sábado, 27 de agosto de 2022

4857) O Rio das antigas (27.8.2022)



(Rio 1890, por Marc Ferrez)
 
Terminei recentemente a vagarosa leitura de Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (Ed. José Olympio, 1955), de Vivaldo Coaracy. Foi grande a vontade de voltar de imediato à página 1 e começar tudo-tudo de novo, porque são milhares de fatos, explicações, relatos, transcrições e comentários sobre ruas, becos, avenidas, igrejas, praças e logradouros desta cidade. Tudo no estilo engravatado mas saboroso do historiador.
 
Eu nunca teria sido historiador, porque me faltam a paciência rastreadora e o rigor comparativo; mas sou um bom leitor de romances históricos, porque mantenho até hoje a curiosidade, e uma certa capacidade de mimetismo-mental, oriunda da literatura, que me permite visualizar com relativa facilidade um ambiente social bem descrito.
 
Isto me traz à literatura, porque defendo sempre a importância dos livros que, sem serem uma grande obra de arte literária, conseguem essa rara façanha de “retratar uma época” com certa vivacidade de espírito e empatia sensorial. O enredo pode ser pobre, os personagens de papelão, o diálogo pode ser clichê... mas alguns autores, fracos nesses departamentos, conseguem ser eloquentes no âmbito da descrição. São cronistas, retratistas, “descritores” – mesmo que não sejam contistas ou romancistas. São importantes e necessários, ao seu modo. É importante distinguir.


Em todo caso, larguei “V. Cy” e peguei Coelho Neto, um dos meus romances de formação (era um dos preferidos de meu pai): A Conquista, de 1899, que tenho na segunda edição (Lello & Irmão, Porto), de 1913. Para mim é o melhor livro do autor maranhense, de quem li vários na adolescência (lá em casa tinha uns 15). A conquista é a Abolição da Escravatura, que ele narra do ponto de vista de um grupo de poetas e jornalistas, jovens idealistas, farristas, sem dinheiro e cheios de ideais.
 
É quase um roman à clef, porque é fácil perceber quem é quem: José do Patrocínio aparece sob o próprio nome, mas “Otávio Bivar” é Olavo Bilac, “Paulo Neiva” é Paula Nei, “Anselmo Ribas” e “Ruy Vaz” eram pseudônimos usados pelo próprio Coelho Netto, que se divide nesses dois protagonistas, um de dezoito anos, o outro mais velho e mais rodado.
 
Mas acima de tudo é o retrato do Rio dos anos 1880, que ele reconstitui com um envolvimento que me entusiasma de novo (eu não relia este romance há mais de 40 anos). Eis um trecho da saída dos poetas, tarde da noite, na região dos teatro e restaurantes:
 
Pararam hesitantes no meio do largo. Tílburis moviam-se lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A ronda passava vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente, a cabeça baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz magnífica que o astro branco vertia. O “Stadt Coblenz”, a “Maison Moderne”, o “Caboclo” regurgitavam iluminados; às portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o “Príncipe Imperial” transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se amontoadamente espraiando-se em direções diferentes, e as luzes do frontão do teatro extinguiram-se subitamente ficando a rua em treva. Rodavam carros abertos, bondes enchiam-se e, de longe, vozes diferentes anunciavam com furor “empadinhas de camarão”.

 

(...) A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Uma nuvem densa de poeira empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, dum tom alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças rodavam parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às janelas, cochilavam; tílburis passavam à disparada e os dois, em passos apressados, seguiam cosidos aos muros, com os lenços à boca. Apitos trilaram ao longe e, com estrépito sonoro, os soldados da ronda passaram a toda a brida através da poeira como dois cavaleiros fantásticos. Vinham rapazes cantando num vozeirão atroador. (Cap. 1)
 
Coelho Netto é vituperado hoje em dia por seu estilo churrigueresco, ou seja, ele nunca escrevia uma palavra comum se pudesse botar ali um termo alambicado, idiossincrático, abstruso. E, como todo autor que escrevia para preencher espaços, só largava um assunto quando não lhe ocorria mais nada para dizer. Há verdade nisso, mas o fato é que era um escritor sólido, bom segurador de histórias extensas, bom rabiscador de histórias rápidas. Produziu em excesso, talvez; mas sempre sabia o que estava fazendo.
 
A Conquista deve ser seu livro mais solto, mais coloquial, mais cheio de humor, ao descrever um grupo de poetas e jornalistas jovens, namorando atrizes, alugando a pena às ambições deste ou daquele; uma versão mais leve das Ilusões Perdidas (1843) de Balzac.  Lembra também os poetas mexicanos da primeira parte de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño (o diário do jovem García Madero): seus namoros, seus trocadilhos, seus pequenos golpes de sobrevivência, sua fascinação ingênua pelos grandes poetas do Hemisfério Norte.
 
É o Rio de Machado de Assis, mas Machado, lâmina de outro gume, não o reproduziu com essa riqueza de imagens, essa percepção dos “figurantes” como gente viva, essa vivência de ponta de rua e de lampião da esquina.
 
É um Rio surpreendente, por onde o mundo rural irrompe inesperadamente em plena noite, pegando o leitor de surpresa:
 
Vozes atroaram o silêncio e uma célere trepidação de rebanho em marcha fez com que os rapazes parassem colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo, estalando chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais muito juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens atiravam os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais, bradando, como nos campos: “Ehôoo!... toca!  Junta... êeh!...”  E a manada seguia e perdeu-se na poeira dourada donde apenas vinham os gritos dos guieiros.
– É o bife.
– Para onde vai isso?
– Para Niterói, creio eu.
Um bêbado resmungava cambaleando, às guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou, sacolejando ceirões, a caminho do mercado.
“Vou-me embora... Vou-me embora!
É mentira, não vou não...
Se eu vou m’embora, faceira,
Deixo aqui meu coração”,
cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viajeira, puxando a récua.
– Pleno sertão.
– É verdade.   (Cap. 1)
 
Sertão, cidade, cafés elegantes, pardieiros e cortiços, tudo se mistura nesse Rio de Janeiro que crescia aceleradamente, e que entre 1872 e 1890 praticamente dobrou de população, ultrapassando os 500 mil habitantes. 

A Conquista é um romance histórico, levemente histórico, porque a Abolição ocorre em segundo plano. Mais do que histórico é um romance de costumes, um romance que se volta para o modo como as pessoas vivem, seus valores, suas expectativas, seus objetivos, suas regras de relacionamento, etc. Para mim, além do sabor da escrita, é importante porque retrata uma certa intelectualidade literária urbana (que Machado também retratou em inúmeros contos) num momento crucial de transição.


 (Coelho Netto)


 
 
 






Um comentário:

Lisandro Gaertner disse...

Há também uma coisa muito carioca em apresentar a geografia da cidade na sua literatura. O escritor carioca é quase um guia turístico. Elaborei mais sobre essa teoria aqui: https://lisandrogaertner.net/blog/o-escritor-carioca-confinado/