quinta-feira, 25 de março de 2010

1825) A paz da descrença (14.1.2009)



(ilustração: Millôr Fernandes)

Numa entrevista ao programa Encontro Marcado com as Artes, Millôr Fernandes rememora um episódio crucial de sua infância. Tendo perdido o pai aos cinco anos, ele perdeu a mãe aos dez, e foi morar na casa de um tio. O dia do enterro da mãe foi um dia meio confuso em que ele não teve muita noção do que estava acontecendo. Quando tudo acabou, de volta à casa do tio, ele ficou sozinho no quarto que lhe destinaram. A casa tinha um piso de tábuas corridas, e o piso tinha sido lavado naquele dia. Embaixo da cama havia uma esteira, e o piso estava ainda fresco e úmido, naquele dia de calor. “Fui para baixo da cama,” diz ele, “deitei na esteira e chorei até me acabar. Ninguém viu. Chorei até não poder mais. Depois que acabei, baixou sobre mim uma paz muito estranha, que só posso definir como a paz da descrença. Eu percebi que existia eu, existia o destino, e nada mais. Nenhum intermediário. Nenhuma interface.”

Este episódio lança uma pequena pista sobre a complexa personalidade de Millôr Fernandes, que tem sido por mais de cinco décadas, à distância e à revelia, um dos meus professores de agosticismo. Tive a sorte de não ter passado por uma perda semelhante à dele, de forma que minha relativa descrença se teceu com outras fibras. Millôr é um cético e frequentemente um cínico, pela sua visão irreverente das nossas limitações morais. É um cinismo, contudo, que critica a humanidade em nome de um humanismo. Não é o cinismo ególatra e “blasé” de um certo pessoal de hoje em dia, que escarnece de todas as ideologias, de todas as crenças, de todos os valores, mas preserva cuidadosamente a própria vaidade e os próprios interesses. Millor diz, na entrevista: “A maior qualidade humana não é a inteligência nem a competência técnica, é a bondade. Se estou na minha janela e vejo um acidente lá embaixo na rua, às vezes, por alguma razão, não posso descer para ajudar, mas vejo que duas ou três pessoas descem. Isso me dá fé na humanidade”.

A descrença em divindades sobrenaturais é, para alguns, uma fonte perpétua de desespero, negação de tudo, revolta surda e irritada contra a vida. Para outras pessoas, a descrença pode ser a força que leva cada indivíduo a extrair um humanismo de si mesmo, um humanismo por conta própria, não aprendido num manual ou numa Escritura Sagrada, mas como consequência das experiências de vida de cada um.

Millôr já se queixou muitas vezes de que não é considerado escritor porque nunca escreveu um romance. O que produziu – mesmo que filtrado, enxugado, reduzido ao essencial, ao não-circunstancial, ao que é realmente bom – somaria alguns milhares de páginas. (Sem falar no seu espantoso trabalho como artista gráfico.) Mas os manuais de Literatura Brasileira não lhe reservam mais que umas poucas linhas, enquanto dedicam páginas e mais páginas a algumas cavalgaduras diplomadas e pomposas que só produziram miolo-de-pote. Nossa descrença começa sempre em nossa própria casa.

1824) Os filmes-novelas (13.1.2009)



Filmes-novelas não faz qualquer alusão às atuais novelas de TV, mas ao fato de existirem filmes que, em vez de contarem uma única história do começo ao fim, contam várias histórias sucessivas, como as novelas de cavalaria e as novelas picarescas da Renascença. Alguns empregam um personagem principal, outros mudam totalmente seu elenco de personagens. Andei revendo alguns filmes de Luís Buñuel e de Pier Paolo Pasolini, e ouso dizer que o filme-novela teve como sua primeira época de ouro a década de 1970.

