terça-feira, 30 de julho de 2024

5087) A tradução digital (30.7.2024)




(capa: Lee Rosenblatt) 
 
 
Estive em São Paulo num bate-e-volta para uma palestra no Congresso SINTRA 2024, o encontro do sindicato de tradutores e intérpretes do Brasil. Graças ao convite de Isabel Vidigal e Valéria Gauz, tive a chance de falar para uma platéia atenta e generosa mas, mais do que isto, acompanhei palestras e debates sobre as armadilhas e as loterias da tradução literária (com Marcelo Backes), o trabalho dos intérpretes simultâneos, a atuação dos intérpretes de línguas indígenas na Amazônia (num valioso depoimento de Jaime Mayuruna)... Para não falar nos encontros e reencontros com amigos e colegas de várias partes do Brasil. 
 
Um tema percorreu de ponta a ponta as palestras no palco e as confabulações durante os coffee breaks: a tradução digital, através das variadas máquinas de Inteligência Artificial disponíveis. Foi uma questão vividamente presente nas palestras de Danilo Nogueira, Dirce Waltrick do Amarante e Sandra Garcia. 



(Saul Steinberg)
 

A questão mais recorrente é: a tradução por I. A. vai substituir a tradução humana? Vai nos desempregar? 
 
Lembro muito bem o arrepio de horror que na década de 1980 percorreu a espinha de todos os bateristas brasileiros quando começaram a aparecer em nossos palcos as primeiras baterias eletrônicas. 
 
Lembro das primeiras câmeras fotográficas digitais transformando qualquer dona-de-casa ou qualquer adolescente num virtuose da Agência Vogue, e causando um reboliço de protesto nos fotógrafos do celulóide-e-papel.
 
E o mesmo furacão de ameaças percorreu de ponta a ponta o acampamento dos ilustradores de pena, guache e nanquim diante do desembarque das naves-mães alienígenas do Corel Draw com seus “18 milhões de cores” e do Photoshop. 
 
E aí recorro à advertência do decano Danilo Nogueira: “Você não vai perder seu trabalho para a tecnologia, e sim para uma pessoa capaz de usar a tecnologia melhor do que você”. Porque a tecnologia já veio, já chegou e já está aí. O zum-zum-zum em torno dela não é mais do que o pipôco do foguetão visto à distância: é o barulho de algo que já aconteceu e é fato consumado, mesmo que muita gente só perceba agora. 
 
Sempre cabe a ressalva de que tecnologias desempregam, sim, porque geralmente fazem um trabalho de modo mais rápido, mais previsível, mais econômico. No entanto, os que dominarem a tecnologia têm mais chance de se manterem à tona. 
 
Quem está fazendo essas traduções são máquinas, e com isto dizemos: softwares, algoritmos, processos capazes de reconhecer, interpretar e comparar textos, e estabelecer equivalências entre eles, baseadas em avaliações estatísticas. Essas “máquinas”, contudo, não entendem as palavras como nós as entendemos, relacionando-as com as experiências corporais e sensoriais que temos na assim-chamada “vida real”. 
 
Se eu preciso receber um dinheiro mas por algum motivo meu nome não pode constar nos documentos, eu chamo um amigo e digo: “Vem cá, quero que você seja meu laranja”. Noutro contexto, a palavra me evocaria uma fruta amarelada, acidoce e suculenta; no contexto presente, me evoca um vulto sem rosto e fora-de-foco, interpondo-se numa transação para facilitá-la. 
 
O software tradutório não precisa evocar essas referências. Ele apenas constata que geralmente quando a palavra aparece no feminino corresponde a um tipo de contexto, e quando aparece no masculino cumpre outras funções. Confirma numericamnte a coerência estatística entre esses dois usos, anota as exceções para não esquecer, mas atribui um valor provável ao termo e o oferece ao usuário. Tudo isto em alguns segundos. 
 
Os cientistas, ansiosos para nos tranquilizar, asseguram: “A Inteligência Artificial é burra, é cega, não tem a menor idéia do que está fazendo. Apenas foi ensinada a fazer, e faz”. 
 
Dirce Waltrick do Amarante, em sua palestra no congresso do SINTRA, fez uma boa analogia com o conto de Philip K. Dick “Autofac” (1955, em Galaxy). Nele, “autofábricas” continuam a produzir e distribuir produtos, às cegas, para uma humanidade que não necessita mais deles, depois de um conflito mundial. Quantidades imensas de matéria-prima são desperdiçadas em produtos inúteis enquanto gêneros de primeira necessidade são escassos. Para tentar quebrar o círculo vicioso de produção às cegas, os sobreviventes tentam sabotar as “autofábricas” enviando mensagens de reclamação cheias de palavras inexistentes, para provocar um “bug”. 



("Galaxy", novembro 1955)

 
O recurso usado pelos personagens de Dick lembra as ações do detetive Lemmy Caution no filme Alphaville (1964, Jean-Luc Godard), que ao tentar fugir da cidade dominada por um onipresente supercomputador começa a recitar poesia, com o intuito de provocar um curto-circuito lógico na mente antipoética da máquina. 
 
