
(Salvador Dali, Sonho Causado pelo Voo de um Inseto em Volta de uma Romã um Segundo Antes do Despertar)
Antonio desceu do ônibus perto do Colégio das Damas e atravessou a Praça da Bandeira, rumo ao Calçadão, para tomar um cafezinho antes de subir para o escritório. Uns motoboys discutiam aos berros. Ele parou (gostava de olhar briga à distância) e nesse instante o espaçotempo se fendeu e ele foi arrebatado por uma criatura lagartiforme, que prendeu entre os dentes a gola de seu casaco e começou a subir correndo uma escadaria de degraus larguíssimos, toda feita de mármore com incrustações de frutas cristalizadas. Enquanto o fazia, a criatura lhe explicava, com a outra boca, o princípio básico do Existencialismo sartreano: “A existência precede a essência,” dizia ela, “ninguém é nada a-priori, as pessoas e coisas surgem fisicamente, primeiro, e só depois tornam-se o que são”. Depositou-o aos pés de uma estátua em forma de adjetivo, fez com que beijasse seus doze pés, e disse: “Esquecerás tudo”.
Antonio atravessou a rua, entrou no Café São Braz e pediu um cafezinho. Enquanto mexia o açúcar deu de cara com Zé Alberto, que o convidou para participar de um bolão da Mega-Sena. “Já joguei muito dinheiro fora,” disse Antonio. “Se eu pudesse recuperar todo o dinheiro que já investi nessa besteira eu fazia minha independência econômica”. Conversaram futebol e estavam se despedindo à porta quando sob os pés de Zé Alberto surgiu uma abertura hexagonal e ele deslizou por um canal escorregadio, a uma velocidade espantosa, até ser despejado num enorme caldeirão onde dezenas de animais se debatiam aos gritos. O líquido do caldeirão começava a borbulhar. Zé Alberto brigou, nadou, esmurrou, conseguiu aproximar-se da borda e saltar, mas passava por ali um gancho de guindaste que o elevou até o Posto de Controle. O Controlador era um buldogue com três metros de altura que grampeava documentos com a boca. Olhou para Zé Alberto e diagnosticou: “Estás com uma válvula cardíaca defeituosa mas nunca o saberás porque não vais ao médico. Morrerás num dia 28 de julho, daqui a seis anos. Agora cai fora e me deixa trabalhar. Esquecerás tudo”.
Zé Alberto deu uma tapinha no ombro de Antonio e voltou devagar para a Lotérica; faltavam duas pessoas para completar o bolão. Nisso ele avistou Suely, tentou se esconder mas não pôde. “Bonito pra sua cara,” disse ela, cruzando os braços. “Fiquei plantada a noite toda, tomando chope sozinha”. Zé Alberto improvisou uma desculpa mas ela já sabia que ele tinha ido para o aniversário de Fátima. “Não me ligue mais, e vê se me esquece,” concluiu ela. Saiu andando, pisando com força, e desceu a Venâncio Neiva, sem rumo certo, só para dobrar uma esquina e sumir da vista dele. Estava furiosa. Em momentos assim, imagens monstruosas e delirantes passavam pela sua mente, sem que ela soubesse de onde vinham. Teve a sensação de que algo espantoso acabara de lhe acontecer e que esquecera quase tudo. Invejou a placidez desmemoriada dos rostos que passavam por ela e sumiam para sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário