terça-feira, 15 de junho de 2021

4714) Primeiras Estórias: "Fatalidade" (15.6.2021)



(Ilustração: Luís Jardim)
 
A obra de Guimarães Rosa, onde são tão frequentes os vaqueiros, os jagunços, os duelos, os combates equestres, roça de vez em quando por um imaginário de bravura pessoal e de violência que nos acostumamos a assimilar a partir do filme norte-americano de faroeste.
 
O nono conto de Primeiras Estórias (1962) é “Fatalidade”, um pequeno episódio faroesteiro. Ele não destoa de outros, que já comentei aqui, do mesmo volume: “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”... É aquela narrativa de poucas conversas e muitos exames de parte a parte, entre indivíduos durões de verdade, não os falastrões de saloon. Indivíduos que sabem usar uma arma, que só usam quando é preciso, e usam apenas uma vez.
 
São contos que derivam, direta ou indiretamente, das memórias sertanejas do autor, e em muitos deles, como neste aqui, há um narrador na 1ª. pessoa que veicula os acontecimentos para o leitor. O verdadeiro protagonista de “Fatalidade” é um tal de Meu Amigo. O Eu que narra a estória é um ser irrelevante. Caberia fazer-se uma antologiazinha só desses contos roseanos onde o narrador-Eu quase não faz nada senão assistir, escutar, testemunhar, tão ignorado e invisível quanto uma câmera cinematográfica.
 
Os parágrafos iniciais do conto lembram muito o início do Grande Sertão: Veredas:
 
(...) Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo, com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro que, no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem – no agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia, caixas de balas.
(“Fatalidade”)
 
Parece até o discurso do Riobaldo aposentado que abre o romance famoso:
 
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
(GS:V)
 
Esse personagem tem muita coisa compatível com Riobaldo Tatarana:
 
Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia.
(“Fatalidade”)
 
Por outro lado, ele lembra também outro personagem do romance, o meditativo e sábio “Compadre Meu Quelemém”. O Compadre é um personagem curioso do Grande Sertão, pois pelo que me lembro ele não surge em cena nem uma vez sequer, é sempre referido indiretamente por Riobaldo, que o considera um sábio, espírita da doutrina de “Cardéque”. Ele é um desses filósofos de rincão remoto, com leituras poucas e essenciais, e muita meditação. Quelemém certamente foi batizado como “Clemente”. Compadre Meu “Que Lê Mente”.
 
O Meu Amigo deste conto pertence à mesma estirpe samurai, de altas filosofias e derramamentos de sangue precisos e necessários. Ele decreta: “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.”   Ele comenta: “Só quem entendia tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades”. Mais adiante finaliza: “Esta nossa terra é inabitada.”
 
O caso que se dá é que um homenzinho pequeno e tímido vem se aconselhar com o samurai sertanejo. É casado e pacífico, e sua esposa está sendo assediada por um valentão, Herculinão Socó, e toda vez que se mudam de vilarejo o catrapuz reaparece, assediando a moça. O queixoso, que se chama pelo apelido de Zé Centeralfe, vem pedir a Meu Amigo uma solução, de preferência ao abrigo da lei:
 
(...) Viajamos para cá e ele, nos rastros, lastimando a gente. É pêta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me atravessa... Tenho de tomar sentido, para não entestar com ele. (...) Terá o jus disso, o que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei...
(“Fatalidade”)
 
Constrói-se assim uma situação que na minha terra só se resolve de um jeito. Alguém precisa remover Herculinão Socó do mapa-múndi. Meu Amigo não dá muitas respostas, mas durante a a lamúria do queixoso se levanta, ajeita a posição de uma carabina oblíqua na parede. Volta a sentar, o tempo todo olhando para as armas penduradas em amostra, e para Zé Centeralfe. Depois de muitos olhares, este entende o recado, pede licença e sai.
 
O narrador e Meu Amigo o seguem.
 
Eis senão quando, trazido pela pena providencial do Roteirista do Mundo, surge no matagal o vulto de Herculinão. Um pré-cheiro de pólvora inunda o ar. Há um tiro-tiro rápido,
 
...e o falecido Herculinão, trapuz, já arriado lá, já com algo entre os próprios e infra-humanos olhos, lá nele – tapando o olho-da-rua. Não há como o curso de uma bala, e – como és bela e fugaz, vida! 
(“Fatalidade”)  
 
Eles constatam, no entanto, que Herculinão fora derrubado por dois tiros. A segunda bala o pegou no coração.
 
Uma situação dramática que evoca o duelo clássico de O Homem Que Matou o Facínora (“The Man Who Shot Liberty Valance”, 1962) de John Ford. Neste filme, o pacato e hesitante Ranse Stoddard (James Stewart) precisa da ajuda do calejado e ético pistoleiro Tom Doniphon (John Wayne) para abater o herculinão local, Liberty Valance (Lee Marvin).

  
Quando Stoddard e Valance se confrontam no meio da rua e sacam as armas, é Doniphon que, escondido, abate o bandoleiro, deixando que Stoddard, no meio da confusão, seja dado como o herói, iniciando aí uma carreira política que só trará benefícios para a cidade. É ele quem vira “o homem que matou o facínora”.
 
Durante algum tempo matutei se haveria alguma influência do filme de Ford sobre o conto de Rosa. Parecia que não, porque a grande maioria dos contos de Primeiras Estórias teve publicação prévia, principalmente no jornal O Globo, ao longo de 1961, portanto antes do filme, que foi lançado nos EUA em abril de 1962. (Não pude apurar a data de exibição do filme no Brasil.) 
 
Não é o caso, porém, de “Fatalidade”, que não é mencionado nessa lista de publicações (v. Em Memória de Guimarães Rosa, José Olympio, 1968, pags. 208-210). Haveria, portanto, uma estreita janela temporal para que Rosa, sabendo do argumento do filme pela imprensa ou por outras vias, compusesse sua estória a ponto de ser incluída no livro, pois a primeira edição de Primeiras Estórias foi impressa em agosto de 1962.
 
Não custa lembrar que o filme de John Ford se baseia num conto homônimo de Dorothy M. Johnson, publicado nos EUA em 1953.
 
Bem; isso são passatempos de nerd. O que importa no conto, mais do que influências ou inspirações, é sua mecânica sutil, sua ética rude, seu reconhecimento tácito de que com certas qualidades de brutalismo não há conversa possível. Herculinão merece morrer. (Contra-argumento possível, e bem fundamentado: Augusto Matraga era também um acaba-samba da mesma má qualidade, mas bastou uma surra bem aplicada para encaminhá-lo para o Céu, mesmo a porrete.)








3 comentários:

Weracy Costa disse...

'Ave Palavra' A 'tremulenta' apagará celulão, boa noite!

Braulio Tavares disse...

Oi Wera, quanto tempo. Bom te ver por aqui, na minha página de falar sozinho. Valeram os comentários telegráficos, viu? :-) bjs

Gustavo disse...

Sou leitor assíduo do blog (mas nunca tinha comentado) e agora filtrei para ler seus textos sobre Guimarães Rosa. Estou numa fase de ler tudo dele que me chega à mão. Por curiosidade, fui consultar a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Pelo Jornal do Brasil, O Homem que Matou o Facínora estreou no Rio em janeiro de 1963.