quinta-feira, 9 de novembro de 2023

5000) Borges: biblioteca, livro, palavra, letra (9.11.2023)



 
A obra de Jorge Luís Borges existe numa zona crepuscular entre a literatura e a vida real. Não é exagero dizer que o próprio Borges existia numa área mais pra lá do que pra cá, mais feita de estórias do que de matéria. Tímido, cego, introvertido, insone, dono de uma memória extraordinária, seu mundo mental era decerto mais vívido e mais estimulante do que a realidade física de seu corpo. Talvez por isto suas imagens poéticas relativas ao corpo sejam tão tocantes. São vislumbres de alguém tentando não perder o contato com uma parte minúscula, mas essencial, de si mesmo: a sua parte feita de carne e osso. 
 
Borges foi um dos raros leitores de Kafka capazes de compreendê-lo por completo. Nós outros vemos a obra do escritor tcheco como vemos as catedrais de Gaudí ou os poemas em prosa de Lautréamont: admiramos o resultado, mas não somos capazes de reconstituir os processos mentais que o produziram.



("Biblioteca de Babel", projeto de Maria Cano)
 

A biblioteca
 
Borges demonstrou ter compreendido Kafka quando concebeu seu mais célebre conto de horror, “A Biblioteca de Babel”. É claro que a crítica literária não classifica este conto como pertencente a esse gênero. Resenhadores do mundo inteiro concordam que a literatura de horror é apenas o domínio preferencial dos vampiros, dos lobisomens, dos mortos-vivos e dos psicopatas que comem carne humana. 
 
“A Biblioteca de Babel” é o pesadelo definitivo de quem lê. Um pesadelo capaz de expulsar dos seus domínios, inclusive, o Conde Drácula e o canibal Hannibal Lecter. Um universo fechado, ilimitado, talvez infinito, onde não existem a terra, os rios, as árvores, as montanhas, o céu, os pássaros. Um universo insetóide, hexágonos compactos cobertos por estantes de livros. 
 
Em Babel, no interior do Mundo do Livro, só existe o livro, a página, o texto. É o mundo de um homem capaz de prever a cegueira que lhe estava geneticamente destinada. Borges publicou “A Biblioteca de Babel” em 1941, quando ainda enxergava o suficiente para ler e escrever. Na famosa conferência “A Cegueira” (em Sete Noites, Ed. Max Limonad, 1983, trad. João Silvério Trevisan) ele fixa em 1955 o momento em que soube, oficialmente, que estava cego.   
 
Uma cegueira cruel, que não lhe proporcionou sequer o repouso da escuridão, por mais que fechasse ou cobrisse os olhos.
 
Vivo em um mundo onde há livros que não têm letras, ou pessoas que não têm rostos, ou cores que estão reduzidas a uma espécie de verde acinzentado, um mundo do qual desapareceram completamente o preto e o vermelho. Vejo o amarelo, e todo o restante vejo esverdeado, acinzentado, azulado.
(Dicionário de Borges, Bertrand Brasil, 1990, trad. Vera Mourão)
 
A biblioteca-universo era uma metáfora do mundo pós-cegueira, que ele antevia assim, ocupado apenas por livros quase ilegíveis. Uma biblioteca iluminada por uma luz que ele descreve cruelmente como “uma luz insuficiente, incessante”
 
Esse conto tornou-se um dos mais famosos de Borges, a ponto de muitos leitores verem nele uma espécie de Paraíso, porque o argentino dizia conceber o Paraíso como uma biblioteca; esquecem que essa biblioteca absurda, coberta com “léguas e léguas de cacofonias insensatas” é o contrário de uma biblioteca desejável. O conto não é uma fantasia desejante, é um pesadelo de horror. 




