terça-feira, 13 de abril de 2021

4693) Um cânone brasileiro alternativo (13.4.2021)



No ano já distante de 2006, a revista recifense Continente Multicultural convidou uma porção de gente, eu inclusive, a participar de uma votação sobre o “Cânone da Literatura Brasileira”, incluindo aí a prosa de ficção e a poesia.
 
Não sei como os outros definem “cânone literário”, mas eu defino, meio frouxamente, como um possível conjunto de obras que é preciso conhecer para entender os caminhos, as possibilidades e o espírito da nossa literatura.
 
Não é uma lista dos “dez melhores”.
 
É uma lista de livros que contribuíram fortemente para a formação dos autores que vieram depois; e com impacto inclusive fora do âmbito estritamente literário. Livros influentes; e livros que nos reflitam como povo, que nos revelem como cultura, que indiquem a um leitor, recém-chegado ao mundo, o que é o Brasil pela voz dos seus escritores – e modéstia à parte, não sei que voz mais adequada haveria.
 
Na época daquela enquete, questionei um detalhe que me preocupava. Com o passar dos anos, certos livros vão se tornando quase obrigatórios. Sua ausência provocaria indignações, arrufos, talvez até uma troca de sopapos. “Como se atreve a deixar de fora Grande Sertão: Veredas?! Dom Casmurro?!!!”.
 
Resultado: ninguém mexe mais no cânone, onde entram somente as unanimidades. Fica parecendo os Dez Mandamentos. Pra tirar dali um desses consagrados vai ser preciso fazer uma verdadeira CPC, “Campanha de Problematização e Cancelamento”.
 
Minha sugestão, na época, foi deixar de fora os títulos que parecessem óbvios. E indiquei dez que na época me pareceram plenamente merecedores de figurar entre o que o Brasil já produziu de melhor, mas que talvez nunca entrassem numa lista dessa natureza. Talvez até por serem preteridos por outras obras supostamente “superiores” do mesmo autor.
 
Pensando assim, fiz minha sugestão incluindo seis obras de prosa: Corpo de Baile de Guimarães Rosa, Memórias Sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato, A Grande Arte de Rubem Fonseca, Nove, Novena de Osman Lins. 
 
E quatro de poesia: Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, Eu de Augusto dos Anjos e Cobra Norato de Raul Bopp.
 
Todo mundo tem o direito (e o prazer) de discordar, é claro, mas com esses dez livros embaixo do braço eu passaria mais uma vida inteira. Alguém dirá: “Mas faltou Fulano de Tal!”  E eu responderei: “Em toda lista falta alguém, até na Lista de Schindler.”
 
Colocou-se há pouco, numa discussão semelhante, a questão: “Tudo bem, você indicou uma opção B aceitável; mas, haveria uma opção C?”  Ou seja: seria possível indicar uma nova lista sob os mesmos critérios, deixando de lado os “óbvios, incontornáveis”, e também os dez títulos acima?
 
Não acho difícil. Conferenciei aqui com meus botões, ou melhor, com minhas teclas, e bolei a lista abaixo. Para não me afastar muito da proposta inicial, são novamente seis obras em prosa e quatro em verso. Todos me parecem necessários para compreender do que o Brasil é capaz – além de serem livros, é claro, que me despertam um sentimento de gratidão e de orgulho-alheio, sempre que me lembro deles.
 
E sempre lembrando: o objetivo destas minhas listas é indicar títulos “não-óbvios”, que dificilmente seriam indicados para um cânone porque outras obras do mesmo autor, as consideradas “obrigatórias”, passariam na frente.
 
Obras em prosa:

 
1.       Dona Flor e seus Dois Maridos (1966) de Jorge Amado. Não botei nada do baiano na minha primeira lista, e tenho convicção de que se alguém for “canonizar” um livro dele provavelmente vai ser Gabriela, Cravo e Canela. Mas Dona Flor foi um sucesso enorme desde o lançamento, foi adaptado para o cinema, marcou gerações. Sem ter sido o primeiro livro de Jorge que li, foi o primeiro que me despertou, na adolescência, para as possibilidades literárias do romance erótico e para as possibilidades brasileiras do romance de fantasmas. (E me ajudou a ir morar na Bahia dez anos depois, mas isso já é outra história.)



2.       Memorial de Maria Moura (1992), de Raquel de Queiroz. Qual é o título óbvio, de Raquel? Claro que é O Quinze, que dizem ter sido escrito quando ela tinha 17 anos – e é um grande livro. Mas por trás dele acabam ficando invisíveis outros romances excelentes, como este. É um épico sertanejo de uma mulher-guerreira, uma mistura de Cat Ballou e Dona Guidinha do Poço. Pesquisa histórica e geográfica bem fundamentada, aventuras, violência, morte, paixões eróticas desenfreadas, religião, economia rudimentar. Um romance guerreiro que se encerra, triunfalmente, com o “exército” sertanejo partindo para uma batalha de resultado imprevisível. E publicado por uma escritora de 80 anos.



3.       Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto. O óbvio de Lima é Policarpo Quaresma, mas eu tenho uma admiração por esta história de um rapaz negro, inteligente, com leitura, forçado a trabalhar como contínuo num jornal cheio de pavões menos competentes do que ele. O retrato do Rio é excelente. Foi o primeiro livro escrito pelo autor, que já estava todo nele. E o retrato da imprensa brasileira continua atual.