Voltemos um pouco no tempo. Em 1968, Buñuel rodou entre a França e a Espanha o filme La Voie Lactée, que ganhou no Brasil o título “O Estranho Caminho de Santiago”. Foi a primeira vez (muito antes de Paulo Coelho e de Baby Consuelo) que ouvi falar dessa rota secular de peregrinação mística. Buñuel acompanha uma dupla de peregrinos (Laurent Terzieff e Paul Francoeur) que percorrem as estradas da Espanha rumo a Santiago de Compostela, passando por aventuras sucessivas que mal-e-mal têm relação umas com os outras. Logo em seguida, em 1971, Pasolini rodou O Decameron, em que aproveita histórias extraídas do clássico de Boccaccio, que se sucedem na tela sem que uma interfira na anterior ou na próxima.

Em setembro de 1972 Buñuel veio à carga com outro filme episódico, novelesco: O Discreto Charme da Burguesia, agora ambientado (principalmente) na França contemporânea, e narrando cenas soltas que iam desde o surrealismo mais descabelado até aqueles pequenos absurdos do cotidiano que o diretor cultivava com tanto deleite. E também em 1972 Pasolini fez o segundo filme do que viria a ser uma trilogia: Os Contos de Canterbury, baseado na obra de Chaucer, um clássico da literatura inglesa, e igualmente estruturado como uma sucessão de episódios independentes.

Em junho de 1974, Pasolini concluía sua trilogia adaptando outra coletânea clássica de contos, As Mil e Uma Noites. E em setembro de 1974 Buñuel lançava na França O Fantasma da Liberdade, que seguia de perto a estrutura fragmentada dos filmes anteriores, e dispensava cada vez mais o uso de personagens-guia, os quais figuravam em dois ou três episódios curtos e sumiam de vez (quase todos).

Os dois diretores pararam por aí, porque as obras finais de ambos (Este Obscuro Objeto de Desejo, Salò/Sodoma) não têm essa estrutura episódica. Mas é notável que no espaço de seis anos dois dos maiores diretores europeus tenham produzido seis filmes em que uma nova forma de estrutura era proposta e aceita – todos os filmes tiveram boas bilheterias e prêmios em Festivais. Pasolini recorria às histórias da tradição oral preservadas por autores clássicos; Buñuel inventava seus próprios esquetes surrealistas, com uma ou outra citação de episódios tradicionais. Juntos, os dois produziram um curioso interlúdio narrativo no cinema europeu, que, ao que eu me lembre, nunca mais foi revivido com tal intensidade e mestria.

1823) Milionários de Moscou (11.1.2009)



O saudoso Paulo Francis costumava dizer que a União Soviética era uma ditadura latino-americana sem plantações de bananas e com neve. A URSS se dissolveu, mas a Rússia não. Essa é feita de esmalte dentário ou de outra substância igualmente resistente. Só pode se destruída com dinamite concentrada. A velha Rússia, esse país fascinante, parece hoje uma collage da babilônia dos Czares, dos pesadelos stalinistas, do surrealismo político da América Latina e das sagas mafiosas de Manhattan.

Tomemos, por exemplo, Sergei Knyazev. É um mega-empresário cujo papel é fornecer festas e diversões fora do comum para os multi-milionários de Moscou. Acredite ou não, mas ele ficou rico organizando corridas de baratas, um esporte tão popular na Rússia quanto a briga de galos aqui. Uma matéria que colhi na Web (http://tinyurl.com/pgtpls) diz: “Os ricos e super-ricos que já viram tudo, já provaram de tudo, estão à procura de diversões que atenuem o tédio de suas vidas, e estão cada vez mais exigentes em matéria de entretenimento”. Knyazev é rico e imaginativo, e virou o “wonderboy” dos bilionários.

Por exemplo: lutar com um urso. Claro que o urso é adestrado, velho, bem alimentadíssimo. Mas não deixa de ser emocionante, para um cara riquinho, subir no ringue e se atracar pra valer com a fera. Nunca se sabe, né? Outra diversão da moda é levar os clientes (curiosamente, mulheres são a maioria) para uma área urbana onde eles podem pegar seus carros esporte e dirigir no máximo de velocidade que quiserem, fazendo o que quiserem, sem ninguém interferir.

