segunda-feira, 6 de novembro de 2023

4999) "O Conde": o vampiro Pinochet (6.11.2023)



 
O filme de vampiros mais original e mais bem realizado dos últimos anos não veio dos estúdios ingleses da Hammer Films nem de Hollywood. Veio do Chile, e faz uma inesperada (mas plausível) junção do general Augusto Pinochet com a estirpe imortal dos Nosferatus.
 
O filme está disponível em streaming no Netflix.
 
O diretor Pablo Larraín gosta de abordar a vida de personagens históricos e dar-lhes uma guinada interpretativa, como fez com Jacqueline Kennedy-Onassis em Jackie (2016), com a Princesa Diana em Spencer (2021), com o poeta Pablo Neruda em Neruda (2016) e possivelmente em outros. Essa maneira desabusada de tratar a História é elevada ao cubo em El Conde, onde Pinochet é transformado numa espécie de Conde Drácula.




No filme, Pinochet é francês e já é vampiro desde a época da Revolução Francesa. Depois da queda dos reis (ele lambe a guilhotina que decapitou Maria Antonieta) dedicou-se a reprimir revoluções pelo mundo inteiro até chegar ao Chile.
 
“Mas o general Pinochet não morreu em 2006, aos 91 anos?...”  Aparentemente sim: o diretor mostra este episódio (incluindo a cusparada que um oficial deu no vidro do caixão durante o velório). Por baixo do pano, contudo, o velho vampiro recolheu-se clandestinamente a sua fazenda numa ilha distante. Ali, dispõe de enormes frigoríficos com corações humanos trazidos de suas expedições noturnas. 
 
O Conde Pinochet bate um coração no liquidificador com a nonchalance com que um baiano bate um abacate.



O filme de Pablo Larraín parte dessa premissa bizarra (mas emocionalmente tão plausível!) e constrói um filme que não hesito em classificar na minha rubrica de “Filme B Para Intelectuais”. Por que? Um filme “B”, por definição, é um filme que não tem as grandes expectativas de retorno financeiro que estrangulam filmes “A” como Titanic ou Avatar. É um filme que tem como horizonte de sucesso pagar as próprias despesas e provocar um certo rebuliço na audiência. 
 
O rebuliço é previsível no Chile, onde o General ainda tem muitos admiradores (e beneficiários). O Conde é mostrado como um vampiro, e sua família não fica muito atrás. A viúva e os cinco filhos adultos não são vampiros – o general recusou-se a mordê-los e dar-lhes assim a imortalidade. Por outro lado, têm uma sede permanente de dinheiro. A história dá uma guinada quando a família contrata uma contadora para dar um balanço nas centenas de contas bancárias secretas que o general tem pelo mundo afora. É o dinheiro acumulado em 15 anos de assassinatos políticos e rapina. 



(os filhos do vampiro) 
 
Larraín pontua o filme com uma porção de referências explícitas, mas bem encaixadas, que vão desde Nosferatu de Murnau até A Paixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, desde o Batman do cinema e dos quadrinhos até os romances sobre ditadores latino-americanos delirantes, e aqui a enumeração de autores iria longe: Garcia Márquez, Alejo Carpentier, Miguel Ángel Astúrias, Augusto Roa Bastos e até mesmo Edward Lucas White (El Supremo, 1916).
 
É curioso como os tropos e as imagens do filme de vampiro se encaixam com perfeição neste último gênero narrativo, e é surpreendente que essa junção não tenha sido mais explorada no passado. Eu, pelo menos, não lembro de nenhum exemplo de histórias sobre ditadores-vampiros. O máximo que me vem à memória é o romance de Kim Newman Anno Dracula (1992), em que a Rainha Vitória é uma vampira, mas, como dizia um amigo meu, todo britânico tem genes vampirescos. 
 
Em todo caso, se alguém organizar um festival de filmes sobre ditadores monstruosos, delirantes, este filme de Larraín não faria feio ao lado de Cabeças Cortadas (1970) de Glauber Rocha, O Último Rei da Escócia (2006) de Kevin MacDonald e talvez O Recurso do Método (1978) de Miguel Littín, Cobra Verde (1987) de Werner Herzog e outros. 
 
Se o Poder corrompe, e o Poder absoluto corrompe absolutamente, não é de admirar que um ditador-sanguinário qualquer seja retratado, principalmente na literatura, como uma espécie de Gollum desvairado, alucinado, em decomposição física e psíquica, precisando desesperadamente do Poder Absoluto para continuar respirando.
 
Outra associação de idéias pode ser feita entre El Conde e um filme argentino contemporâneo, Azor (2021) de Andreas Fontana. Nele, um jovem banqueiro suíço vem à Argentina pós-golpe militar para substituir um colega, e aos poucos vai conhecendo os figurões políticos locais, e se misturando na trama de denúncias, traições e crimes políticos. Aqui, sem recurso ao vampirismo, mostra-se o mecanismo simples que faz de toda ditadura um assalto permanente à mão armada, onde pessoas são mortas, propriedades são confiscadas e repartidas entre os assassinos, e fica tudo por isto mesmo. 




Outra produção contemporânea, que ainda pretendo comentar aqui, é a série Netflix A Queda da Casa de Usher (2023), de Mike Flanagan. Há um paralelo perceptível (mas inconsciente, e inevitável) entre a família Pinochet do filme e a família Usher da série. Famílias milionárias, regidas por um patriarca impiedoso e com mão de ferro, e com os filhos se escoiceando por preferência, atenção, vantagens e dinheiro. 
 
Larraín faz o que chamei de “filme B” (sem muita grana, e sem muita expectativa de grana) mas com as facilidades tecnológicas de hoje em dia. Não é o mesmo “filme B” que Roger Corman fazia nos anos 1960. Ele narra esta fábula extravagante (e estranhamente plausível) com o auxílio de uma direção de arte (Tatiana Maulen) e uma fotografia (Edward Lachman) que nem sempre se encontra em filmes muito mais caros e muito mais ambiciosamente produzidos. Tendo como ponto central um vampiro que voa, e as paisagens desoladas e frias das ilhas chilenas, a fotografia em tela larga (proporção de 2.00 : 1) e preto-e-branco, produz uma incrível impressão da vastidão dos espaços abertos. 


 
O roteiro do filme é bem amarrado, e tem algumas surpresas-revelatórias que não posso comentar aqui, a não ser para dizer que tudo é extremamente verossímil. A herança tenebrosa da ditadura Pinochet ainda tem peso sobre o Chile; é diferente do que aconteceu na Argentina, onde os torturadores e saqueadores foram condenados nos tribunais, independentemente de seus uniformes ou de seus cargos políticos. No Chile, Pinochet escapou impune, e talvez seja isto que sugeriu ao diretor a imagem do vampiro que não morre nunca, que parece estar dormindo num ataúde mas de noite se levanta para saquear mais uma vez. 
 
 
 





Um comentário:

Anônimo disse...

Que pena nenhum brasileiro ter tido essa ideia antes, ou até depois, trocando Pinochet por Bolsonaro!