sexta-feira, 16 de abril de 2021

4694) O sinônimo da nota musical (16.4.2021)



Os aficionados da cantoria de viola vivem a me perguntar se Zé Limeira existiu de verdade. Curiosamente, ninguém me pergunta o mesmo sobre o poeta violeiro Bandeira Sobrinho, com quem conversei muito, bebi, viajei, glosei motes, e que para muita gente não é uma pessoa real, vive apenas no mundo dos personagens diegéticos.
 
Bandeira Sobrinho, caso não-diegético fosse, teria uns cinquenta anos quando eu tinha vinte e cinco, e nossa amizade meio improvável se consolidou aos poucos, entre uma cerveja no Bar de Seu Manu e um café pequeno no Calçadão. Era forte, atarracado, tinha um bigode grisalho, óculos. Bebia muito, sorria pouco, mas tinha um inesperado senso de humor.
 
Não foi o violeiro mais brilhante de sua época, porque disputava espaço em Campina Grande com outros de sua geração, como José Gonçalves ou Antonio Barbosa, e com os da nova geração de galos-de-briga que, naqueles meados dos anos 1970, começavam a botar as unhas de fora: Ivanildo Vila Nova, Moacir Laurentino, Severino Feitosa, para falar apenas dos que moravam em Campina.
 
Quando fomos publicar os folhetinhos transcrevendo os versos gravados nos espetáculos do Congresso Nacional de Violeiros, patrocinados pela Universidade Regional do Nordeste, tivemos a idéia de incluir nos folhetos as partituras com as melodias correspondentes a cada estilo: sextilha, galope, martelo, quadrão, etc.  

O diretor do Museu de Arte era José Umbelino, que convocou o maestro Pedro Santos para a tarefa. Pedro Santos, grande sujeito, era de João Pessoa e nessa época estava pagando os pecados em Campina, porque no Museu quem mandava era a gente, e não tinha hora de funcionamento.
 
– Maestro, este aqui é o poeta Bandeira Sobrinho, meu grande amigo. Ele vai cantar as melodias e você copia.
 
– Muito bem, vamos lá.
 
Fui tomar um café na cantina e voltei meia hora depois para constatar um impasse entre os dois.
 
– Algum problema?
 
– Não propriamente um problema – disse o maestro, que era o rei da paciência e da diplomacia. – Mas cada vez que eu peço pra repetir ele canta uma melodia diferente.
 
– É a mesma – insistiu Bandeira, já arrufando as penas.
 
– Não, poeta, presta atenção... – explicava Pedro, ao piano, um dedo nas teclas, outro apontando a partitura recém-rabiscada. – Aqui era essa nota, e você na segunda vez cantou essa outra aqui.
 
– E que diferença faz – disse Bandeira. – Se não foi a mesma nota, foi um sinônimo.


(maestro Pedro Santos)


Surgiu pela primeira vez nessa tarde a minha percepção de que um dos elementos que diferenciam a cultura erudita e a cultura popular é que a primeira privilegia a visão de detalhe, e a segunda a visão de conjunto. 

Pode não ser a melhor maneira de colocar essa questão, mas vejam só. Eu também costumo cantar e tocar violão, e não sou dos mais afinados. Se estou cantando uma música qualquer, seja dos Beatles ou de Ataulfo Alves, não estou preocupado com as notas individuais, e sim com a frase melódica. Aqui e acolá pode uma nota não ser igual ao disco, pode não ser igual até à que cantei há pouco; e daí? O que importa é que o ouvinte reconheça a frase. “Pois é, falaram tanto, que desta vez a morena foi-se embora...” Se o ouvinte reconhecer a melodia geral, que diferença faz uma nota ou um sinônimo dela?
 
Bandeira e o maestro Pedro comeram o pão que o diabo amassou durante algumas tardes, mas as partituras foram feitas e saíram no folheto. Surgiu entre os dois uma amizade distante baseada no respeito e na perplexidade. Foi um pouco como aquele filme de guerra de John Boorman que passou na época no Cine Capitólio, Inferno no Pacífico, onde um soldado americano e um japonês, numa ilha deserta, brigam tanto que acabam admirando um ao outro.
 
A cultura erudita se baseia na possibilidade da existência da Versão Única, ou da produção de um Documento Definitivo, de uma Matriz da qual deverão derivar todas as cópias, citações, referências, etc.  É o Império do Documento Escrito.
 
Já a cultura oral se baseia na superposição incessante de versões sempre diferentes entre si, mas guardando uma semelhança que permite considerar que sejam “a mesma coisa”. Não há (isso vale para os Mitos, para as Lendas, para todas as formas orais de narrativa) uma versão mais verdadeira do que todas as outras. Cada uma é a foto-da-nuvem. A nuvem é o conjunto de todas.
 
Quando eu estou cantando até me preocupo em “cantar a letra certa”, mas se na hora não me vier uma palavra entra outra, e fica por isso mesmo. Em mesa de bar (=cultura oral), ninguém liga. Em estúdio (=cultura erudita), o técnico manda fazer de novo. “Vamos fazer a boa, agora...”
 
E mesmo essa cultura musical de estúdio deixa-se contaminar pela outra. Porque num universo como a Música Popular Brasileira, só para dar um exemplo, letra e melodia de uma canção são geralmente respeitadas, mas não são sagradas. Intérpretes mexem, sim; e uma explicação simples para o que acontece pode ser esta: “Se a cantora desafina, erra a nota, pára tudo e vamos gravar de novo; se a cantora está interpretando, está fazendo floreios vocais com pleno domínio de sua técnica, então vale, mesmo que vá longe da melodia original”.
 
A música fonográfica abomina a desafinação (=o erro) mas acolhe a criatividade pessoal. Os compositores escutam, percebem que a música foi alterada, mas muitas vezes admitem que foi alterada “para melhor”, ou pelo menos para se adequar ao sentimento próprio daquela interpretação; e não reclamam.
 
Quando Ella Fitzgerald ou Nana Caymmi começam a florear a melodia, isso é a forma aristocrática (digamos assim) do “cantar de oitiva” dos intérpretes populares, que em seus terraços de sábado ou fundos-de-quintal de domingo cantam a melodia (e a letra) do jeito que lembram, que entendem e que conseguem.



(Lourival e Pinto)
 
O cantador de viola, o poeta repentista, dá atenção à melodia, mas é a mesma que dá ao paletó quando sai para cantar. Tem que estar tudo em ordem, mas não é isso que ele vai exibir para o público: ele vai exibir os versos, a poesia, e tanto a música quanto o figurino são meros coadjuvantes. 

Pesquisadores já comentaram comigo sobre sua decepção ao tentar acompanhar o áudio de uma cantoria entre os mestres Lourival Batista e Pinto do Monteiro, dois dos maiores gigantes do repente, e duas das vozes mais trôpegas dessa arte. Principalmente porque a maioria dos áudios que gravaram já foi na entrada da velhice, quando dicção, dentadura e garganta já não estavam mais em seus melhores momentos.

Quando Geraldo Sarno filmou um pé-de-parede entre os dois veteranos, no curta Cantoria (produzido por Thomas Farkas), usou legendas em português, para meu grande alívio. 
 
A nota musical ajuda quando está correta, mas para o cantador o maior importante é que não atrapalhe. Na hora, se ela não puder vir à goela, que mande um sinônimo.
 
 
 
 
 



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