sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2441) O pequeno e o muito (31.12.2010)




Escrever é, em muitos casos, jogar no papel tudo que a gente pensa, e deixar fermentando. Chega um ponto em que basta a gente olhar de novo e muitas frases parecem estar implorando para ser cortadas. Já cumpriram sua função. Ficaram ali do lado, contaminando as frases com que se misturaram, impregnando-as de si mesmas; e agora podem sair. Caneta nelas! 

Isso ocorre muito com adjetivos. A gente enche uma frase de adjetivos com a intenção de fazer o leitor entender o que a gente está pensando. “O cavaleiro, altivo e imponente, desmontou do seu corcel suado e arquejante, e encaminhou-se vagarosamente para o portão fechado, no qual desferiu pancadas surdas e profundas que ecoaram nos corredores do misterioso castelo”. 

Beleza! Está dito tudo. Dito principalmente para nós, que na primeira passada da escrita precisamos ter essa cena, com todas as suas ressonâncias, bem nítida na imaginação. 

Pegando a página dias depois, não precisamos mais daquele nhenhenhém. Já sabemos. Basta dizer: “O cavaleiro desmontou e foi até o portão do castelo, no qual bateu com o punho cerrado”. A imponência do cavaleiro, o arquejo do cavalo, a sonoridade das batidas e o mistério do castelo devem estar subentendidos pelo conjunto da narrativa. Cada adjetivo é como um crachá a mais pendurado no peito de um substantivo. Economizemo-los!

Em suas anotações de diretor (Notas Sobre o Cinematógrafo) Robert Bresson dizia: 

“Duas simplicidades. A má: a simplicidade ponto-de-partida, buscada antes de tudo o mais. A boa: simplicidade-resultado, recompensa de anos de esforços”. 

A simplicidade deve vir desse desbastamento, mas ele só tem sentido se num primeiro momento a gente despejar tudo. É preciso, é indispensável escrever (nesse primeiro momento) tudo que a gente está pensando, porque a gente sempre tem medo de que alguma coisa pensada se perca. Melhor botar tudo e esperar para ver o que fica, o que se resseca e cai sozinho, e o que precisa apenas de um pequeno toque para virar poeira.

É por isso que reescrever é mais prazeroso do que escrever. Para escrever, a gente tem que transformar em palavras os impulsos sem forma que tomam conta da nossa mente. Achar a palavra certa é um sacrifício; mas cortar palavras erradas é um prazer cruel. 

Não preciso de você. Nem de você, nem de você. Já está tudo dito. Sai, sai, sai, cai fora, e você também. Já sei o que eu quero dizer. 

No primeiro momento, escrever é um trabalho aditivo, de produzir formas (verbais). No segundo é um trabalho subtrativo, como a escultura: tirar o que é supérfluo, deixando o essencial.

Paul McCartney dizia no filme Let It Be: “Eu pego uma ideia bem simples e vou complicando, complicando muito. Quando ela está muito complicada, eu passo a simplificar”. 

Um PhD. em literatura não definiria melhor esse processo de adições e subtrações, de filmagens e montagens. A criação começa pelo barroco e se encerra pelo minimalismo.





2 comentários:

Fernando Gusmão disse...

Ele poderia ter escrito “Aconteceu um fato estranho: sem causa aparente, os cães latiram em Cerbère”.

Mas não, preferiu escrever assim:

“Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando pânico e terror aos habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula que , naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, Departamento dos Pirineus Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencerem à geração veterana, a cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silencio se apagava da memória a ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde, bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho, para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se, nunca tinham ladrado.”

Resultado: ganhou vários prêmios, sendo os mais conhecidos o Camões e o Nobel.

É preciso que a linguagem sintética do contista não esconda pobreza de vocabulário e de criatividade. Uma obra literária nunca será um relatório, apesar das tentativas razoavelmente bem-sucedidas de Graciliano.

Abraço,

Fernando Gusmao disse...

O comentário acima é de Cláudio Fernandes