Uma das diversões preferidas dos ricos é disfarçar-se de mendigo, como o califa Harum Al-Rachid fazia nas Mil e Uma Noites. Sujam-se, cobrem-se de andrajos, e saem pelas ruas de Moscou, relacionando-se com os mendigos reais, pedindo esmolas, deitando-se ao relento... Claro que, a uma prudente distância, uma limusine cheia de seguranças está a postos para qualquer imprevisto. No fim do dia, os participantes tomam banho e se reúnem num restaurante caro, onde o que recolheu mais esmolas é declarado vencedor e paga a conta.

São clientes que chegam a pagar 800 mil euros por um programa inédito, excitante, fora do comum. Knyazev hoje é proprietário de duas fábricas de roupas que trabalham apenas para prover os convidados de suas festas, “peças” e reality-games que exigem disfarces e caracterização (“Três Mosqueteiros”, Mitologia Grega, etc.). Políticos importantes, por exemplo, gostam de tomar parte em jogos baseados nos romances de Dostoiévski ambientados num hospício ou num campo de concentração. Claro que nem todos. Knyazev explica que muitos clientes querem apenas viver o dia-a-dia do povo, e pagam pelo direito de se espremer anonimamente nos trens lotados do metrô. Para quem nasceu e cresceu rodeado de criados, em palácios, numa vida nababesca, isto é tão emocionante e perigoso quando um safari na África.

1822) O clap-clap e o tlin-tlin (10.1.2009)



O que é mais importante na arte: o clap-clap dos aplausos, ou o tlin-tlin da caixa registradora? Sucesso simbólico ou sucesso financeiro? Elogios ou saldo bancário? Questão ainda mais desconcertante quando as pessoas começam a achar que um é a negação do outro. Quando começam a achar que Arte não tem nada a ver com Comércio, que artista talentoso é artista pobre, que sucesso de público não pode ser acompanhado por sucesso de crítica, e assim por diante.

Arte e Mercado são o Yin e Yang de uma coisa multiforme e instável chamada Cultura, e mesmo quando um predomina o outro está ali, por baixo, emboscado, se preparando para dar um bote e assumir o controle na primeira oportunidade. Fulano de Tal é um grande artista. Passa metade da vida fazendo obras elogiadíssimas e deficitárias. No dia em que por acaso produz um grande sucesso, abrem-se para ele as portas do Mercado e lá vai ele ladeira abaixo, cada vez mais rico e menos significante. Parece os Titãs, depois que descobriram o repertório de Roberto Carlos e a expressão “um milhão de discos”.

O mesmo acontece com quem faz sucesso ganhando dinheiro de dia e sonhando à noite, entre lençóis de seda marroquina, com os elogios da crítica e as teses de mestrado dos acadêmicos. Um belo dia faz algo que parece uma obra de Arte, e é “descoberto”. E lá vai ele ladeira abaixo, produzindo fracassos de bilheteria cada vez maiores, num esforço vão de cortejar aquela elitezinha que, como uma mulher bonita e metida a besta, é amada por ele e o despreza. Mais ou menos o que ocorreu com Woody Allen, comediante de sucesso que sonhava em ser um artista de verdade como Ingmar Bergman.

Pode-se conciliar qualidade de público e quantidade de lucro. Um dos exemplos mais simples (e que já devo ter citado nesta coluna) é o que ouvi uma vez de Egberto Gismonti, no programa de Jô Soares. Divulgando seu disco mais recente (era ainda a época do LP) Gismonti disse que ele tinha vendido apenas 10 mil cópias. Jô Soares perguntou se ele não preferiria fazer algumas concessões e vender 100 ou 200 mil. O músico respondeu: “Mas Jô, eu vendo 10 mil aqui no Brasil. Como já tenho uma carreira internacional, vendo mais 5 mil nos EUA, 12 mil na França, 8 mil na Suécia, 15 mil na Alemanha, 18 mil no Japão... Se somar tudo, dá os mesmos 100 mil, e eu não preciso fazer concessão nenhuma”.

