassinato de uma prostituta. Franz Biberkopf, um sujeito de pouca inteligência, é libertado da cadeia para viver na prisão maior que é a República de Weimar. Doblin foi jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra Mundial. Ele germanizou o olho e o ouvido panorâmicos que James Joyce tinha para captar a gíria das ruas, e ao fazê-lo criou um das melhores romances de decadência do seu século”.

Doblin foi uma figura curiosa nas letras alemãs, porque a sua primeira obra de peso foi um romance ambientado na China do século 18, Os Três Saltos de Wang Lun (1915). Em seguida ele se juntou ao grupo expressionista que agia em torno da revista Der Sturm, onde publicou numerosas histórias, mas logo afastou-se deles para seguir uma linha literária mais personalista, da qual Berlin Alexanderplatz é o melhor exemplo. O nazismo o forçou a emigrar da Alemanha para a França em 1936, e nesse período ele publicou sua trilogia amazônica, ambientada na América do Sul: A Terra sem Morte, O Tigre Azul e A Nova Jângal. Com a invasão nazista ficou algum tempo num campo de refugiados na França, até emigrar para os Estados Unidos, de onde voltaria para a Europa após o fim da guerra.

Numa antologia do conto expressionista alemão, Malcolm Green comenta: “A vida de Doblin exibiu um movimento pendular entre polos opostos: quando jovem psiquiatra, ele aspirava à sobriedade e à razão, mas apanhado pelo caos da vida começou a desenvolver um ponto de vista anti-racionalista. O socialista e ‘grande inquisidor do ateísmo’ dos anos 1920 sucumbiu a um misticismo natural que conduziu a sua conversão ao catolicismo quando no exílio, em 1941”. Seu grande épico berlinense é, de suas obras, a mais conhecida, e talvez a que melhor exprime o país em que nasceu.

Berlim é decerto uma das cidades-entroncamento da história européia no século 20. Mesmo antes de se transformar no símbolo da Guerra Fria após a II Guerra Mundial, a cidade foi nos anos 1920 um bazar de decadência social, caos econômico, criatividade artística e fervura política. O movimento Expressionista, por um lado, no cinema e na literatura, produziu obras notáveis. Por outro lado, o teatro e a poesia de Brecht foram pontos altos da arte política do século passado. Há sem dúvida material para um grande romance na medula desse momento histórico.

2438) A matéria dos sonhos (28.12.2010)




Jorge Luis Borges fala, em seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de um planeta fantástico em que as coisas são criadas pelo pensamento. Por exemplo: Fulano perde uma caneta no escritório e pede aos colegas que a procurem. Depois, percebe que tinha deixado a caneta em casa, mas esquece de avisar. Um dos amigos, movido pela expectativa de que a caneta está no escritório, encontra-a e entrega ao dono, que agora tem duas canetas idênticas. 

Em outro exemplo, ele fala de uma expedição arqueológica em que os trabalhadores recebem uma descrição prévia dos artefatos que se espera desenterrar ali; eles são encontrados, mas sempre com alguma deficiência, devido aos ruídos de comunicação no processo. Encontram, por exemplo, moedas enferrujadas que têm gravada uma data posterior à da escavação.

Oscar Wilde, que muito influenciou Borges, dizia com razão que é mais frequente a vida imitar a Arte do que o contrário. 

Vejam por exemplo o caso do filme O Falcão Maltês, o clássico do filme policial “noir” dirigido por John Huston. O falcão é uma estátua negra que se diz valer mais de 2 milhões de dólares, e pela qual os indivíduos traem e assassinam uns aos outros durante uma hora e meia. 

Era um filme “B”, estreia do diretor (Huston só tinha trabalhado até então como roteirista). Humphrey Bogart, que interpreta o detetive Sam Spade, fez o filme inteiro usando suas próprias roupas, de tão minguado que era o orçamento. Para o falcão foram confeccionadas algumas estátuas de cobre, outras de resina (mais leves). A fabricação de todas elas juntas custou cerca de 700 dólares. 

Estas estatuetas valem hoje cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, exatamente o que o falcão valia no filme (e mais, também, do que o orçamento completo do filme). Por que? Contêm jóias, tesouros? Não: contêm (na frase famosa de Sam Spade que encerra o filme) “a matéria de que os sonhos são feitos”.

Todas as riquezas humanas são riquezas simbólicas. Valem porque acreditamos que valem. Um cheque ou uma nota de 100 reais só valem isto por uma convenção, um acordo tácito. O papel de que são feitos não pode valer tanto. 

Os falcões valem porque o filme tornou-se (indiretamente; não foi feito com este propósito) um enorme comercial despertando nas pessoas o desejo de possuí-los, porque se tornaram símbolos de algo famoso. É o nosso desejo que os torna reais, em primeiro lugar, e depois os torna valiosos.

Uma frase famosa de G. K. Chesterton diz que “os romanos não amavam Roma porque ela era uma grande cidade; ela se tornou uma grande cidade porque eles a amaram”. É o sonho nosso que projetamos nas coisas que as faz crescer de importância e de valor. 

A Bolsa de Valores, p. ex., surgiu de início como uma aferição do valor das empresas, e depois virou um sistema de avaliação que depende mais do estado de espírito de compradores e vendedores (seus sonhos, expectativas e ilusões) do que da solidez da empresa em si.







2437) "Drummond: Sentimental" (26.12.2010)



Um dos traços mais curiosos de Carlos Drummond, que se revela tanto nos seus poemas quanto nos vislumbres de sua vida pessoal (entrevistas, depoimentos de amigos, etc.) é a sua capacidade de oscilar instantaneamente entre o funcionário público sério e o menino travesso, um garoto malicioso com veia sentimental. Só para ficar em dois poetas que lhe foram próximos, não vemos com facilidade essa oscilação em Vinícius de Moraes, que aparentava ser só o menino, nem em João Cabral, que aparentava ser só o funcionário carrancudo. Drummond, não. Num estalar de dedos, o Padre Antonio Vieira se transformava em Carlitos. E vice-versa.

“Sentimental” é um poema de Alguma Poesia (seu livro de estreia, que está completando 80 anos) e revela esse lado menino e romântico que ele se divertia em entremostrar, muitas vezes inserindo um poema nesse tom entre dois outros mais circunspectos. “Ponho-me a escrever o teu nome / com letras de macarrão...” Não sei se os supermercados de hoje ainda vendem o macarrão de letrinhas que me divertiu muito na infância, compondo palavras enfileiradas na toalha da mesa, ou, com maior dificuldade, usando a colher para fazer as letras boiarem em fila, já empapadas e amolecidas, no caldo escuro da sopa de feijão. Descobrir na adolescência que O Maior Poeta Brasileiro também fazia isso me trouxe uma bem-vinda sensação de cumplicidade.

É um poema semiótico sobre as dificuldades do amor transformado em linguagem (“Desgraçadamente falta uma letra / uma letra somente / para acabar teu nome!”, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”) e ele reverbera de maneira curiosa num poema posterior de Drummond, incluído em seu livro seguinte (Brejo das Almas). É o poema “As namoradas mineiras”, que mostra um namorado menos romântico, menos sonhador, mais tecnológico e moderno. Esse namorado profissional não enfrenta mais as limitações das letrinhas de macarrão. Ele tem uma namorada em cada um dos 215 municípios mineiros: “Enquanto na Capital um homem indiferente, / frio, desdobrando mapas sobre a mesa, / põe o amor escrevendo no mimeógrafo / a mesma carta para todas as namoradas”. É o contraste entre o artesanato (as letrinhas de macarrão, encontradas e enfileiradas de uma em uma, como nas tipografias manuais do cordel) e o mimeógrafo serializador, a carta-de-amor na era da reprodutibilidade técnica.

No primeiro poema Drummond registra o sonho adolescente do menino que se distrai, brincando de estar apaixonado, durante a ceia. No segundo, imagina a burocratização do amor na vida adulta, o amor do funcionário público, o amor do casamento careta e profissional. O uso da palavra escrita é a ponte entre essas duas fases da vida e duas faces do amor. As letrinhas de macarrão e o mimeógrafo são a face ingênua e a face implacável do Modernismo, um mundo novo que começa com uma aparente liberdade e acaba com massificação