quinta-feira, 25 de março de 2010
1824) Os filmes-novelas (13.1.2009)
Filmes-novelas não faz qualquer alusão às atuais novelas de TV, mas ao fato de existirem filmes que, em vez de contarem uma única história do começo ao fim, contam várias histórias sucessivas, como as novelas de cavalaria e as novelas picarescas da Renascença. Alguns empregam um personagem principal, outros mudam totalmente seu elenco de personagens. Andei revendo alguns filmes de Luís Buñuel e de Pier Paolo Pasolini, e ouso dizer que o filme-novela teve como sua primeira época de ouro a década de 1970.
Voltemos um pouco no tempo. Em 1968, Buñuel rodou entre a França e a Espanha o filme La Voie Lactée, que ganhou no Brasil o título “O Estranho Caminho de Santiago”. Foi a primeira vez (muito antes de Paulo Coelho e de Baby Consuelo) que ouvi falar dessa rota secular de peregrinação mística. Buñuel acompanha uma dupla de peregrinos (Laurent Terzieff e Paul Francoeur) que percorrem as estradas da Espanha rumo a Santiago de Compostela, passando por aventuras sucessivas que mal-e-mal têm relação umas com os outras. Logo em seguida, em 1971, Pasolini rodou O Decameron, em que aproveita histórias extraídas do clássico de Boccaccio, que se sucedem na tela sem que uma interfira na anterior ou na próxima.
Em setembro de 1972 Buñuel veio à carga com outro filme episódico, novelesco: O Discreto Charme da Burguesia, agora ambientado (principalmente) na França contemporânea, e narrando cenas soltas que iam desde o surrealismo mais descabelado até aqueles pequenos absurdos do cotidiano que o diretor cultivava com tanto deleite. E também em 1972 Pasolini fez o segundo filme do que viria a ser uma trilogia: Os Contos de Canterbury, baseado na obra de Chaucer, um clássico da literatura inglesa, e igualmente estruturado como uma sucessão de episódios independentes.
Em junho de 1974, Pasolini concluía sua trilogia adaptando outra coletânea clássica de contos, As Mil e Uma Noites. E em setembro de 1974 Buñuel lançava na França O Fantasma da Liberdade, que seguia de perto a estrutura fragmentada dos filmes anteriores, e dispensava cada vez mais o uso de personagens-guia, os quais figuravam em dois ou três episódios curtos e sumiam de vez (quase todos).
Os dois diretores pararam por aí, porque as obras finais de ambos (Este Obscuro Objeto de Desejo, Salò/Sodoma) não têm essa estrutura episódica. Mas é notável que no espaço de seis anos dois dos maiores diretores europeus tenham produzido seis filmes em que uma nova forma de estrutura era proposta e aceita – todos os filmes tiveram boas bilheterias e prêmios em Festivais. Pasolini recorria às histórias da tradição oral preservadas por autores clássicos; Buñuel inventava seus próprios esquetes surrealistas, com uma ou outra citação de episódios tradicionais. Juntos, os dois produziram um curioso interlúdio narrativo no cinema europeu, que, ao que eu me lembre, nunca mais foi revivido com tal intensidade e mestria.
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