A literatura não é tudo na literatura. Ou, formulando melhor: não é apenas a arte literária que a gente procura quando começa a ler um livro.
Como sou escritor (e da linha “a arte acima de tudo”, ao
invés da linha “socialmente engajada”) sinto-me na obrigação de dizer que a
arte literária está presente “com força” em praticamente todos os grandes
livros – os cânones de cada cultura, os clássicos, os livros reeditados e
retraduzidos centenas de vezes, etc.
Mas esses livros, por mais respeitáveis que sejam, são
apenas uma fina fatia da produção literária que incessantemente se escreve, se
publica e se lê no mundo inteiro.
Digo isto “no escuro”, cruzando os dedos, porque não faço
uma idéia muito clara do que é lido por bilhões de chineses e de indianos, para
dar apenas um exemplo bem óbvio.
Os grandes livros nos dão, sempre uma idéia forte,
intensa, do que era uma época, um ambiente social, um país, uma cidade, uma
região. Isso não se discute. Mas é preciso saber ver.
Vamos pegar um desses exemplos mais óbvios: o subestimado
Machado de Assis. A maioria dos estudantes que lê Machado não lê os
contemporâneos de Machado, os figurões da sua época, os best-sellers da sua
época, a arraia-miúda da sua época. Fica sem referência para comparar os pontos
em que Machado se diferencia do resto.
Fica parecendo aquele episódio do Barão de Munchausen em
que ele adormece num campo nevado, à noite, e amarra o cavalo num galo de metal
que aponta do meio da neve. Somente de manhã, depois que a neve derrete, ele percebe
que havia uma aldeia, e que a neve havia coberto tudo, menos o galo do
campanário da igreja, onde o cavalo agora está pendurado e esperneando.
Machado de Assis (e outros, em outras circunstâncias –
Edgar Allan Poe nos EUA de 1840, p. ex.) é esse galo. Não enxergamos hoje, em
2019, o ambiente literário em que ele se movia. Vemos apenas esse galo, e
achamos que ele está ao rés-do-chão. “Não vi nada de mais... já li centenas de
histórias assim...”
O galo está muito alto, mas a altura dele está oculta
pela neve do nosso desconhecimento.
Em volta desses “galos”, desses autores geniais, existem
dezenas de outros, centenas de outros, que são igualmente importantes. Não é só
o gênio que é importante. Não é só a obra-prima que precisa ser lida.
Para quem tem um interesse real pelo mundo, a literatura
serve também como uma espécie de “estudo das mentalidades”. Os grandes autores
(os que são considerados “grandes” hoje talvez não o fossem cem anos atrás, e
talvez não mais o sejam daqui a mais cem) são aqueles que, em nossa opinião,
foram mais fundo na descoberta de alguns aspectos da vida humana no seu lugar,
no seu tempo.
Há muitos romances brasileiros que não chegam às alturas
verbais de um Guimarães Rosa nem às profundidades psicológicas de Clarice
Lispector – mas que são experiências notáveis na captação de um ambiente
social, de um grupo, de um conjunto de pessoas. Podem servir como documentos de
época, por serem livros bem observados, bem anotados, bem pesquisados – mesmo que
não sejam extraordinariamente bem escritos.
Voltando ao ponto inicial: a arte literária não é a única
coisa que buscamos nos livros. Quando está presente, é uma beleza. Mas muitas
vezes está presente de forma apenas discreta, e o que aquele livro tem a nos dar,
e é igualmente importante, é o pensamento de uma época sobre si mesma, através
de um autor talvez menor, mas que talvez por isso mesmo seja um exemplo do
tempo em que viveu.
Nenhum autor está “à frente do seu tempo” como a imprensa
tanto repete. Os grandes autores estão apenas captando uma área mais ampla
desse tempo. Mas não são os únicos que o estão percebendo.
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