(foto: Augusto Pessoa)
Acertar passarinho com laranja chupada.
Decorar escalações de times de 20 anos atrás.
Ler poemas para a namorada.
Molhar pão na sopa.
Beber chope morno em copo de plástico sem reclamar.
Tirar espinho do pé com alfinete.
Passar duas horas numa livraria, sair com as mãos vazias
e mil histórias na imaginação.
Pagar a conta mais antiga no dia em que chega a mais
nova.
Subir o morro de madrugada para ver o sol nascer.
Contar os segundos entre o relâmpago e o trovão para
saber a distância.
Molhar os pés no riacho.
Aprender a dormir no ônibus e acordar uma parada antes.
Ficar doidão sem perder o juízo.
Escrever certas coisas e nunca mostrar a ninguém.
Impedir que experiência e entusiasmo se tornem antônimos.
Colecionar nuvens engraçadas.
Emborcar besouros e ir embora.
Na hora do TSE, tirar o som e olhar os candidatos nos
olhos.
Dizer com licença, desculpe, por favor, muito obrigado.
Saber tomar um porre sem aborrecer ninguém.
Designar tarefas, explicar antes, cobrar depois.
Deixar que os velhos e as crianças conversem em paz.
Ir a pé para economizar os trocados do ônibus.
Sentar bem na frente para ver o filme antes dos outros.
Ensinar os filhos a rezar e a tomar a bênção.
Não ter medo de pensar em nada.
Ver alguém dormindo com frio, cobri-lo e ir embora.
Descascar laranja sem partir a espiral.
Fazer em um só dia uma amizade que acaba durando a vida
toda.
Procurar tesouros enterrados.
Praticar tiro-ao-alvo com bodoque e lagartixa.
Botar bombril na antena da TV.
Procurar dançar sempre no miolo do salão.
Todo aniversário ficar junto da parede e marcar a altura.
Procurar discos voadores até ser capaz de jurar que viu
um.
Jogar bola com o cachorro.
Empilhar moedas por ordem de tamanho.
Jogar damas com tampas de garrafa.
Fazer promessas a torto e a direito, e pagá-las todas.
Assar castanhas na brasa.
Ter um número da sorte.
Inventar apelidos para os conhecidos.
Durante as férias ler os livros da próxima série para ir
se preparando.
Desembarcar sozinho na rodoviária de uma cidade sem
conhecer ninguém.
Saber andar a cavalo e de bicicleta.
Fazer a barba antes da idade para que venha logo.
Ter um santo de devoção e não contar pra ninguém.
Adormecer pensando nas despesas mas acordar novinho em
folha.
Nadar, nadar e correr na praia.
Virar a noite para entregar um trabalho no prazo.
Acertar um contrato “de boca” e cumpri-lo em cada
detalhe.
Fazer um curso noturno pensando em daqui a dez anos.
Assar na chapa o pão francês de ontem.
De meia em meia hora dar uma volta na casa apagando luzes
desnecessárias.
Pagar bem um trabalho bem feito, e fazer bem um trabalho
bem pago.
Consertar e manter na ativa um eletrodoméstico até ele
morrer de morte natural.
Saber quando é hora de desistir por enquanto.
Passar uma noite em claro com uma criança com febre.
Aprender a dobrar lençol sozinho e a cortar as unhas da
mão direita.
Tratar outra pessoa como se fosse você, tratar um bicho
como se fosse uma pessoa, tratar uma planta como se fosse um bicho, tratar uma
coisa como se fosse uma planta.
Praticar estas ações, e todas as demais, nos círculos
concêntricos do coração do Brasil: sua cidade, seu bairro, sua rua, sua casa.
(Uma versão
ligeiramente diferente foi publicada no Fascículo Especial de Leituras
Compartilhadas / Leitura Ampla, ano 2, Rio, 2005, www.leiabrasil.org.br)
5 comentários:
amei. me senti vivendo cada linha desse texto, e como se mostraram tão importantes coisas [aparentemente] tão banais. esse é um cotidiano que vale a pena ser degustado.
abraço!
Muito boa essa variação do Eu me lembro.
Há dez dias a coluna de Sérgio Augusto no Estadão publicou um Eu me lembro, chamado Memorando.
Quem influenciou quem?
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,memorando,70002860684
Belezura, Braulio: admirável contra-copa da alma brasileira. Abrrr
Contra-capa, putz!
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