4891) O Gabinete de Curiosidades de Del Toro (9.12.2022)
Uma das boas séries recentes do Netflix é esta série-antologia
produzida e co-escrita por Guillermo Del Toro, com oito episódios contando
histórias de terror. Algumas histórias são inéditas, outras são contos
clássicos de mestres do gênero.
Del Toro parece ter usado como premissa o retorno ao terror
da pulp fiction de 80 anos atrás,
pelo menos na maioria dos episódios. É o terror da revista Weird Tales, que praticamente cimentou algumas estruturas do
gênero. Duas adaptações de H. P. Lovrecraft são de contos originalmente
publicados na revista, em 1927 (“O Modelo de Pickman”) e 1933 (“Os Sonhos na
Casa da Bruxa”). Outro conto arrepiante, de Henry Kuttner, saiu na WT em 1936
(“Os Ratos do Cemitério”). São histórias “de época” inclusive na ambientação.
As outras histórias são de autores contemporâneos, ambientadas
em épocas mais recentes, mas sempre exibindo um visual (cenografia, figurino,
objetos de cena, carros) que remete a décadas passadas. O episódio 8, “O
Murmúrio” mostra um casal de ornitólogos registrando os hábitos de aves numa ilha
distante, com gravadores e câmeras de filmar de modelos “vintage” que não
passarão despercebidos a quem já os manuseou.
A premissa da série é mais interessante do que seu
resultado final, que a despeito das muitas coisas bem feitas não traz nada de novo
além do habitual “um pouco mais daquilo
mesmo”, que é o cardápio da maioria das séries de TV.
Para ser sincero, a coisa que mais admirei na série
inteira foi o”gabinete” exibido pelo diretor-produtor na apresentação de cada
episódio: um daqueles prodígios de marcenaria e mecânica, típico do século 18,
um móvel enorme cheio de gavetas visíveis, gavetas secretas, painéis
deslizantes, fundos falsos, dobradiças embutidas, placas rotativas...
Fiz um paralelo visual desse móvel com a ambientação do
primeiro episódio, “Lote 36”. Trata-se de um daqueles enormes complexos de
boxes de depósito, onde a pessoa aluga um box e guarda ali o que bem entender. Um
homem compra num leilão, “no escuro”, o conteúdo de um box cujo dono faleceu, e
encontra ali alguns livros de magia negra. A câmera explora os intermináveis
corredores daquela estrutura que parece um mercado municipal, com boxes, boxes
e mais boxes trancados – o que nos dá a impressão de que por trás de cada uma
daquelas portas metálicas escondem-se segredos tão tenebrosos quanto os que
foram descobertos pelo personagem de Tim Blake Nelson.
A literatura popular se assemelha a isso, um corredor com
mil portas todas iguais, mas cada uma delas com a promessa de algo diferente.
Promessa que nem sempre se cumpre.
Uma coisa que me desagrada nessas séries é a fascinação
de todos pelo “gore”, pela exibição
fascinada e compulsória de ferimentos, mutilações, torturas físicas, violência
sádica. Não é novidade alguma no gênero – mas os efeitos visuais contemporâneos
são capazes de dar um realismo nauseante a isto, como se vê no episódio “A
Autópsia”, baseado numa noveleta de Michael Shea (Prêmio Hugo, 1981). Há um
verdadeiro deleite na apresentação da mutilação física; uma pornografia da
violência – o que leva muitos críticos acadêmicos a ver na literatura de horror
uma obsessão com o ódio ao corpo humano, o nojo ao corpo, o medo do corpo
humano.
O episódio 4, “The Outside”, tem uma premissa mais
interessante: a transformação gradual de uma mulher feíssima numa perua
empoderada, uma espécie de Cinderela ao contrário, porque a personagem paga um
preço alto (a monstruosidade, a loucura, o crime) para se transformar numa
beldade à altura de suas colegas de trabalho. O episódio tem ecos de The Stepford Wives, ao lidar com a
desumanização brutal que acompanha esse processo de “ficar a esposa ideal”
(mesmo, no presente caso, a contragosto do marido bobão mas sincero).
