quarta-feira, 24 de março de 2010
1817) O Bálsamo da Amnésia (4.1.2009)
(Salvador Dali, Sonho Causado pelo Voo de um Inseto em Volta de uma Romã um Segundo Antes do Despertar)
Antonio desceu do ônibus perto do Colégio das Damas e atravessou a Praça da Bandeira, rumo ao Calçadão, para tomar um cafezinho antes de subir para o escritório. Uns motoboys discutiam aos berros. Ele parou (gostava de olhar briga à distância) e nesse instante o espaçotempo se fendeu e ele foi arrebatado por uma criatura lagartiforme, que prendeu entre os dentes a gola de seu casaco e começou a subir correndo uma escadaria de degraus larguíssimos, toda feita de mármore com incrustações de frutas cristalizadas. Enquanto o fazia, a criatura lhe explicava, com a outra boca, o princípio básico do Existencialismo sartreano: “A existência precede a essência,” dizia ela, “ninguém é nada a-priori, as pessoas e coisas surgem fisicamente, primeiro, e só depois tornam-se o que são”. Depositou-o aos pés de uma estátua em forma de adjetivo, fez com que beijasse seus doze pés, e disse: “Esquecerás tudo”.
Antonio atravessou a rua, entrou no Café São Braz e pediu um cafezinho. Enquanto mexia o açúcar deu de cara com Zé Alberto, que o convidou para participar de um bolão da Mega-Sena. “Já joguei muito dinheiro fora,” disse Antonio. “Se eu pudesse recuperar todo o dinheiro que já investi nessa besteira eu fazia minha independência econômica”. Conversaram futebol e estavam se despedindo à porta quando sob os pés de Zé Alberto surgiu uma abertura hexagonal e ele deslizou por um canal escorregadio, a uma velocidade espantosa, até ser despejado num enorme caldeirão onde dezenas de animais se debatiam aos gritos. O líquido do caldeirão começava a borbulhar. Zé Alberto brigou, nadou, esmurrou, conseguiu aproximar-se da borda e saltar, mas passava por ali um gancho de guindaste que o elevou até o Posto de Controle. O Controlador era um buldogue com três metros de altura que grampeava documentos com a boca. Olhou para Zé Alberto e diagnosticou: “Estás com uma válvula cardíaca defeituosa mas nunca o saberás porque não vais ao médico. Morrerás num dia 28 de julho, daqui a seis anos. Agora cai fora e me deixa trabalhar. Esquecerás tudo”.
Zé Alberto deu uma tapinha no ombro de Antonio e voltou devagar para a Lotérica; faltavam duas pessoas para completar o bolão. Nisso ele avistou Suely, tentou se esconder mas não pôde. “Bonito pra sua cara,” disse ela, cruzando os braços. “Fiquei plantada a noite toda, tomando chope sozinha”. Zé Alberto improvisou uma desculpa mas ela já sabia que ele tinha ido para o aniversário de Fátima. “Não me ligue mais, e vê se me esquece,” concluiu ela. Saiu andando, pisando com força, e desceu a Venâncio Neiva, sem rumo certo, só para dobrar uma esquina e sumir da vista dele. Estava furiosa. Em momentos assim, imagens monstruosas e delirantes passavam pela sua mente, sem que ela soubesse de onde vinham. Teve a sensação de que algo espantoso acabara de lhe acontecer e que esquecera quase tudo. Invejou a placidez desmemoriada dos rostos que passavam por ela e sumiam para sempre.
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