Alguém pode se queixar: “Ah, mas essa solução de Gismonti não serve para mim, eu não tenho carreira internacional”. Concordo, mas lembro que Gismonti não procurou imitar a solução de Seu Ninguém. Ele criou uma solução própria, em função de quem era, do que já tinha feito e do que podia fazer. Soluções de carreira são sempre pessoais – desde que as carreiras sejam pessoais, individualizadas, “artísticas”. Quando não, o cara vira a Banda Mastruz Com Leite, em que se trocam todos os músicos e a banda permanece a mesma. O que só interessa, em última análise, ao cara que fatura com a banda.

1821) Gênios ao Cubo (9.1.2009)



O leitor lembra do Cubo de Rubik? Era aquele brinquedo matemático que nos anos 1970 se tornou um dos mais populares quebra-cabeças do mundo. É um cubo articulado em que cada face é subdividida em 3x3 quadrados coloridos. Filas horizontais e colunas verticais, cada qual com três quadradinhos, giram em torno de eixos mecânicos, misturando a combinação das seis cores. O desafio é sair girando essas filas e colunas até fazer com que cada uma das seis faces do cubo exiba nove quadradinhos da mesma cor.

Muita gente consegue. Eu, por exemplo, já consegui fazer uma face inteirinha com nove quadradinhos azuis. O fato dos outros terem ficado parecendo uma chuva de confetes prova apenas que o trabalho ficou incompleto. Não esquentei com isso. Matemáticos já calcularam por alto que o número de combinações possíveis é de 43 bilhões de bilhões (ou 43 multiplicado por 10-elevado-a-18). Minha matematicazinha quaderniana me leva a concluir que cumpri um sexto dessa tarefa ciclópica.

Quase trinta anos depois, o Cubo de Rubik continua dando tanto trabalho que ninguém ainda pensou (acho eu) no estágio seguinte, concebido mentalmente por mim num momento de devaneio: um cubo com seis faces divididas em 4x4 quadradinhos. Vai faltar zero no Universo.

Matemáticos adoram pegar estes números imensos, convertê-los em centímetros, e criar uma imagem absurda para nos dar uma idéia física das quantidades envolvidas. Dizem, por exemplo, que esses “43 bilhões de bilhões”, se convertidos em cubos dos que compramos na loja, produziriam uma fila que iria da Terra ao Sol, ida e volta, oito milhões de vezes. Matemáticos afirmam que o número de combinações possíveis é tão grande que mesmo os atuais computadores não conseguem solver o problema pelo sistema chamado de “Força Bruta”, ou seja, calculando burramente cada combinação possível. Há maneiras de simplificá-lo, contudo. Como não importa em que posição esteja cada um dos seis lados, isto reduz em muito o número de combinações, que cai para meros 450 milhões de bilhões.

E no entanto... e no entanto... Pasmem, amigos: desde 1982 existem concursos internacionais para ver quem “resolve o Cubo” mais depressa. Os candidatos se enfileiram, recebem um cubo todo misturado, um relógio soa, e eles começam a girar os eixozinhos. O cérebro humano possui um compressor-temporal que reduz esses bilhões de bilhões a fumaça. O atual recorde mundial pertence a Erik Akkersdijk, que conseguiu completar o Cubo em 7.08 segundos. Nada mau, hem? Existe um tal de Thibaut Jacquinot que precisa de um pouquinho mais de tempo, mas usa apenas uma das mãos para girar as engrenagenzinhas. Joey Gouley, de 17 anos, consegue resolver o Cubo com os olhos vendados, e Zbigniew Zborowski, recebendo cubos “zerados” (com as cores totalmente misturadas), repetiu a façanha 3.390 vezes num único dia. Não me perguntem como; nem a eles. Eles não sabem. Um raio não sabe que é feito de elétrons.

quarta-feira, 24 de março de 2010

1820) Olavo Bilac e João Cabral (8.1.2009)




À primeira vista, não podem haver dois poetas mais dessemelhantes. Quem lê um e logo em seguida pega um livro do outro precisa passar por alguns minutos de adaptação mental, como aqueles mergulhadores que têm de voltar à tona aos poucos, de tão grande que é a diferença de pressão. 

