Em geral faço no fim do ano estes pequenos balanços de minhas leituras, mas desta vez vou fazer diferente. Até porque quando chega dezembro tenho dificuldade para evocar detalhes de livros lidos nos primeiros meses... Enfim, vai ser desse jeito.
“Um estranho tão familiar” de George Amaral (São
Paulo: Bandeirola, 2023)
Dentro dos estudos
sobre literatura fantástica, este ensaio de George Amaral usa o conceito de
“estranheza” para comparar as estratégias narrativas de diferentes gêneros
literários. Em capítulos claros e bem argumentados, vemos a “ostranenie” dos
formalistas russos, o “distanciamento brechtiano” no teatro, o “uncanny”
(“Unheimlich”) estudado por Freud, o “estranhamento cognitivo” com que Darko
Suvin definiu a ficção científica... Em todas essas formas, a tentativa de
“acordar” o leitor/espectador de sua modorra mental, fazê-lo ver algo familiar
como se o estivesse vendo pela primeira vez, fazê-lo perceber, por uma nova
contextualização (que no caso da FC pode envolver mudanças bruscas no Tempo e
no Espaço) a verdadeira dinâmica dos fatos.
“Giacomo Joyce” de James Joyce (Paris: Gallimard, 1973, trad. Yves Malartic)
Oscar Wilde dizia
ser capaz de resistir a tudo, menos a uma tentação; eu não resisti quando vi na
barraquinha de livros da Praça Afonso Pena esta tradução francesa da noveleta
romântica de Joyce, pelo preço bastante acessível de 3 reais. “Giacomo Joyce” é
uma narrativa compacta, cheia de um lirismo distanciado, com olhos de lince
para detalhes do ambiente e dos gestos humanos. Foi escrita entre 1911 e 1914, antes
que o autor embarcasse no gigantesco projeto do Ulisses, e conta a
paixão reprimida de um autobiográfico
professor de inglês, em Trieste, por sua jovem aluna judia. Mais que uma
narrativa é o registro impressionista de quadros sucessivos em que o professor
rumina consigo mesmo seu encantamento pela “flor inodora” com quem convive.
“Giacomo Joyce” já foi traduzido no Brasil por Paulo Leminski (Ed. Brasiliense,
1985) e por José Antonio Arantes (“Folhetim”, Folha de S. Paulo, 10-6-1984). É
um pequeno camafeu, comparado à catedral do Ulisses, cheio de delicadas
belezas e de surpresas intrigantes.
“Riacho escuro” de Marta Pessoa (Sete Autores, 2024)
A literatura
sertaneja se confunde às vezes com o gênero das “sagas familiares”, que se
pratica em todos os continentes. Histórias de uma família ao longo de décadas e
gerações; às vezes ao longo de séculos. Marta Pessoa (“Zignau”, “É Tempo de
Cuidar”) é sertaneja e conhece de perto o peso desses vínculos de sangue, cartório,
terras, lealdades, paixões e ódios. “Riacho Escuro”, seu primeiro romance,
começa com o desaparecimento do filho de um fazendeiro e vai entrelaçando, ano
após ano, uma rede de intrigas, vinganças, segredos e revelações. A prosa é
segura e precisa, a ambientação é fiel sem carregar nas tintas do
“nordestinismo”. Alguns dos segredos revelados são cruéis, mas como diria algum
personagem, cruel é a vida.
“Memorial do Esqueleto e Outros Contos” de Aldo Lopes de Araújo (Natal: Offset / Sebo Vermelho, 2024)
Aldo Lopes é
contista e romancista no mesmo tecido e no mesmo corte. Igualmente à vontade na
ambientação urbana e na rural, no realismo lógico e no realismo mágico, ele faz
do Sertão um terreno fértil para o insólito, o grotesco, o brutal. Neste seu
mais recente volume de contos, ele remexe no baú-sem-fundo das histórias de
assombrações, superstições, maldições de família, onde reescreve episódios incrustados
em nossa memória cultural, desde Machado de Assis (“Uns braços”) à Bíblia
(“Estátuas de Sal”, “Adeus, Deus”). “A maldição de Princeza” é um gótico
sertanejo arrepiante; “Memorial do Esqueleto” traz uma versão meio fescenina da
lenda do homem que vende o próprio esqueleto antes de morrer. Duas histórias
curtas têm uma concisão e um peso verbal admiráveis: a que abre o livro (“O
gancho do teu braço em meu pescoço”) e o que o encerra (“Arquivos dos
portais”).