Essa “cegueira” da Inteligência Artificial com que estamos começando a conviver tem a ver com o seu estágio ainda engatinhante. As I.A. atuais produzem resultados incomparavelmente superiores ao de máquinas que vínhamos usando, como Babel Fish, Google Translator e outras. É o instrumento ideal para o mundo corporativo, para traduzir ofícios, contratos, regulamentos, estatutos, regimentos internos, relatórios, manuais de instruções. 
 
Serve também para essa prolífica indústria editorial de aeroporto, em cujas livrarias o que mais se vê são livros tipo Seis Conselhos Para Ser Um Vendedor Campeão, As Bases do Empreendedorismo, Quem Faz o Sucesso é Você, Nunca Aceite Um Não Como Resposta, Seu Guia Para Técnicas de Vendas, A Administração Para Todos, Liderando Equipes e Conquistando Resultados, A Arte da Persuasão, Batendo Metas e Expandindo Horizontes, Princípios Organizacionais Para um Novo Milênio... 
 
Para traduzir textos com essa substância, que não passa de um purê verbal, a Inteligência Artificial é o melhor instrumento. Porque o mundo humano-biológico está repleto de instâncias em que pessoas de carne e osso precisam verbalizar como verbalizam os produtores automáticos de texto. Textos ansiosamente denotativos, em busca de uma precisão e de uma nitidez que, pelo seu raciocínio, se alcança usando as palavras mais previsíveis nas construções verbais mais estatisticamente consagradas. 
 
Tradutores literários (por enquanto) não precisam temer a concorrência dessas máquinas, porque o purê que uma máquina escreveu em inglês ou russo outra máquina consegue traduzir em italiano ou português. 
 
E vamos ser realistas, no mundo circulam mais textos administrativos, jurídicos, informativos, técnicos, burocráticos, etc. do que textos literários. E, mesmo no interior deste último segmento, a prosa pedestre é mais numerosa do que a prosa estratosférica. Usam-se mais as fórmulas consagradas do que as propostas inovadoras. Para cada romancista com voz própria, existem dez ou vinte sem rosto e sem estilo, meros recicladores do que já leram. 
 
Surge então uma situação curiosa, e não totalmente confortável. Quando a Inteligência Artificial erra, é corrigida pelos que a utilizam. Ela pede desculpas, admite que não compreendeu alguma forma de dizer (por ser excepcional, inventiva, original, etc.), e transfere essa forma para seu pecúlio de aprendizado. E com isso torna-se mais flexível, mais perceptiva. Não se torna mais inteligente. Torna-se apenas um algoritmo que ao invés de lidar com mil variantes lida com um milhão. Torna-se estatisticamente mais aparelhada para mimetizar a inteligência humana. 



(gráfico de Sandra Garcia)


Sandra Garcia advertiu, em sua palestra, que as imensas usinas de dados que alimentam os sistemas de Inteligência Artificial consomem hoje 14% da energia elétrica produzida, o que é mais do que o consumo total de muitos países. 
 
Não devemos nos animar pensando que dentro de poucos anos teremos algoritmos produzindo traduções satisfatórias do Mar Paraguayo de Wilson Bueno, ou do Tarantula de Bob Dylan, ou do Eunoia de Christian Bok. Não é para isto que tamanha energia está sendo gerada. A Inteligência Artificial não nos ameaça com péssimas traduções literárias nem com traduções cada vez melhores. 
 
Esse despautério de energia é para produzir softwares e algoritmos cada vez mais sofisticados e mais capazes de interagir consigo mesmos e entre si, ou para calcular estratégias militares, para conceber planejamentos de engenharia e indústria com melhores relações custo-benefício...
 
A literatura, para nosso bem e nosso mal, não manda no mundo. Ela não passa de um molusco agarrado ao casco de um transatlântico e tentando dar-lhe ordens. 



 
 





5 comentários:

Lisandro Gaertner disse...

Um outro caminho que o futuro nos reserva talvez seja a construção de uma linguagem ininteligível para máquinas, como já está ocorrendo com o Algospeak https://thenewinquiry.com/tiktok-llm/ Só os humanos poderão entender.

Braulio Tavares disse...

Lisandro, na série Netflix "O Problema dos Três Corpos" há uma sugestão de que a humanidade (eletronicamente vigiada por alienígenas ameaçadores) recorra a parábolas e alegorias para transmitir conteúdos, pois os aliens não compreendem linguagem figurada, metáforas, etc.

Lisandro Gaertner disse...

Ainda estou me devendo ver a série pois queria ler o livro antes...

Isabel Vidigal disse...

Obrigada por seu post, Braulio, outras tradutoras já compartilharam estas suas palavras no LinkedIn, assim como eu. Aliás, procurei seu nome lá e não achei. Sua presença e seus conhecimentos transmitidos em sua palestra foram mais do que elogiados, conquistou inúmeros fãs que já querem mais de Braulio Tavares. Que feliz ideia tê-lo convidado para o Congresso SINTRA 2024!

Anônimo disse...

Concordo com Isabel Vidigal em gênero, número e grau ;-)