O mundo de Bilac nos lembra uma imensa galeria do Louvre cheios de quadros históricos e de langorosos nus femininos, pintados por Courbet, Degas, William Bouguereau, Alma-Tadema. São figuras da mitologia, episódios épicos ou bíblicos, virgens diáfanas envoltas em tules e musselinas, bosque sombrios, pássaros canoros, ameias e torreões de castelos, casais pré-rafaelitas enlaçados nos transportes da paixão. 

Já o mundo de Cabral nos arrebata para um deserto árido e cheio de arestas, povoado por cabras e retirantes; mangues pegajosos, cidades rústicas que mal se distinguem das colinas pedregosas que as cercam. Seu mundo lembra, até pelo exame permanente do traço, da forma, da dinâmica abstrata dos processos, a fase de gravuras geometrizantes de Max Ernst, ou as xilogravuras de cortes brutais de Segall, Scliar ou Darel.

E, mesmo assim, poucos poetas defenderam com tanta eloquência, em tribunas opostas e até antagônicas, os mesmos princípios estéticos. 

Tanto Bilac quanto Cabral são os poetas da construção, do perfeccionismo, do intelecto avassalador apropriando-se das mais ínfimas tarefas da criação poética. 

Os dois divergem no temperamento pessoal e nos assuntos que abordaram, mas o modo de empunhar a poesia é o mesmo.

É costume contrapor a obra de Bilac à de Castro Alves, pois os dois foram os mais populares e festejados poetas brasileiros do século 19. 

Castro Alves é inspiração torrencial, transbordante, indisciplinada, produzindo poemas gigantescos e tonitruantes crivados de pequenos defeitos. Diz-se que era um bom improvisador de versos, e de fato tinha as qualidades e os defeitos de qualquer repentista. O surgimento de Bilac enxugou a poesia brasileira desses excessos. Cabral foi ainda mais longe, e reduziu a poesia a osso, viga, concreto, medula.

Em sua famosa “Profissão de Fé”, Bilac invoca como modelos de poeta o Ourives (que ele prefere) e o Escultor. Já Cabral elegeu o Engenheiro e o Arquiteto. 

Por diferentes que sejam, todos trazem em si o traço que une os dois poetas: o propósito de construir, em vez de apenas “parir” o poema. Com a mente lúcida e a mão minuciosa. Reescrevendo dezenas de vezes até achar a palavra certa, a sílaba tônica ou átona na posição exata, a simetria quase imperceptível de consoantes em pontos opostos da linha. Ritmo, sonoridade, evocação sensorial de imagens, tudo isto é pesado e medido, com balança de precisão, lupa e bisturi. 

Que profissões simbólicas serão invocadas como modelo pelos poetas construtivistas do futuro? Engenheiro de software? Webdesigner? DJ? Programador de mosaicos verbais logarítmicos com variáveis randômicas? As possibilidades, como sempre, são infinitas.




1819) Tia Nunum (7.1.2009)



Chamava-se Anunciada, e era a mais jovem e a mais divertida das minhas tias maternas. Mesmo tendo convivido com ela até sua velhice, a imagem que guardo comigo é a de uma moça de vinte e tantos anos com cabelo louro, rosto claro e um permanente sorriso aberto. Consolo-me pensando que está viva e imutável, e que a senhora de 83 anos que faleceu dias atrás era outra pessoa.

