A Editora 34 me enviou há pouco (obrigado Nina, Amanda) a
nova edição de um dos clássicos mais divertidos da literatura, Pantagruel e Gargântua (1532-1534), de
François Rabelais, com tradução, prefácio e notas (tudo excelente) de
Guilherme Gontijo Flores.
Como se trata de um livro salpicado de alusões obscuras,
fez muito bem o tradutor em botar todas as explicações numa longa nota na
abertura de cada capítulo, situando de antemão o festival de nomes, citações,
referências indiretas, etc. Lidas as notas, o capítulo flui que é uma beleza.
Um exemplo a seguir.
Rabelais pertence àquela prateleira não-tão-grande-assim
de “clássicos que a gente se diverte lendo”. A mesma prateleira do Dom Quixote de Cervantes, das Mil e Uma Noites orientais, de todos
aqueles livros onde há elementos narrativos e pitorescos suficientes para
recompensar tanto uma leitura desinformada (de um leitor adolescente, p. ex.) como também de um leitor erudito.
O gigante Pantagruel e seu pai Gargântua são personagens
fantásticos, bizarros, exagerados, cordelescos, sem a menor pretensão de
realismo, e a desproporção dos seus corpos gigantescos (e seus apetites
insaciáveis) cria um contraste engraçado com os habitantes de Paris e de outras
cidades por onde eles transitam seu tumulto.
(Ilustrações: Gustave Doré)
Ao longo da vida, François Rabelais (1483?-1553) foi
padre, foi meio cientista, meteu-se com política, lia vários idiomas, e foi
recolhendo esse saber de todas as fontes ao seu alcance, mas em vez de
transformar isso em alguma “Summa Philosophica” cheia de pompa e erudição ele
escreve as aventuras picarescas e extraordinárias de gigantes que comem e bebem
desbragadamente, arrotam, peidam, cagam, metem-se em discussões filosóficas,
metem-se em brigas, argumentam nos tribunais, aprontam na rua...
Os livros de Rabelais me fazem companhia há muitos anos;
já tive a tradução de Davi Jardim Júnior para a Ed. Itatiaia, e li alguma outra
na saudosa Biblioteca Pública dos Barris (em Salvador). A única que me
acompanhou nesses anos de mudanças pelo Brasil afora foi a tradução portuguesa
de Aníbal Fernandes (Ed. & Etc, Lisboa, 1975).
Já plagiei e imitei desbragadamente o impávido autor
francês, especialmente nas peças que escrevi, desde Trupizupe, o Raio da Silibrina até as que fiz com Antonio Nóbrega,
outro admirador das estrepolias rabelesianas (Brincante, Segundas Estórias).
No meu recente livro Fanfic incluí o
conto “A Demanda do Bosque Sombrio” onde o espírito do trêfego beneditino faz
um backing-vocal discreto; e muitas das minhas canções e poemas (“Meu Nome é
Trupizupe”, “Coco do Nascimento”, “Saara 2018”, etc.) recorrem ao mesmo arsenal
de imagens estapafúrdias e neologismos arrevesados.
Porque o tema principal de Rabelais é a linguagem, a verbalização
copiosa, excessiva, cachoeirística, irreprimível, de palavras polissilábicas
recolhidas do direito, da filosofia, da sofística escolástica, da medicina, da
botânica, do escambau e da caixa-prego, tudo isso distorcido com uma
informalidade hip-hop pululante de severgonhices, solecismos propositais,
barbarismos auto-gozosos, tortografias provocantes, latinidades tatibitates e
greco-romanismos contaminados de DNA tupiniquim e sertanejo.
Este é o grande trunfo da tradução de Guilherme Gontijo
Flores, cuja fidelidade ao original não questiono nem me interessa – vou eu
agora catar lêndeas em quem traduz francês medieval?!! Ora bom-basta. Dane-se o
francês medieval, e que bem repouse em seu sarcófago. A tradução de Rabelais
para hoje tem que reproduzir essa vertigem verborrágica, essa diarréia
dialética, e isso ele o faz abundantemente.
