A História (me refiro ao passado comum que imaginamos ter
acontecido antes do nosso tempo) é um conjunto de fantasias. Uma das coisas que
me inquietavam no meu tempo de estudante era imaginar como teria sido a
disciplina “História Geral” de um cara na minha idade, dois mil anos atrás, em
Roma. Eles veriam o passado deles como nós vemos esse passado hoje no Brasil de
2016? Eles viam a si próprios como uma
espécie de “fim da História”, como nós gostaríamos de nos ver?
Ariano Suassuna conta que uma vez, numa representação
teatral amadora, um personagem ergueu a espada e disse: “Porque nós, cavaleiros
medievais...” E ele se espantou; oxente,
o cara já se sabia medieval naquela época? Tem uma piada também sobre um
arqueólogo que encontrou numa tumba egípcia moedas datadas de “500 anos antes
de Cristo”.
Fui matar saudades na Netflix e reassisti alguns
episódios da série Downton Abbey, a
história de uma mansão inglesa com sua família de lordes finíssimos e
elegantes, e sua milícia de empregados pressurosos, discretos, observadores, que
se revelam uma verdadeira máfia quando se reúnem na cozinha.
Downton Abbey disseca
as primeiras décadas do século 20, na Inglaterra, os caminhos entrecruzados de
nobres e criados, patriarcas e dondocas, moguls e sobreviventes da guerra.
Mostra um tipo de alta sociedade que é fascinante, entre outras coisas, por ser
tão ritualizada. É um grupo humano que chegou a um grau de inultrapassável
refinamento no pensamento, na expressão, na graça sob pressão, e por ter a
partir desse ponto começado a se dissipar, como uma escultura de fumaça acaba
se dissipando.
A série capta bem isto, porque é um ambiente onde há um
discurso obrigatório, há uma atitude “que se espera” de A ou de B, há um
compromisso prévio de que tais e tais comportamentos serão adotados, sem
nenhuma interferência da pessoa em questão.
A segunda temporada foi ambientada ao longo da I Guerra
Mundial, e sugere que a guerra foi um grande aproximador de classes. Uma crise
que virou oportunidade para muita gente. A série escrita por Julian Fellowes
mostra certos nobres que não querem mais ser nobres, e vários criados que não
querem mais ser criados.
Já comentei aqui que a série sobre a família Crawley e a
casa nobre de Grantham devem sua existência dramatúrgica ao Oscar que Julian Fellowes
ganhou com o roteiro de Assassinato em
Gosford Park, de Robert Altman. Ao aceitar a proposta de escrever a série,
ele recuou o relógio do tempo para 1912 como ponto de partida.
É a história tradicional do fim-de-semana com inúmeros
convidados ilustres numa casa, e seus respectivos séquitos de criados. Um crime
é cometido. Mistérios se esclarecem. Poderia ser o resumo de A Regra do Jogo, de Jean Renoir: um
trançado de adultérios e seduções misturando nobres e plebeus, numa longa
jornada noite adentro numa casa de campo.
(Luís Buñuel, L'Age d'Or, 1930)
Antes do filme de Renoir, que é de 1939, temos uma outra
festa em que se misturam, de forma até obscena, nobres e serviçais. O filme é A Idade de Ouro (L’Âge d’Or, 1930) de Luís
Buñuel. Surge neste filme uma das cenas
clássicas da iconografia de Buñuel. Está acontecendo uma festa no salão
elegante da mansão dos nobres; a certa altura o salão é atravessado por uma
carroça de trabalhadores bêbados, fazendo o maior barulho, só que ninguém
percebe. Esses “choques em fio descoberto”, típicos do Surrealismo, são
periodicamente assimilados e esquecidos, e periodicamente imitados por alguém.
Buñuel, quando fez L’Âge
d’Or, era um franco atirador sem cacife, mas o torvelinho ideológico
provocado por esses primeiros filmes o sustentaram ao longo dos compridos túneis
que ele teve que atravessar. Suas imagens tinham uma verdade primal, visceral,
que décadas depois avalizaram seus projetos da idade madura.
(Downton Abbey)
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