O livro
 
Depois que “A Biblioteca de Babel” adquiriu fama, uma amiga de Borges, Letizia Álvarez de Toledo, lhe sugeriu que era desnecessário conceber uma biblioteca ilimitada para representar o Universo. A imagem poderia ser de um livro ilimitado, um livro com infinitas páginas de espessura infinitesimal. Surgiu daí a inspiração para o conto “O Livro de Areia”, publicado em 1975 no livro do mesmo nome. 
 
O conto é narrado pelo vagamente auto-ficcional personagem de tantas outras histórias de Borges, personagem que às vezes ostenta seu nome e outras vezes detalhes biográficos negligentemente inseridos na narração. Um homem desconhecido bate à sua porta e lhe oferece um livro, e ao manuseá-lo ele percebe ser um livro infinito, inesgotável. 
 
Abri-o ao acaso. Os caracteres eram-me estranhos. As páginas, que me pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas, como uma bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em versículos. No ângulo superior das páginas havia algarismos arábicos. Chamou-me a atenção que a página par trouxesse  o número (digamos) 40.514 e a ímpar, a seguinte, 999. Virei-a; o dorso estava numerado com oito algarismos.
(O Livro de Areia, Ed. Globo, 1999, em Obras Completas III, trad. Lígia Morrone Averbuck, p. 80)
 
Uma vez fechado o livro, é praticamente impossível reencontrar uma página qualquer. O vendedor explica a “Borges”: 
 
“O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.” (p. 81) 
 
A biblioteca total foi comprimida num volume único de um “inusitado peso”. O narrador mergulha nele, faz anotações intermináveis, deixa-se mesmerizar pelo seu caráter inesgotável. Passa a achá-lo “monstruoso”, sente que aquilo não passa de “um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade”.  
 
Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse também infinita e sufocasse com fumaça o planeta.  (p. 82) 



A palavra
 
Esse pesadelo ilegível assaltou Borges em plena cegueira, aos 75 anos, mas de certa forma vem contrabalançado por outro conto no mesmo Livro de Areia. É o conto intitulado “Undr”, a história de um bardo que vai parar num reinado remoto, o dos Urnos, e ali vê um dos rapsodos locais cantar diante do rei um poema longo que lhe parece constar de uma única palavra. Outro poeta local esclarece: 
 
– (...) Não definimos cada fato que inflama nosso canto: nós o ciframos em uma única palavra que é a Palavra.
Respondi:
– Não pude ouvi-la. Peço-te que me digas qual é.
Vacilou alguns instantes e respondeu:
– Jurei não revelá-la. Além disso, ninguém pode ensinar nada. Deves procurá-la sozinho. Apressemo-nos, que tua vida corre perigo. (p. 56-57) 
 
Começa então, para o Bardo que narra essa história, uma vida nova cheia de ofícios, tarefas, aventuras, trabalhos, experiências, aprendizados. Num longo parágrafo, Borges recorre a um de seus recursos habituais, a enumeração de eventos díspares que se contradizem, se complementam, abrem possibilidades narrativas improváveis... Em menos de uma página ele resume acontecimentos capazes de encher mais de uma vida humana, como nas linhas iniciais de “A Loteria em Babilônia” e em trechos de “O Imortal”. 
 
E ao longo desse lento aprendizado de cicatrizes, ele persegue a Palavra:
 
No curso do tempo fui muitos, mas esse torvelinho foi um longo sonho. O essencial era a Palavra. Uma ou outra vez não acreditei nela. Repeti para mim que renunciar ao belo jogo de combinar palavras belas era insensato e que não há por que indagar sobre uma só, talvez ilusória. Um missionário me propôs a palavra Deus, que recusei. (p. 57) 
 
Um dia ele julga ter encontrado a Palavra, e retorna ao palácio do rei, e ao amigo que o protegera anos atrás. Pergunta pelo rei, e o amigo responde (com a fina ironia borgiana em relação ao Poder político): “Já não se chama Gunnlaug. Agora seu nome é outro”. 
 
E o amigo lhe revela então a Palavra:
 
Disse a palavra Undr, que quer dizer maravilha.
 
