domingo, 27 de janeiro de 2019

4428) As fadas e os fados (27.1.2019)



(na foto: Ursula K. Le Guin)

A imprensa e as redes sociais andaram nos avisando que era o primeiro aniversário da morte de Ursula LeGuin. Um ano atrás, eu tinha finalmente encarado ler por inteiro a trilogia original de “Terramar”, que a celebrizou como autora de fantasia. Mais do que competente, foi inovadora em muitos aspectos.

Além da imaginação narrativa, LeGuin tinha a vantagem adicional de ser uma autora de formação clássica, numa família de professores, muito articulada, e que sabia discutir assuntos literários com uma voz literária. Nesse ponto, vejam só, eu diria que ela é parecidíssima com Harlan Ellison e com Raymond Chandler, por exemplo. Todos têm textos críticos e literários de grande valor, e cada um escreve como é, e teoriza como é, com tudo que sabe, com todos os seus recursos de escrita. Nem adotam uma “persona” pomposa, nem se escondem atrás de cortinas de miçangas factuais, nem botam pose de profetas. A voz interior do ensaio é a mesma do conto.

Da série de Terramar eu tinha lido apenas a coletânea Tales of Earthsea (2001), que tem histórias muito perceptivas, descrições tersas e precisas, e o fenômeno da magia-com-regras sendo explorado de vários ângulos.

LeGuin sabia ilustrar bem os princípios narrativos que defendia, e o seu modo pessoal de ver a fantasia. Há pelo menos duas coletâneas muito boas de seus artigos teóricos, resenhas, pequenos ensaios, discursos: The Language of the Night (1979) e Dancing at the Edge of the World (1982). Vários desses textos são disponíveis online (há links nos respectivos verbetes da Wikipedia).

Numa resenha onde comenta as Fábulas Italianas de Ítalo Calvino ela começa, como faz muitas vezes, comparando etimologias, para ver as mutações de sentido e de origem daquela idéia, quanto mais se remonta atrás no tempo.

Diz ela que a palavra inglesa para fada, fairy, em italiano se diz fata, que segundo ela vem, tal como a palavra inglesa “fate”, destino, do termo em latim fari, falar. (Eu fico o tempo inteiro com uma comichão de que fare também é algo como “fazer”, conforme o italiano.)

O dicionário online que sempre consulto (www.etymonline.com) sugere que a cronologia reversa de fairy remonta aos anos 1300 com a forma faerie e o sentido de “a pátria ou o lar de criaturas lendárias; terra-das-fadas (fantasyland)”.

O antecessor deste é o Francês Antigo faerie, “terra das fadas, encontro entre fadas; encantamentos, magia, bruxaria, feitiçaria”. E esse termo por sua vez descende de fay, do latim fae, e do latim fata, as Fadas, forma plural de fatum, “aquilo que já está escrito; destino, fado (destiny, fate).

Isso nos encaminha numa direção curiosa, porque a publicidade e a ilustração popular insistem na fada como uma criaturinha angelical e sexy, uma espécie de Barbie do além. Dentro de “Fadas” cabem, é bom lembrar, desde as rechonchudas e boazinhas fadas-madrinha de tantos contos quanto a Fada Carabossa que gosta de estragar a festa dos outros.

Há um provérbio que diz: “Lá como cá, más fadas há”.

O mais interessante deste passeio é o plural de Destino. As destinas. E tudo isso nos prepara para a revelação final: toda essa árvore genealógica está pendurada de cabeça para baixo numa raiz indo-européia, bha, que entre outros sentidos traz “falar, dizer, contar”. O que é o Destino? É algo que foi falado, dito, contado. E num certo sentido o que foi contado é porque já está escrito. São coisas que já têm um formato para acontecer.

E as fadas são o que? São subdivisões desas coisas feitas, são criadas por alguém, são também criaturas. E chamam-se “fadas” justamente (é mais ou menos por esse caminho que o nó chega ao nosso brasileiro de agora) porque foram feitas, foram “fa(zi)das”. É a mesma compactação que nos fazer dizer em vez de “eles foram pegados” “eles foram pêgos”. Elas foram fazidas, elas são fadas.