Pela pouca diferença de idade, ela era para mim e para minha irmã Clotilde uma espécie de prima mais velha, com autoridade para nos dar ordens e disposição para ser uma infatigável companheira de brinquedos. Jogávamos ludo, damas, relancim. Tide, num artigo recente, lembra episódios da nossa infância, inclusive o que deu origem ao termo “O Raio da Silibrina”, que eu inadvertidamente tornei famoso. Já falei sobre isto aqui – procurem “Silibrina” no meu blog (http://mundofantasmo.blogspot.com). Na minha lembrança, certa noite meus pais foram jantar fora, e Tia Nunum resolveu pregar-lhes uma peça. Chamou nós dois; reunimos umas roupas velhas, sapatos, um chapéu. Recheamos aquilo com jornais amassados para fazer volume. A cabeça era um travesseirinho com uma máscara de carnaval presa com elástico, e o chapéu em cima, firmando. Um par de luvas formava as mãos, que seguravam um copo e um cigarro. O “judas” foi sentado no sofá da sala, e ela pregou no peito dele um pedaço de cartolina onde escreveu: “O Raio da Silibrina”. Escondemo-nos atrás da poltrona. Quando meus pais chegaram e acenderam a luz, houve o previsível espanto, e as nossas gargalhadas.

Nossa memória é infiel, elusiva, escorregadia, mutante, parece-se mais com o delírio verbal de James Joyce no fim da carreira do que com as filigranas apolíneas de Marcel Proust, o homem que nada esquecia. Lembro Tia Nunum desenhando num caderno rostos femininos de longas pestanas, copiando letras de músicas, inclusive uma (que ainda creio ter em alguma pasta) de uma música que ela cantava muito, e que enumerava e comentava todos os bichos do Jogo do Bicho, de 1 a 25. Foi também ela que nos ensinou a jogar “Disparate”, em que pessoas fazem listas aleatórias de nomes, ações e lugares, e depois vão encadeando essas listas, formando frases absurdas como “Napoleão Bonaparte – e Tia Neuza – pescando caranguejo – no planeta Júpiter”.

Era a mais bonita de todas as irmãs, e nunca se casou, talvez pelo excesso de responsabilidade. Um namorado que teve a achava parecida com Lauren Bacall, e eu, que era apenas um garoto, me senti orgulhoso porque também já tinha pensado a mesma coisa. Já mais idosa, com quarenta, cinquenta anos, ainda passava temporadas inteiras na casa dos meus pais. Jogávamos crapô, víamos filmes na TV, e no auge da minha fase john-lennon cabia a ela aparar de vez em quando minha cabeleira hirsuta, que eu jamais confiaria aos barbeiros do Calçadão. Tia Nunum foi alegre, triste, jovem e velha, bela e contida, mas sempre cheia de amor para distribuir. Morreu no Natal, como Carlitos.

1818) Diálogos filosóficos (6.1.2009)



(Platão e Aristóteles, detalhe de A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio)

Era uma tarde amena e primaveril na planície do Peloponeso, e dois filósofos pré-socráticos caminhavam pela estrada, esgrimindo suas dialéticas. Disse Empedóclito:“O conceito de ser, meu caro Herístocles, tem que necessariamente passar pelos sentidos. Posso te garantir, por exemplo, que aquela nuvem de poeira que se aproxima ao longe está sendo causada pelo rinoceronte que galopa no meio dela. Como poderia eu perceber as duas coisas, nuvem e rinoceronte, se não fosse dotado de visão?” Herístocles deu uma risada e contrapôs: “Eu poderia te desmentir de dez maneiras diferentes, caro amigo. Mas teus argumentos são tão fracos que me é muito mais divertido corroborá-los, mesmo sabendo que estão na pista errada. Porque ainda que fosse eu um cego, poderia perfeitamente perceber a aproximação do teu rinoceronte imaginário, devido ao rumor do seu tropel, e ao impacto do seu peso sobre o chão, que percebo através das minhas sandálias”.

“Concordas então,” disse Empedóclito, “que as mensagens dos sentidos são suficientes para atestar a realidade de um ser?” Ao que Herístocles retorquiu: “Nem de longe, caro amigo. Nossos sentidos nos enganam o tempo inteiro. No deserto, fazem-nos imaginar a proximidade de um oásis; e quantas vezes julgamos ouvir vozes humanas no grito de um pássaro ou ladrar de um cão!” Empedóclito insistiu: “Não podes negar, contudo, que este rinoceronte é real, e que se aproxima de nós!” “Como sabes que se aproximas?” “Ora, porque sua imagem aumenta a olhos vistos, bem como fica mais forte o ruído do seu galope”. “De fato, concordo, mas seria igualmente lícito imaginar que ele não galopa, apenas sapateia imóvel lá onde está, e que é seu corpo que cresce, torna-se mais volumoso e pesado, hipótese que responderá também pelo ruído mais forte de suas patas sobre a terra”.

