segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

4892) Leituras 2022 - 1 (12.12.2022)



Não costumo fazer listas de “dez melhores”, mas sempre gosto de dar um balanço, no fim do ano, de alguns livros que li e que por variadas razões não comentei aqui no blog. Quisera eu ser daqueles sujeitos organizados que “ficham” cada livro que leem, redigindo pelo menos meia página de observações. Não é o meu caso. Estas anotações, porém, podem servir como dicas de leitura, ou para que o leitor compare com suas próprias impressões.

FICÇÃO CIENTÍFICA

“Picnic on Paradise” (1968), de Joanna Russ

É um dos livros pioneiros das super-heroínas da FC. Alyx é uma agente transtemporal que logo na primeira página dá uma chave-de-perna num policial com o dobro de sua altura e do seu peso, estatelando-o no chão. Ela está ali para servir de guia a um grupo heterogêneo de turistas num planeta gelado e inóspito. Os turistas são todos riquinhos e reclamam de tudo. O passeio se envolve com uma guerra e vira um pesadelo. Morre gente (de verdade). Começa como uma HQ descolada e aventurosa, vai ganhando contornos dark à medida que os conflitos pegam fogo. A prosa de Russ é rápida, incisiva. Em 1968 ela já estava desconstruindo clichês que muita gente considerou novidade no ano passado.

 


AUTOR NACIONAL

“Gótico Nordestino” (2022), de Cristhiano Aguiar

Um dos livros mais premiados do ano, e com justiça, pois são contos imaginativos, escritos numa prosa segura. Numa resenha que fiz para a revista 451, comentei o fato de que a nordestinidade das histórias se dá de modo mais sutil do que o aparecimento dos famigerados “elementos típicos”. Cristhiano retoma alguns temas do horror clássico, mas evita fazer aquela série infindável de referências que muitos autores colocam como piscadelas-de-olho para os leitores-fãs, mostrando que leram os mesmos livros e conhecem as mesmas histórias.

Leia mais aqui: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura-brasileira/o-terror-vem-da-alma

 


HISTÓRIA

“Memória da Cidade do Rio de Janeiro” (1955), de Vivaldo Coaracy

Acho fascinantes as descrições e as anedotas sobre a vida no Rio no tempo da Colônia, do Império... Vivaldo Coaracy (que também se assinava “V. Cy.”) tem uma prosa saborosamente antiquada, dá a impressão daqueles intelectuais de casaca e pince-nez, muito cultos, muito refinados. A gente se perde às vezes na geografia das ruas e dos logradouros porque o “presente” do livro é 1955, e de lá para cá o Rio já trocou de pele várias vezes. É um livro que pretendo reler, porque não apenas nos revive o fascínio dos tempos passados como nos consola um pouco da tristeza de ver a cidade sendo destruída e recriada – ela sempre foi assim.

 


HISTÓRIAS DE FANTASMAS

“The Book of Dreams and Ghosts” (1897), de Andrew Lang

Este livro é um clássico da “historiografia fantasmagórica”; li numa reedição de 1974. Andrew Lang foi uma figura onipresente da Inglaterra vitoriana e sherlockiana. Era um daqueles intelectuais meticulosos e cultos, fascinado por pesquisas; escreveu e editou uma quantidade impressionante de livros. Foi membro da Folk-Lore Society, num tempo em que o conceito de “folclore” estava sendo criado (a palavra surgiu em 1846), e compilou uma importante coleção de contos de fadas, em nada menos que 25 volumes (1889-1913), a qual teve uma enorme influência na literatura inglesa. Como membro (e até presidente) da Society for Psychical Research, interessou-se profundamente pelas aparições de fantasmas – e compilou este livro, onde registra e comenta dezenas de casos de aparições, com um certo distanciamento e bom-humor, deixando sempre claro quando não acha nenhuma explicação “racional” para o ocorrido.

 


MEMÓRIAS

“Solo de Clarineta, 1 e 2” (1973, 1976), de Erico Verissimo

Érico, um escritor que sempre (re)lerei com prazer, escreve suas memórias à maneira convencional, atendo-se aos fatos, comentando-os, buscando a sinceridade e a veracidade. Estes livros são um complemento ideal para dois outros, que li na adolescência, sobre suas viagens aos EUA: Gato Preto em Campo de Neve (1941) e A Volta do Gato Preto (1946), e que recomendo sem reservas.