4.       Felicidade Clandestina (1971), de Clarice Lispector. Os títulos canônicos mais óbvios de Clarice seriam A Paixão Segundo G.H. (mais complexo) ou A Hora da Estrela (mais popular). Mas eu acho que a influência maior da obra da “frasista mais famosa da Internet” está nos contos, sempre brilhantes. Como neste livro, onde cabem pequenas crônicas, pequenas histórias absurdistas, retratos de família, e até o inexplicável e inesgotável “O Ovo e a Galinha”.



5.       Elas Gostam de Apanhar (?), de Nelson Rodrigues. A obra de Nelson é um caos bibliográfico; sua influência sobre o público foi maior na imprensa do que nos livros. Coloco aqui esta coletânea da Editora Bloch (não localizei a data), que li nos anos 1960, com capa de Ziraldo. Tudo que está no teatro de Nelson está em sua prosa de ficção.



6.       Várias Histórias (1896) de Machado de Assis. Pois é, em qualquer cânone alguém instala o Dom Casmurro ou o Memórias Póstumas de Brás Cubas (com toda justiça, aliás) e deixa de fora um dos maiores contistas do país. Escolher um volume de contos entre tantos também não é fácil. Escolho este porque a maioria de seus contos saiu durante a década miraculosa de 1880.
 
 
Obras em poesia:


1.       Caprichos & Relaxos (1983), de Paulo Leminski. É um autor recente, mas ouso dizer que já pode ser incluído no cânone, até mesmo como provocação, porque era um notório chovedor no piquenique alheio. Leminski marcou presença no romance, no ensaio, na publicidade, na música popular, e recentemente seu volume Toda a Poesia chegou às listas de best-seller. Sua influência, dos anos 1980 para cá, tem sido imensa – e merecida.



2.       A Educação pela Pedra (1962-65) de João Cabral de Melo Neto. Mais uma vez: o óbvio cabralino em qualquer lista seriam O Cão Sem Plumas ou Morte e Vida Severina, mais conhecidos, mais marcantes, mais emblemáticos. Não me custa nada indicar esse livro duro, árido, onde Cabral se transpôs com alicerces e tudo para o verso longo, o quase-decassílabo, expandindo sua poética para além das cadências redondilhas do romanceiro. 



3.       Poemas (1922-1953) de Ascenso Ferreira. É o volume que reúne os três livros anteriores do autor (Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém). A oralidade, o coloquialismo, o vocabulário regional, os temas “folclóricos”, tudo está presente nesses livros que são talvez o melhor encontro entre o Modernismo e a poesia falada. E deve ter sido um dos primeiros livros da poesia brasileira a trazer a partitura das melodias citadas.



4.       Xadrez de Estrelas (19760 de Haroldo de Campos. A Poesia Concreta dos paulistanos teve um impacto profundo na literatura brasileira, inclusive sobre os que não gostam dela. Eu gosto. Esta coletânea de Haroldo de Campos traz vários dos seus livros concretistas e se encerra com o clássico Galáxias (1973), uma experiência de prosa poética “riocorrente”. Alguém pode até não gostar dos poemas (eu gosto), mas ninguém pode negar que essa poesia fez muitos poetas perceberem pela primeira vez que a poesia era feita de palavras, não de idéias, e que as palavras tinham materialidade.
 
Os títulos listados acima seriam, na minha opinião, uma boa introdução à literatura brasileira para um hipotético estrangeiro (sueco, queniano ou vietnamita) razoavelmente bem informado, e com domínio razoável da língua portuguesa falada no Brasil.
 
A lista esgota nossa literatura? Não, nenhuma lista esgota. Por que ficam de fora tantos autores? Provavelmente porque nunca li, como é o caso de obras que admiro à distância, como O Tempo e o Vento de Erico Verissimo ou Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos. 

E por que não incluí as obras X, Y e Z, que efetivamente li? Porque o mote é “lista de dez”. Quando estou desocupado, precisando esquentar o motor do juízo para escrever coisas mais sérias, pensar nisso ajuda a produzir a ignição. A lista não tem importância.
 
 
 





2 comentários:

Anônimo disse...


Das duas listas que você compôs, eu colocaria no CÂNONE OCIDENTAL (NÃO APENAS BRASILEIRO) "Várias Histórias", "Felicidade Clandestina" e o "Romanceiro da Inconfidência."
Quanto à frase de Mallarmé, não passa de frase de efeito, cujo valor está em ser de efeito dizendo apenas o óbvio e negando o óbvio ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, não só a poesia: qualquer texto verbal (até bula de remédio) se faz com palavras. Agora, um BOM TEXTO (seja bula de remédio ou poema) não ganha existência se não tiver ideias. Por mais interessante que seja uma composição de palavras sem ideias, não passa de mera logomaquia, de pirotecnia verbal - não chega a ser grande poesia. Entre um epigrama de Cecília Meireles (que é rico de ideias) e os "lixos/luxos" dos Campos (que não passam de jogos de palavras de extrema pobreza ideativa) há uma distância milenar - a que separa a poesia da piada.




Fraga disse...

Bula de remédio jamais irá se encaixar em literatura. A expressão literária, qualquer uma, depende da criatividade, da invenção. Bula não permite inventar, é obrigada a ser científica. Mesmo um mau conto ainda pode distrair algum leitor; se a bula desviar do seu fim básico de informar e causar distração no consumidor, é estrago mortal. A menos que esse inconsistente argumento seja apenas um chiste, inesperado efeito colateral daquilo que o sujeito acima anda tomando e a bula não previu.