Às vezes a gente é tentado a ver no tradutor uma espécie de ourives. De fato,
tem muito a ver, aquela concentração quase maníaca para produzir um
pequeníssimo mas extraordinário efeito num espaço mais que minúsculo. A arte de
ver uma coisa complexa e conseguir reproduzi-la igualzinha. Traduzir poesia é muitas
vezes assim.
Não só poesia, claro. Um exemplo bem à mão, que pode ser estudado, é o
trabalho conjunto de Guimarães Rosa com seus tradutores Edoardo Bizarri e Curt
Meyer-Clason, que traduziram sua obra para o italiano e o alemão,
respectivamente. Para achar o equivalente de um topônimo, de um arcaísmo, de
uma imagem inusitada, passavam horas, propunham e examinavam variantes, uma
delas “colava”.
No texto de Rosa o tradutor avança quase que de palavra em palavra, mas
na prosa de registro mais solto pode-se parar de frase em frase. A palavra pode
ser a menor unidade de significado, mas a frase é o átomo de hidrogênio da
literatura. Tudo se constrói em cima dela.
A jóia que o tal tradutor-ourives está filigranando é a frase. Para conseguir recriar com sabor de verdade a
frase o tradutor muitas vezes tem que enfiar uma palavra intrusa, tem que omitir
uma palavra que parecia importante. Desde que a curva, o gráfico da frase
continue o mesmo.
Essa imagem me lembrou o aposentado e derrotado Coronel Aureliano
Buendía, do romance de Garcia Márquez. Depois que perde a, sei lá, centésima
Revolução que tentou realizar no país, ele se recolhe a um pequeno ateliê onde
fica esculpindo peixinhos minúsculos de ouro, todos perfeitos e simétricos até
a derradeira escama. O ouro de que dispunha dava para dezoito peixinhos
idênticos. Quando ele fechava a conta, derretia todos, e recomeçava.
Não existe tradução definitiva, tal como não existe obra definitiva. Se
Shakespeare ressuscitasse hoje, a primeira coisa que ele ia pedir era uma
borracha, papel e tinta. O tradutor precisa somente ter a lucidez necessária
para perceber quando tem diante de si um verso perfeito, porque esses existem
sim, e são legião. O que é mesmo bom tem que ficar à altura.
Grandes traduções de poesia já foram feitas por não-poetas, por
indivíduos que jamais produziriam um só verso de seu.
Mesmo na prosa, muitas vezes uma tradução meramente literal equivale a
escutar uma orquestra sinfônica num mp3 compactado. Perdem-se os graves, os
agudos, as superposições, os subtemas longamente planejados pelo autor. Mas mesmo
traduções precárias são importantes pelo efeito colateral de trazer (digamos)
Boccaccio para o leitor lituano, as Mil e Uma Noites para o leitor holandês,
Goethe para o leitor nicaraguense. Tem tanto, no original, que alguma coisa
sempre passa.
Claro que seria muito melhor se as traduções fossem sempre boas. Mas
neste aspecto concordo com Jorge Luis Borges quando diz que uma boa história
resiste a traduções, a paráfrases, a imitações, à má memória de quem a reconta.
Histórias cujo efeito reside no enredo são mais resistentes a uma má tradução
do que uma história cujo atrativo principal seja o estilo, ou alusões culturais
obscuras.
Vai ser preciso uma tradução muito ruim mesmo para tirar o impacto e o
mistério de histórias límpidas como “O Colar” de Maupassant, “A Pata do Macaco”
de Jacobs ou “Continuidade dos Parques”de Julio Cortázar. Basta recontar, com
uma voz plausível, sem precisar de enfeites, o seu mecanismo fatal de decisões,
consequências e surpresas. Passando isto pro leitor, é o que importa. Estilo,
no caso, é uma mera roupa. Pode mudar um pouco, desde que o plot se mantenha.
A tradução as vezes é ruim, mas para certos livros basta uma fagulha
saltar a fronteira linguística para renovar o incêndio inteiro.
2 comentários:
Li o texto depois de comentar no fb, e aqui concordei um tiquinho mais... mas ainda acho bem difícil separar o texto da história. Embora concorde que algo passa. O que exatamente, não sei. Quanto mais entro no mundo da tradução menos o entendo.
Renata, você pode contar a mesma história (Branca de Neve e Os 7 Anões, p. ex.) através de: 1) um conto; 2) uma história em quadrinhos; 3) um curta de animação; 4) um curta com atores; 5) um cordel em versos; 6) uma pecinha de teatro; etc. Se os fatos básicos forem mantidos, é a mesma história, que transpôs todas essas "barreiras linguísticas". O mesmo se dá com as barreiras de idioma. Eu acho.
Postar um comentário