As fazidas são criaturas que já aconteceram. A história delas, como a da mulher fatal de La Invención de Morel (1940) de Bioy Casares, tem que reacontecer sempre da mesma maneira. São fadas por isso, foram feitas para encarnar a condição de quem está presa no cristal de um encantamento qualquer.

Se usarmos a forma masculina o raciocínio é parecido. Quem gosta de música sempre considera a palavra fado como uma forma de canção que a musicalidade de Portugal transformou em portuguesa, caso de fato tenha tido outra origem. Mas na ala da literatura encontramos a palavra fado em sua medula original, seu sentido primal de destino, de fatalidade, de enredo inescapável como um Maelstrom. O fado é algo maktub, está escrito nas estrelas, está dito. E feito.

As fadas e os fados. As fazidas e os fazidos. São seres que vêm interagir com os indefesos humanos, com os ainda não-feitos, ainda não-prontos, ainda na versão-beta-em-preparo, ainda sujeitos ao acaso, à sorte, ao azar, ao milagre aleatório, ao susto randômico. Comparado às fadas e aos fados, o ser humano (diria Darcy Ribeiro) está ainda em pleno fazimento.

As criaturas da Faerie, termo que continua a circular com vigor, vivem como que por trás de um vidro invisível e intransponível que nos separa de seu universo. É como se fossem criaturas dotadas de uma vaga memória, uma vaga noção de que estão há milênios revivendo aquilo, como um gramofone casualmente religado recomeçaria a tocar vezes sem conta o mesmo disco fonográfico que ali restara.

Quando dizemos que alguma coisa parece um conto de fadas estamos num terreno meio escorregadio. O conto de fadas para mim não é um conto cheio de deslumbramento, de beleza, de maravilhamento, de sense-of-wonder, nem é simplesmente uma história das dificuldades pré-casamento entre um rapaz e uma moça.

Do ponto de vista de quem escreve, o contato entre o “mundo real” e a “faerie” é o contato entre mundos contíguos, muito semelhantes, com pessoas de verdade com muita coisa em comum com os humanos, mas obedecendo a leis diferente de espaço, de tempo, de personalidade, etc.  Assim como nós humanos não podemos, por exemplo, cancelar a morte, ou ficar livres da força da gravidade, as fadas e os fados não podem evitar a própria ruína ou tragédia, quando é o caso. Estava escrito. O oráculo, anos atrás, explicou que isso ia acontecer.

Explorar um repertório inesgotável (e sempre novo) de “confronto de proibições” pode ser uma boa diversão para quem escreve sobre fadas. Sempre é possível imaginar uma “lei” ou “maldição” diferente sobre elas, e que produza bons resultados na trama.









2 comentários:

Paulo Gervais disse...

Bráulio, costumo acompanha-lo por aqui sempre com muito prazer. Tens uma escrita de boa conversa que me faz sentir,lendo,estar te ouvindo falar numa roda de amigos. Uma qualidade rara. E este então me encantou, com sua etimologia fazendo a palavra delirar... me lembrou a "Legenda Áurea", do Jacopo Varazze,uma coleção de "vida dos santos" católicos medieval,onde o autor começa sempre a biografia do santo pelo significado do nome dele, uma etimologia que se empenha em reduzir o real humano num "exemplum" ideal de fé e vida cristãs,querendo reduzir o "que se estar fazendo"- o humano - em "coisa feita" - o santo - ou fazida,como você bem diz em relação às fadas, é bem verdade que por outras razões,catequéticas neste caso.Um texto estimulante. Muito bom!. Um abraço.

Braulio Tavares disse...

Obrigado, Paulo. Eu gosto de investigar meio amadoristicamente essas etimologias. Às vezes faço uns exercícios de especulação ficcional -- suposições que sei não serem verdadeiras, mas que fornecem interessantes associações de idéias. O leitor deve se acautelar! Um abraço.