quarta-feira, 24 de agosto de 2022

4856) O papel do líder (24.8.2022)



(Moisés, por John Hembree)


Existe uma figura humana central, mais importante do que todos. É o Herói, é o Rei, é o Sumo-Sacerdote, é o General-em-Chefe, é o C.E.O., é o Presidente, é o Imperador, é o Líder...
 
Temos mentalidade monarquista. Precisamos de UM indivíduo onde focar nossas expectativas, nossa confiança, nossa obediência cega.  E, quando ele não corresponde, nossas expedições punitivas, com foices erguidas e archotes acesos.
 
Existem exemplos de líderes que se tornam arquétipos, alegorias da experiência humana.
 
Por exemplo: Moisés. Poucas figuras terão uma história pessoal tão cheia de episódios extraordinários, mas Moisés é sempre o símbolo evocado quando a gente quer falar de um Líder que não vive para presenciar a própria conquista. “Fulano de Tal foi uma espécie de Moisés, que conduziu o povo hebreu à Terra Prometida, mas morreu quando ela estava à vista, lá no horizonte...”
 
É o general ou presidente que morre antes do fim da guerra que ajudou a ganhar, como Franklin Roosevelt. É o craque da seleção que se machuca antes da decisão da Copa. É o líder oposicionista que segura o tombo durante os anos negros e morre às vésperas da redemocratização. Os exemplos são muitos e evocam uma imagem de tragédia por um lado (“Que pena! A pessoa que mais merecia, e o Destino negou!...”) e por outra uma imagem de desprendimento – como se ele soubesse desde o início que aquela conquista não era para ele, e sim para uma coletividade.
 
Um exemplo diferente é o do Líder egoísta, que quer a glória maior para si, porque afinal de contas ele é o Líder, e os seus vassalos que se virem.


("Balboa Avista o Pacífico", por  Tancredi Scarpelli)


A expedição de Vasco Nuñez de Balboa, atravessando horizontalmente a América do Sul, foi a primeira a avistar o Oceano Pacífico (eles tinham desembarcado, é claro, na margem do Atlântico).  Quando os índios locais garantiram que daquele morro ali adiante se avistava o mar, Balboa mandou que suas tropas se detivessem e escalou o morro sozinho – para ter a glória de ter sido o primeiro a avistar o outro oceano.
 
Comentei aqui este tipo de Líder:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/12/2742-epifania-do-lider-17122011.html
 
É o Líder que trabalha em função da sua própria imagem, como o cantor popular que diz aos músicos: “Quem tem que aparecer aqui sou eu!”.


(Ulisses e as sereias, por Robert Wallace)

 
Muito parecido com a lenda clássica de Ulisses e as sereias. O canto das sereias tinha a fama de ser belíssimo – mas enlouquecedor. Era como uma droga alucinógena: os marujos ficavam encantados com tanta beleza e perdiam o controle dos remos, do leme, das velas, e os navios se despedaçavam nos rochedos.
 
O que fez Ulisses? Chegando perto do local, mandou que seus remadores tapassem os ouvidos com cera e o amarrassem ao mastro. Para que todos continuassem surdos, obedientes, robotizados, tocando o barco para a frente. E ele, somente ele, pudesse receber a carga psicodélica da música das sereias.
 
É aquele líder que conhecemos tão bem, o líder muitas vezes bonachão, paternal, que trata os súditos ou os eleitores como crianças, crianças que não precisam saber de tudo, não precisam ser informadas sobre tudo, para que possam apenas trabalhar, cumprir seu papel e serem felizes. Gente simples, que não precisa "compartilhar as sofridas responsabilidades do Poder".
 
Exemplos não faltam, na história humana.


E um outro tipo pode ser comparado a estes todos. Michael Dirda, em seu leve e informativo Classics for Pleasure (Orlando: Harcourt, 2007), dedica um capítulo à obra de Plutarco, o grande historiador e biógrafo de vultos gregos e romanos.
 
A certa altura, ele cita a referência de Plutarco ao rei espartano Sous, que estava em combate contra os Clitorianos (sic):
 
E há também a história do rei Sous, que, cercado pelos clitorianos numa área seca e pedregosa, sem acesso a água, foi forçado a negociar com eles um acordo: devolveria a eles todas as terras que havia conquistado, sob a condição de que ele e seus homens pudessem matar a sede na fonte mais próxima. Depois dos juramentos e ratificações de praxe, ele reuniu seu soldados, e declarou que se algum deles abrisse mão da água receberia seu reino como recompensa; e quando nenhum deles foi capaz de aceitar, e depois que todos eles foram de um em um matar a sede, Sous caminhou por último até a fonte, lavou o rosto sem engolir uma só gota, diante da tropa inimiga, e recusou-se a entregar-lhes as terras conquistadas, uma vez que, de acordo com os termos do acordo, “ele e seus homens” não haviam matado a sede. (trad. BT)
 
Existem líderes e líderes.
 
 


 







Um comentário:

Anônimo disse...

Armadilhas verbais são traição em atos e palavras...