Com a vantagem adicional de jogar na correnteza
turbilhonante as pedrinhas miúdas do português-BR de hoje em dia, uma gíria aqui-acolá, um
palavrãozinho num lugar que caiba, para nos lembrar que a linguagem do autor,
na época do autor, cometia esses mesmos sacrilégios sacripantas; era um
juridiquês-bebum destinado a sabotar por dentro o juridiquês pomposo dos
rábulas espertalhões a soldo de reis semi-analfabetos.
São impagáveis os capítulos 11, 12 e 13, em que
Pantagruel posa de juiz substituto para resolver uma pendenga indecifrável
entre dois querelantes, os senhores Beijacu e Chuparrabo. Ele manda que Beijacu
se explique primeiro, por ser o reclamante. E lá vem a explicação (um capítulo
inteiro; darei aqui embaixo uma derramadinha como amostra):
(...) Durante a noite inteira, de mão ao pote, apenas despachamos bulas
a pé e bulas a cavalo para reter os barcos, porque os alfaiates queriam fazer
de retalhos uma zarabatana para cobrir o mar oceano, que então estava grávido
de uma panelada de couve, segundo opinião dos palhoceiros; porém os médicos
diziam que em sua urina não reconhecia um sinal evidente de que uma abetarda
comesse machados com mostarda, a não ser o que senhores da corte dessem por
bemol ordens à bexiga de nunca mais surrupiar bichos-da-seda, pois os palermas
já tinham um bom começo para saçaricarem o estrindor no tom do diapasão, um pé
no fogo e a cabeça no meio, como dizia o bom Ragot. (...)
Era essa argumentação que embasbacava os jurisconsultos
locais. Pantagruel franze a testa e pede ao outro querelante, o senhor
Chuparrabo, que explique seus argumentos E lá vem:
(...) E supondo que no cruzamento de cães corredores os pequerruchos tenham
soado o corno antes de o notário entregar seu relatório por arte cabalística,
não se segue (salvo melhor julgamento da corte) que seis arpentes de prado largamente
medido forjem três tonéis de fina tinta sem soprar na bacia, considerando que
nos funerais do Rei Carlos era possível comprar em pleno mercado o tosão por
quatro mirréis – eu juro, lavro e dou fé – de lã. (...)
É uma peleja de Zé Limeira contra Eugene Ionesco e, visto
isto, nosso bom Pantagruel pigarreia, coça o saco, e profere seu julgamento no
mesmo idioma:
(...) Uma vez visto, ouvido e sopesado o diferendo entre os senhores de
Beijacu e Chuparrabo, a corte declara que, considerando a horripilação do
morcego ao declinar do solstício estival para cortejar baboseiras que sofreram
mate de peão pela má vexação dos lucífugos presentes no clima trans-Roma de um
maleiro encavalgado portando uma balestra nos rins, o querelante teve justa
causa em calafetar o galeão que a governanta inflara, pé calçado e outro nu,
reembolsando baixo e firme em sua consciência tantas asneiras quanto a pelagem
de dezoito vacas, e basta quanto ao bordador. (...)
E assim, falando todos o mesmo dialeto surrealista, todos
se entendem e os queixosos se abraçam e o povo dá hurras ao saber do grande
Pantagruel.
Os livros de Rabelais têm sátira social, têm maledicência
política à clef, têm heresias
religiosas, têm escatologia gráfica e obscenidade explícita, mas acima de tudo
têm a embriaguez da linguagem, da verborragia tonitruante de uma represa que
explode e alaga metade dos Países Baixos.
Suas marcas estão por todo lado. João Ubaldo Ribeiro é um
rabelesiano visível; Ariano Suassuna não poderia ter concebido Quaderna sem consultar
essa apostila (o capítulo da “Filosofia do Penetral”, no Romance da Pedra do Reino, é Pantagruel puro); no Catatau de Paulo Leminski vemos pegadas
nítidas do mestre; onde quer que haja um traço barroco e vociferante, um
turpilóquio fescenino, o uso escrachado da pompa vocabular para mangar da pompa
vocabular, aí estarão as indigitadas digitais do mestre gramático e
anagramático Alcofribas Nasier.
O livro:
https://editora34.com.br/detalhe.asp?id=1093&busca=
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