Empedóclito enxugou a testa numa dobra da túnica, e sugeriu: “Vês aquele garoto que se banha no rio, ao longe? Será que um terceiro testemunho não poderia dirimir nossas dúvidas?” Herístocles deu de ombros: “Não creio. Em primeiro lugar, ele talvez registrasse apenas a existência de um rinoceronte cuja imagem diminuía, e cujos passos se tornavam menos audíveis. Algo que de modo algum coincide com nossa experiência, sendo mesmo o inverso dela.” “Mas claro,” disse Empedóclito, “se ele está do lado oposto, é natural que...”

Não pôde concluir sua frase, porque nesse instante o rinoceronte rompeu através dos dois com suas cinco toneladas de peso, mais que suficientes para esmagar qualquer dupla de filósofos, caso filósofos ali houvesse. Empedóclito e Herístocles constataram assim sua própria não-existência (pois de fato nunca existiram), ao passo que o rinoceronte, não-personalizado, não-específico, se impôs com seu peso arquetípico de conceito universal, e prosseguiu galopando. Platão, então um mero garoto a banhar-se no rio, viu tudo e nunca mais esqueceu.

1817) O Bálsamo da Amnésia (4.1.2009)



(Salvador Dali, Sonho Causado pelo Voo de um Inseto em Volta de uma Romã um Segundo Antes do Despertar)

Antonio desceu do ônibus perto do Colégio das Damas e atravessou a Praça da Bandeira, rumo ao Calçadão, para tomar um cafezinho antes de subir para o escritório. Uns motoboys discutiam aos berros. Ele parou (gostava de olhar briga à distância) e nesse instante o espaçotempo se fendeu e ele foi arrebatado por uma criatura lagartiforme, que prendeu entre os dentes a gola de seu casaco e começou a subir correndo uma escadaria de degraus larguíssimos, toda feita de mármore com incrustações de frutas cristalizadas. Enquanto o fazia, a criatura lhe explicava, com a outra boca, o princípio básico do Existencialismo sartreano: “A existência precede a essência,” dizia ela, “ninguém é nada a-priori, as pessoas e coisas surgem fisicamente, primeiro, e só depois tornam-se o que são”. Depositou-o aos pés de uma estátua em forma de adjetivo, fez com que beijasse seus doze pés, e disse: “Esquecerás tudo”.

Antonio atravessou a rua, entrou no Café São Braz e pediu um cafezinho. Enquanto mexia o açúcar deu de cara com Zé Alberto, que o convidou para participar de um bolão da Mega-Sena. “Já joguei muito dinheiro fora,” disse Antonio. “Se eu pudesse recuperar todo o dinheiro que já investi nessa besteira eu fazia minha independência econômica”. Conversaram futebol e estavam se despedindo à porta quando sob os pés de Zé Alberto surgiu uma abertura hexagonal e ele deslizou por um canal escorregadio, a uma velocidade espantosa, até ser despejado num enorme caldeirão onde dezenas de animais se debatiam aos gritos. O líquido do caldeirão começava a borbulhar. Zé Alberto brigou, nadou, esmurrou, conseguiu aproximar-se da borda e saltar, mas passava por ali um gancho de guindaste que o elevou até o Posto de Controle. O Controlador era um buldogue com três metros de altura que grampeava documentos com a boca. Olhou para Zé Alberto e diagnosticou: “Estás com uma válvula cardíaca defeituosa mas nunca o saberás porque não vais ao médico. Morrerás num dia 28 de julho, daqui a seis anos. Agora cai fora e me deixa trabalhar. Esquecerás tudo”.

