terça-feira, 6 de agosto de 2024

5089) A idade de ouro (6.8.2024)



 
A História (me refiro ao passado comum que imaginamos ter acontecido antes do nosso tempo) é um conjunto de fantasias. Uma das coisas que me inquietavam no meu tempo de estudante era imaginar como teria sido a disciplina “História Geral” de um cara na minha idade, dois mil anos atrás, em Roma. Eles veriam o passado deles como nós vemos esse passado hoje no Brasil de 2016?  Eles viam a si próprios como uma espécie de “fim da História”, como nós gostaríamos de nos ver? 
 
Ariano Suassuna conta que uma vez, numa representação teatral amadora, um personagem ergueu a espada e disse: “Porque nós, cavaleiros medievais...”  E ele se espantou; oxente, o cara já se sabia medieval naquela época? Tem uma piada também sobre um arqueólogo que encontrou numa tumba egípcia moedas datadas de “500 anos antes de Cristo”. 
 
Fui matar saudades na Netflix e reassisti alguns episódios da série Downton Abbey, a história de uma mansão inglesa com sua família de lordes finíssimos e elegantes, e sua milícia de empregados pressurosos, discretos, observadores, que se revelam uma verdadeira máfia quando se reúnem na cozinha.
 
Downton Abbey disseca as primeiras décadas do século 20, na Inglaterra, os caminhos entrecruzados de nobres e criados, patriarcas e dondocas, moguls e sobreviventes da guerra. Mostra um tipo de alta sociedade que é fascinante, entre outras coisas, por ser tão ritualizada. É um grupo humano que chegou a um grau de inultrapassável refinamento no pensamento, na expressão, na graça sob pressão, e por ter a partir desse ponto começado a se dissipar, como uma escultura de fumaça acaba se dissipando. 
 
A série capta bem isto, porque é um ambiente onde há um discurso obrigatório, há uma atitude “que se espera” de A ou de B, há um compromisso prévio de que tais e tais comportamentos serão adotados, sem nenhuma interferência da pessoa em questão. 
 
A segunda temporada foi ambientada ao longo da I Guerra Mundial, e sugere que a guerra foi um grande aproximador de classes. Uma crise que virou oportunidade para muita gente. A série escrita por Julian Fellowes mostra certos nobres que não querem mais ser nobres, e vários criados que não querem mais ser criados. 



 
Já comentei aqui que a série sobre a família Crawley e a casa nobre de Grantham devem sua existência dramatúrgica ao Oscar que Julian Fellowes ganhou com o roteiro de Assassinato em Gosford Park, de Robert Altman. Ao aceitar a proposta de escrever a série, ele recuou o relógio do tempo para 1912 como ponto de partida. 
 
É a história tradicional do fim-de-semana com inúmeros convidados ilustres numa casa, e seus respectivos séquitos de criados. Um crime é cometido. Mistérios se esclarecem. Poderia ser o resumo de A Regra do Jogo, de Jean Renoir: um trançado de adultérios e seduções misturando nobres e plebeus, numa longa jornada noite adentro numa casa de campo. 



(Luís Buñuel, L'Age d'Or, 1930)


Antes do filme de Renoir, que é de 1939, temos uma outra festa em que se misturam, de forma até obscena, nobres e serviçais. O filme é A Idade de Ouro (L’Âge d’Or, 1930) de Luís Buñuel.  Surge neste filme uma das cenas clássicas da iconografia de Buñuel. Está acontecendo uma festa no salão elegante da mansão dos nobres; a certa altura o salão é atravessado por uma carroça de trabalhadores bêbados, fazendo o maior barulho, só que ninguém percebe. Esses “choques em fio descoberto”, típicos do Surrealismo, são periodicamente assimilados e esquecidos, e periodicamente imitados por alguém.  
 
Buñuel, quando fez L’Âge d’Or, era um franco atirador sem cacife, mas o torvelinho ideológico provocado por esses primeiros filmes o sustentaram ao longo dos compridos túneis que ele teve que atravessar. Suas imagens tinham uma verdade primal, visceral, que décadas depois avalizaram seus projetos da idade madura.  



(Downton Abbey)
 

Em Downton Abbey, nos seus serviçais, existe uma sucessão de camadas que vão desde uma profundidade geológica até uma superficialidade capaz de ser levada pelo primeiro vento. 
 
Alguns são serviçais há mil anos. Pretendem ser serviçais a vida inteira e sua felicidade pessoal depende disto. Outros estão ali apenas “passando uma chuva” e prontos para pegar qualquer trabalho mais movimentado e menos sujeito ao franzir de sobrolhos de um mordomo como Mr. Carson.  
 
Claro que Downton Abbey não tem nem de longe os mesmos propósitos que tinha o jovem Buñuel, ao fazer seus experimentos parisienses. Mas a série aprofunda, numa chave realista, de narrativa clássica, esse Raio-X de mostrar a trama e a urdidura das relações entre as classes, cada pessoa sabendo exatamente a que limites obedecer e de que restrições tirar partido. A vida se torna um jogo. 
 
Um aspecto que perpassa toda a literatura que tem como tema as “classes superiores”, seja isto quem for, é que seu mundo é ritualizado, planejado, hierarquizado, existe pouco espaço para a novidade, o improviso e a surpresa. 
 
Downton Abbey é um novelão feito com a seriedade de um documentário educativo, numa aplicada tentativa de fidelidade ao espírito e à imagem de uma época. É um filmão da Vera Cruz, voltado para o público de filmão da Vera Cruz. 
 



(Quino) 
 




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