Na ficção de Borges (não me meto a afirmar que nas etimologias reais) “Undr” é um remoto ancestral nórdico da palavra inglesa Wonder, que quer dizer “maravilha”. A capacidade de alguém se deslumbrar, se fascinar, se encantar por alguma coisa. A curiosidade que conduz às revelações, às epifanias. Há mais de cem anos os leitores de ficção científicas definem como parte integral desse gênero literário o “sense of wonder” (que os fãs dos anos 1930 grafavam “sensawunda”). 



“Wonder”, como verbo, significa também imaginar, matutar, devanear, avaliar possibilidades de modo meio aleatório e sem compromisso, apenas experimentando, concebendo hipóteses como quem, ao cigarro, forma anéis de fumaça com a boca. “To wonder” é especular, supor, pensar experimentalmente enquanto dá de ombros para o resultado. 
 
Extrapolando, vejo também nessa raiz remota Undr uma tataravó encarquilhadazinha do verbo inglês “to wander” = vagar, andar sem destino, peregrinar, vagabundear, sair de mundo afora, caminhar sem pressa e sem compromisso. A curiosidade pelo mundo e pelas maravilhas (boas e más) que ele nos reserva. 
 
Com o conto “Undr”, publicado aos 75 anos, Borges parece estar exorcizando seu pesadelo da biblioteca de Babel e do livro de areia. Quando toda a poesia do mundo se concentra numa só palavra, essa palavra é uma libertação. Ao invés de um cárcere de palavras, é uma alforria de experiências que trazem consigo a exaltação de viver. O duelo de espadas e o amor de uma mulher, não surpreendentemente, estão entre as “maravilhas” que o tímido Borges, o pudico Borges, ansiava encontrar no mundo que não via. 
 

A letra
 
E o percurso se fecha, curiosamente, com uma volta ao ponto de partida, ao Borges ainda jovem que publicou El Aleph, em 1948. Um Borges que ainda era capaz de se apaixonar e de dedicar um conto a uma de suas musas platônicas: no fim do texto, vem a dedicatória: “A Estela Canto”. 
 
O Universo, que já fora uma biblioteca, um livro e uma palavra, colapsa agora integralmente numa única letra, o aleph, o alfa, o A, o início de tudo. O que é o Aleph? É um ponto situado (prodigiosamente) na casa de “Beatriz Viterbo”, a musa ficcional desse Borges que conta a história com incredulidade e maravilha. Após a morte dessa “socialite” que ele amou de perto e sem esperança, ele vem a saber que na Rua Garay, numa escada que conduz ao porão, é possível encontrar um Aleph, um ponto de onde se avista todo o universo. 
 
Meio descrente o narrador desce até lá – e nessa letra que sintetiza o universo ele avista (e lá nos traz Borges outra de suas enumerações caóticas) tudo que existe no mundo. Tudo que ele sabe e que não sabia, tudo que ele desejava ver e o que não desejava. 
 
Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um roto labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listras de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia... 
(“O Aleph”, em O Aleph, Ed. Globo, 1972, trad Flávio José Cardozo)
 
A obra e o pensamento de Borges parecem, assim, oscilar entre um universo composto unicamente por livros e páginas (“A Biblioteca de Babel”, “O Livro de Areia”) – e um universo composto por experiências reais (“Undr”, “O Aleph”). Afastando-se de um, o mundo das coisas, ele se resignava ao outro, o mundo dos livros; e depois voltava ao primeiro. 
 
Em todo caso, Carlos Drummond dizia que “a vida, quando vai aos livros, é para voltar mais vida”. Toda a literatura de Borges descreve esse movimento em espiral que ora o aproxima ora o afasta desse mundo do qual ele não conseguia participar por completo, mas que sempre foi o centro de sua existência – o mundo das coisas, o que sempre desejou, não o dos livros, o que lhe coube.  



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