Zé Alberto deu uma tapinha no ombro de Antonio e voltou devagar para a Lotérica; faltavam duas pessoas para completar o bolão. Nisso ele avistou Suely, tentou se esconder mas não pôde. “Bonito pra sua cara,” disse ela, cruzando os braços. “Fiquei plantada a noite toda, tomando chope sozinha”. Zé Alberto improvisou uma desculpa mas ela já sabia que ele tinha ido para o aniversário de Fátima. “Não me ligue mais, e vê se me esquece,” concluiu ela. Saiu andando, pisando com força, e desceu a Venâncio Neiva, sem rumo certo, só para dobrar uma esquina e sumir da vista dele. Estava furiosa. Em momentos assim, imagens monstruosas e delirantes passavam pela sua mente, sem que ela soubesse de onde vinham. Teve a sensação de que algo espantoso acabara de lhe acontecer e que esquecera quase tudo. Invejou a placidez desmemoriada dos rostos que passavam por ela e sumiam para sempre.

1816) Encontrado dentro de um livro (3.1.2009)



(marcador de livros da Idade Média)

Existe um curioso fetichismo em quem ama os livros, porque não só os livros, mas tudo quanto os cerca, parece capaz de despertar uma paixão reverente que tanto beira o êxtase religioso quanto roça o erotismo. Folheei certa vez numa biblioteca um tratado que estudava os farrapos de pergaminho usados pelos copistas medievais para marcar as páginas dos livros que estavam lendo. Eram meras tiras de “papel” com alguns centímetros de largura, mas quando tinham uma certa extensão era possível decifrar o que havia escrito nelas, e até mesmo deduzir de que tipo de texto haviam sido rasgadas. Cochilando durante séculos entre as páginas dos velhos alfarrábios, em mosteiros tipo “O Nome da Rosa”, esse modestos farrapos eram pacientemente descobertos, catalogados, examinados e descritos por um PhD qualquer, que apesar de seus muitos títulos acadêmicos certamente não achava estar se rebaixando ao estudá-los.

Agora vi no caderno de literatura do “New York Times” um curioso artigo de Henry Alford na mesma linha, “A Gente Nunca Sabe o Que Vai Encontrar num Livro” (http://www.nytimes.com/2008/12/21/books/review/Alford-t.html?_r=1&8bu&emc=bub1). Alford baseou-se nas suas próprias experiências e consultou outras pessoas, perguntando-lhes: “Qual foi a coisa mais esquisita que você já encontrou num livro?” As respostas variam, e diz ele que incluem desde uma fatia de bacon frito (encontrada pelo romancista Reynolds Price) até um bilhete, achado pelo dramaturgo Mark O’Donnell, com a intrigante advertência: “Não me escreva sob o nome de Gail Edwards, aqui eu sou conhecida como Andrea Smith”. Outros achados incluem uma bala de arma de fogo, o dente de um bebê, drogas, fotos pornográficas, e as inacreditáveis 40 notas de mil dólares achadas pelos funcionários de um sebo.

O músico Dan Zanes possuía uma foto raríssima do escritor J. D. Salinger, que nunca se deixa fotografar. A foto lhe fora dada por sua mãe, e ele a guardou num livro, tão bem guardada que há décadas não sabe mais onde está: “Com certeza não está em nenhum dos livros atualmente em minha casa”. Caso parecido é o de Sherman Alexie, que em sua época de universitário fazia farras homéricas, e, com medo de gastar tudo que tinha quando bêbado, adquiriu o hábito de esconder notas de 10 ou 20 dólares dentro dos livros, para achá-las meses depois.

O melhor, contudo, é a peça que Meg Wolitzer e uma amiga, quando estudantes, pregaram a algum rato-de-bibliotecas do futuro. Num pedaço de folha de caderno, imitaram a letra da escritora Sylvia Plath, escreveram uma bobagem sobre “uma redoma de vidro” (título de um livro da poetisa), envelheceram artificialmente o papel e o deixaram entre as páginas de uma obra de referência da biblioteca, para ser descoberto um dia. Certamente por algum pesquisador incauto que não lê nem o New York Times nem o Jornal da Paraíba.