“Se um Viajante numa Noite de Inverno”, de Ítalo Calvino (1979; Círculo do Livro, s/data, trad. Margarida Salomão)
Este é um livro que
sozinho rende um ano de Mundo Fantasmo, e certamente voltarei a ele no futuro.
Calvino é um fabulador, bom contador de histórias, e consegue fazer um livro
cheio de conceituações sobre o ato de escrever sem torná-lo um livro chato.
Aqui, ele realiza seu sonho confesso de fazer um livro só feito de começos de
livros. Um casal de leitores se depara com um livro misterioso cujo meio-e-fim
estão sempre faltando, e cada vez que adquirem uma cópia se deparam com o
“começo” de um novo livro, que também não acaba. Calvino discute fake news (sem
usar esse termo – o livro é de 1979), literatura eletrônica, tradução,
picaretagens editoriais, idiomas em desaparecimento, a arte da narrativa... Um
livro para passar a vida relendo.
“Traduzir-me”, de João Batista de Brito e Sérgio de Castro Pinto (João Pessoa: Idéia, 2024)
Este volume feito a
quatro mãos é uma aventura tradutória de João Batista de Brito, crítico de
cinema com respeitável carreira e vários livros publicados. Ele fez uma seleção
de poemas de Sérgio de Castro Pinto, outro nome indiscutível nas letras
paraibanas, e os verteu para o inglês. Os versos de Sérgio, curtos, sintéticos,
extremamente concisos, parecem à primeira vista fáceis de traduzir. Ledo engano, diz João Batista, porque o jogo
de polissemias, que é uma das marcas características do poeta se esvai o tempo
inteiro na tradução, onde dificilmente se pode encontrar uma palavra que
contenha em si as mesmas duas faces. Ainda assim, o tradutor encontra caminhos
e produz versões agudas, sólidas. Falei que era um livro a quatro mãos mas
poderia dizer seis, porque um terceiro amigo se faz presente, o artista Flávio
Tavares, com uma série de desenhos inspirados (não sei se todos) nos poemas escolhidos.
O jornalista e poeta Astier Basílio assina o prefácio, o que torna este pequeno
volume um instantâneo da cultura da Paraíba neste começo de século.
“A exumação do corpo de Maria Saraiva de Araújo – Tramas e intrigas na Vila Nova de Pombal do século XVIII” de Jerdivan Nóbrega de Araújo (João Pessoa: Idéia, 2024)
A cidade de Pombal
é, na Paraíba, uma das que têm sua história, memória e cultura mais bem
documentadas, graças a um punhado de historiadores e memorialistas como
Jerdivan Nóbrega de Araújo, José Tavares de Araújo e Werneck Abrantes. Em
parceria ou isoladamente eles vêm cobrindo sem cansaço o passado histórico da
cidade, seja numa visão geral da evolução desta, seja no registro de fatos e
vultos específicos. “A exumação...” é
o relato fascinante de um possível crime ocorrido em 1784, com a morte de Maria
Saraiva, esposa do capitão-mor Francisco de Arruda Câmara, um potentado local
com muito poder e numerosos inimigos. Depois de sepultada a defunta, brotaram
boatos de que ela teria sido envenenada pelo marido, o que deu motivo para um
inquérito, a convocação de dezenas de testemunhas e a exumação do corpo da
suposta vítima. A reconstituição minuciosa feita por Jerdivan Nóbrega se apoia
na transcrição de documentos da época e na comparação de fatos e depoimentos
para extrair uma versão plausível dessa morte misteriosa, que já tem quase dois
séculos e meio. É uma mistura de reportagem de crime real e reconstituição histórica, mais um episódio
fascinante (às vezes brutal) e bem documentado do passado da cidade sertaneja.
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