Eu não sabia nada de sua história familiar, e Solo de Clarineta dá uma série de retratos magníficos daqueles gaúchos épicos e sombrios, aquelas famílias introspectivas e ruidosas, aqueles homenzarrões encapotados que se metem em enrascadas homéricas. Talvez esta parte, que cobre mais da metade do primeiro volume, seja a mais reveladora e mais “literária”, porque puxa muito pela imaginação do menino, pelas conversas entreouvidas e semi-recordadas. É o princípio da recriação mítica dos antepassados que todos nós realizamos, querendo ou não.

Mais comentários aqui:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4873-paisagem-perturbada-15102022.html



“Um Cavalheiro da Segunda Decadência” (1966-72), de Hermilo Borba Filho

Já o pernambucano Hermilo romanceia sua própria vida, exagerando, delirando; suas memórias têm longas passagens surrealistas e episódios claramente inventados. Um Cavalheiro... é uma tetralogia, escrita num jorro inesgotável de prosa brilhante, caótica, sarcástica, auto-depreciativa, idealista, erótica. Margem das Lembranças (1966) conta a infância em Palmares e a iniciação etílica e sexual do menino “Borba”. A Porteira do Mundo (1967) mostra o jovem Borba no Recife, estudos e trabalhos caóticos, leituras, primeiros escritos, primeiras aventuras teatrais, primeira prisão política na ditadura Vargas. O Cavalo da Noite (1968) mostra Borba em São Paulo, como roteirista de cinema, redator de revista chique, publicitário, envolvendo-se com a burguesia paulista. Deus no Pasto (1972) o mostra de volta ao Recife, trabalhando para o governo de Miguel Arraes e indo parar de novo na cadeia, no golpe de 1964. Hermilo escreve no estilo roman à clef, alterando o nome dos personagens e das entidades (Ariano Suassuna é “Adriano”; Arraes é “Árias”; a revista Visão vira Mirante; etc.). Isto lhe dá liberdade para dizer o que bem quer, e não é pouco.

 


FICÇÃO CIENTÍFICA

“Secret Passages” (1997), de Paul Preuss

Este romance pode ser lido independentemente da aventura anterior do cientista Paul Slater: há um pequeno drama familiar que vem da primeira história, mas ocorre ao fundo, e é convenientemente explicado. O importante aqui é que Slater e sua esposa jornalista vêm a conhecer um físico grego que atrai os dois a Creta para lhes dar acesso a uma descoberta misteriosa. A parte mais substancial do livro é a vida deste grego, Minakis, que se tornou cientista depois que na infância serviu de guia, nas montanhas, aos arqueólogos que pesquisavam as ruínas minóicas de Creta.

O livro parte de uma trama arqueológica real (o arqueólogo John Pendlebury é um coadjuvante essencial na história) e atinge, em seu último terço, um breakthrough de Física que projeta a narrativa em plena ficção científica, além de fornecer uma resolução satisfatória à história de vida dos personagens. É uma experiência fascinante, porque cita-se muito a máxima de H. G. Wells de que basta uma grande idéia de FC para sustentar uma narrativa; a questão é que no livro de Paul Preuss essa idéia FC só se concretiza nas últimas 50 páginas. O leitor-fã, impaciente para reencontrar os tropos do gênero, talvez não espere tanto, mas o romance vale muito a pena.



AUTOR NACIONAL

“A procura de Chã dos Esquecidos” (Schoba, SP, 2013), de Carmelo Ribeiro

Um romance histórico, ou pseudo-histórico, ambientado na Paraíba de fins do século 18, quando a fome e o misticismo falavam no centro. A primeira parte reproduz as cartas trocadas entre o governador da capitania da Paraíba e o capitão-general de Pernambuco, seu superior. Já existe aí uma ironia sutil sobre a relação instável entre os dois atuais Estados, uma interdependência costurada com rivalidade.  O autor reconstitui nesse epistolário, com fluência e bom humor, o linguajar burocratês da época, tingido de ironia do século 21.  No final, a narrativa se projeta num fluxo de irrealidade cada vez maior, como nos filmes de Glauber Rocha onde o messianismo alucina as multidões, que se roem de fome e bradam aleluias, que seguem o primeiro maltrapilho capaz de orar em voz alta e de distribuir farinha de graça.

 

(continua)

 

 

 

 

Um comentário:

Carmelo Ribeiro disse...

Oi Braulio,

Obrigado pela leitura. Há muitos anos leio os seus livros e acompanho o seu blog. Foi uma alegria saber que você leu um livro meu.