segunda-feira, 21 de junho de 2021

4716) Eu me lembro 22 – Minas (21.6.2021)



 
1
Quando fui estudar em Belo Horizonte as aulas na escola de cinema eram à noite, e tínhamos todo o resto da madrugada para bater pernas pela cidade deserta. A turma era grande, mas o grupo mais constante com quem eu saía era formado por Lincoln e Régis (que vinham de fora, como eu), e mais Elizeu, Paulo Sérgio e Geraldo (que eram de BH). Andávamos à toa pelas ruas, como os personagens de Fernando Sabino.
 
Um dos nossos pontos de conversa preferidos ficava naqueles trechos estreitos de pracinha em frente do tradicional Hotel Del Rey. Ainda hoje vê-se ali um busto com quem a gente fazia gozação, um figurão histórico em cuja placa de bronze lê-se o versinho: “Da vida social na porfiada liça / ao lado do dever, e ao lado da justiça”. Numa prova de roteiro na Escola, escrevi um negócio totalmente cão-andaluz e dei o título “A Porfiada Liça”.
 
2
Havia uns bancos de praça onde a gente revezava sentando, enquanto os outros conversavam em pé, se agasalhando contra o vento mineiro. De vez em quando o frio apertava, a fome também (éramos todos estudantes lisos e subalimentados) e a gente pegava aquela rua lateral do Del Rey indo até o prédio do Estado de Minas, onde a madrugada era uma vigília permanente, cheia de vozerio, agitação, cafés quentes e botequins abertos, entregadores amarrando pacotes gigantescos de jornais recém-impressos cheirando a tinta. Pedíamos média de café com leite, pão-com-manteiga, doce de leite cortado em losangos. A poucos metros dali ficava o Cine Metrópole, íamos às vezes olhar os cartazes e falar mal dos filmes. “Filme bom” eram os que a gente via nas sessões do subsolo da escola, a tradicional “Cinematoca”. Dr. Caligari. Metropolis. Stagecoach. Ladrões de Bicicleta. Big City Blues. E o Mar Já Não Era. Pantha Rei.
 
Havia um personagem com quem de vez em quando a gente cruzava. Era um hippie com cara magra de índio, cabelão blequipau, sempre com um violão. Ele cantava uma música dele que a gente aprendeu: “Cara ou coroa, palitinho, ou par-ou-ímpar? / Meus pés ‘tão sujos, mas a consciência limpa.” Darlan Richard era o nome dele. A segunda parte da música terminava assim: “Meus pés ‘tão sujos, minha gente / alvura de detergente / bolinhas no ar de sabão / cachaça só com limão!”.
 
 
3
Algum pensador já disse que o único lado bom das ditaduras é que as ruas ficam mais seguras à noite. Durante as centenas de noites em que conversávamos naquela pracinha (sobre cinema, rock, literatura, MPB, política) não me lembro de ter parado alguma patrulha de polícia civil ou militar para perguntar o que a gente estava fazendo ali, dar o famoso baculejo, pedir documentos, tomar dinheiro.
 
O fato mais notável que lembro foi que uma vez estávamos agrupados e passou um carro barulhento, com gente cantando dentro, e um cara esticou o braço para fora e jogou na gente um ovo, que se espatifou na calçada. Semanas depois a turma dos amigos de Lincoln veio de Volta Redonda para fazer uma visita surpresa à pensão onde a gente morava. Contamos essa história do ovo, e Vicente perguntou: “Sim, jogaram de um carro que ia passando, mas o que estava escrito no ovo?”
 
 
4
Em junho não teve conversa, todo mundo arrumou a mochila, dobrou uma manta, e partiu para Ouro Preto, para um mês de festival. Era uma aventura, porque Ouro Preto à noite era uma Sibéria (eu ia dizer “uma Areia”, mas só os paraibanos entenderiam) e a gente ia sem saber onde ia dormir. Nesse festival e no do ano seguinte eu devo ter dormido nuns 20 lugares diferentes, toda noite era essa batalha.
 
Felicidade que havia muitas “repúblicas” de estudantes. Uma vez fui para uma delas com uma turma, bebemos, tocamos, fumamos, namoramos, e quando acordei na manhã seguinte não conhecia ninguém e me perdi num labirinto escheriano de corredores, escadas, bifurcações, salas com piso de madeira, passagens cheias de teias de aranha, pátios internos de onde só se podia fugir de helicóptero, mais corredores, mais escadas, sótãos, águas-furtadas. Consegui fugir, mas perdi lá a capa do violão.
 
 
5
No festival de 1971, fui de novo e dessa vez nosso amigo Domingos, da Engenharia, conseguiu para mim e Elizeu uma pouso permanente. A farra prosseguia. Descoberta dessa época: uma pessoa que: 1) saiba tocar violão com convicção e cara-de-pau; e 2) se disponha a acompanhar desde Led Zeppelin a João Gilberto, mesmo sem conhecer as músicas... essa pessoa não morre de fome, e principalmente de sede. Desenvolvi a arte de tocar baixinho, pegando de ouvido o tom e a cadência, e interferindo o mínimo possível com o violão (que sempre toquei mal). O violão serve somente pra segurar a cadência, segurar o tom, e indicar os pontos de virada.
 
Uma noite entrei num bar cheio de gente e estava tocando de pé, virado para o balcão (devia ser algo de Vandré ou Sérgio Ricardo, porque lembro que o bar todo estava cantando junto) quando não sei por que cargas dágua a porta imensa e pesada do bar, às minhas costas, soltou-se das dobradiças (alguém esbarrou, etc.) e caiu de prancha na minha cabeça. Num momento eu estava todo te-entrega-Corisco e no momento seguinte estava no chão, olhando para o teto e para uma dúzia de rostos ansiosos, sem saber o que tinha acontecido. Segundo Domingos, minha sorte foi estar de boné, e estar perto da porta, porque se estivesse mais longe (lá vinha explicação de Física Aplicada) a pancada seria maior, etc.
 
6
Foi no ano em que o Living Theatre novaiorquino, liderado por Julian Beck e Judith Malina, estava viajando pelo Brasil, instalou-se em Ouro Preto, e como era mesmo ditadura eles acabaram sendo presos. Numa tarde ensolarada e gélida estávamos como sempre tocando na Praça Tiradentes, o epicentro da cidade, quando circulou o chamado: iríamos todos fazer uma manifestação diante da cadeia onde os atores norte-americanos estavam presos, e exigir sua libertação imediata.
 
Saiu dali uma caravana hirsuta, andrajosa  e psicodélica com umas 200 pessoas, violão, flauta doce, charango, todos os naipes em voga. Descemos a ladeira caminhando e cantando, diante dos olhos entediados da população e dos olhos exultantes dos turistas endinheirados. Paramos em frente da cadeia, fortemente guardada, e ali cantamos o repertório habitual: Chico Buarque, Caetano, Vandré, “Deus e o Diabo” e encerramos com “This is the dawning of the Age of Aquarius, Aquaaariuuuuus...” Ninguém de dentro foi solto, mas ninguém de fora foi preso, e a vida seguiu em frente, roendo a carne e deixando os ossos.
 
 







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