O episódio 7, “The Viewing”, é também ambientado num
cenário contemporâneo, e mostra um sujeito riquíssimo que traz para sua mansão surrealista
um grupo de artistas para conhecer uma raridade de sua coleção – um meteorito
misterioso. Todo o episódio é caricatural, exagerado; os efeitos especiais são
às vezes meio toscos. O total oscila entre um filme que se leva a sério e uma
sátira ao horror, mas de tal modo que acaba parecendo uma sátira involuntária.
Del Toro é um artista meticuloso, com uma imaginação
visual notável, e um faro excelente para narrativas insólitas. Eu compararia o
resultado final desta série com outro filme recente dele, Nightmare Alley (2021), com Bradley Cooper e Cate Blanchett. É um
filme tecnicamente impecável, brilhante, perfeccionista em todos os detalhes;
mas acaba sendo em muitos aspectos inferior ao filme em que se baseia, dirigido
por Edmund Goulding em 1947, com Tyrone Power. (Há versão integral no YouTube.)
Por que é inferior? Talvez por isso mesmo, por ser bem
feito demais, quando está penetrando num terreno onde o excesso de brilhantismo
estético dilui o drama e impõe um distanciamento. Tudo é muito nítido, num
território onde convém deixar uma margem ao que é indistinto, nebuloso, pouco
claro. Tudo é muito limpo, numa narrativa onde seria preciso deixar presente “a
vida como ela é”, com suas sujeiras e imperfeições. Os atores são tão bons que
o tempo todo vemos que são eles que estão ali, e não os personagens que
interpretam. (A personagem de Cate Blanchett, aliás uma das atrizes de que mais
gosto, é muito mais forte no filme original.)
Vou pegar carona num conceito de Marshall MacLuhan que
sempre me pareceu uma avaliação correta dos meios de comunicação visual.
MacLuhan dizia que quando vemos um filme excepcionalmente nítido e claro, tudo
nos é dado “de bandeja” e não fazemos outra coisa senão receber passivamente a
informação perfeita que nos é oferecida. Mas quando vamos assistir, por
exemplo, uma transmissão na velha TV em preto-e-branco, com sua imagem
pulverizada em pontos claros e escuros, temos dificuldade em interpretar a
sucessão de imagens e isso ativa muito mais fortemente nosso cérebro, nossa
capacidade intelectual de perceber, decodificar e assimilar.
Um meio “quente”, ou de alta definição (o cinema digital)
nos dá tudo pronto e mastigado. Um meio “frio”, ou de baixa definição (a
televisão P&B) nos dá uma informação limitada que exige nossa participação
mental ativa, constante.
Uma coisa é melhor que a outra? Não necessariamente. A
gente usa o que precisa naquela hora. Mas esse filme de Del Toro deixa o
espectador num território sem ambiguidade, sem mistério. Limitamo-nos a ver e
registrar aquilo que é mostrado com riqueza de detalhes e em alta definição.
Não há dúvida de que em vários momentos esse
perfeccionismo traz um upgrade para a
história. Na série do Gabinete, a
informação visual envolvendo contos que li há tempos, como os de Lovecraft e
Kuttner, enriqueceu minha visão deles (nossas visualizações pessoais de contos
raramente se parecem com as adaptações que vemos depois no cinema). Talvez este
seja, no entanto um lucro magro para uma despesa tão elevada, e para uma
arregimentação tão grande de talentos.
O cinema de hoje, com esta espantosa evolução da imagem e
do som digitalizados, infinitamente passíveis de aperfeiçoamento, corre o risco
de se transformar em algo como aqueles discos onde a qualidade técnica da
gravação é espantosa, mas a banda de rock ou o pianista clássico tocam como
robôs, sem um pingo de tensão emotiva que nos faça ansiar pela próxima frase
musical.
O Gabinete de
Curiosidades é – vou mandar aqui uma comparação que certamente dezenas de
colegas já fizeram na imprensa mundo afora – como o móvel que Del Toro nos
mostra na abertura de cada episódio: uma pequena maravilha de mecânica e de
design, mas com pouca coisa dentro de suas gavetas.
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