Carlos Drummond tem um verso que eu acho ótimo, quando
ele diz que o que queria de verdade era “o fim sem a injustiça dos prêmios”.
Todo prêmio é injusto? Sim, sempre, para alguém, de algum
ângulo, por algum pretexto ou motivo. Todo prêmio subjetivo (alguém gostou mais
de A do que de B) pode ser questionado assim.
Prêmios esportivos tentam fugir à subjetividade. São atribuídos
valores numéricos a performances individuais, quantificando-as de acordo com
algum método que todos compartilhem. Isso produz uma mentalidade de crença de
que numa disputa de qualidade existe um critério capaz de fazer a definição
pender de forma indiscutível, irrecorrível, para um dos dois lados. Ganhar no
basquete por 147x146 ou na corrida por 3 centésimos de segundo é algo nítido.
Equivale (sempre: essa é a raiz do esporte) a ganhar de 1 a zero.
Prêmios literários são subjetivos. São conferidos por um
júri de leitores que se supõe qualificados para avaliar uma obra. Não existe um
ranking numérico de qualidade literária, e no dia em que houver eu me suicido.
O Nobel é um prêmio para um conjunto de obra, pelo que
sempre entendi. Isso significa avaliar a carreira completa de uma dúzia de
nomes (acho que isso varia a cada ano), no mundo inteiro.
O problema não é que a escolha seja subjetiva, que ela reflita
opiniões pessoais, venetas, preconceitos. O problema é que quem concede um
prêmio como o Nobel, por exemplo, precisaria talvez ter a respeito de cada
concorrente “um iceberg, não, uma Antártida
de informação”, como dizia William Gibson.
Tem política envolvida? Tem, né? Qualquer coisa dentro do
radar da imprensa internacional e que conceda prêmios de mais de um milhão de alguma
coisa tem política. No caso do Nobel há
dois ângulos diferentes disso: o jogo das preferências ideológicas (esquerda,
direita, etc.) de cada autor e de cada jurado, e as maquinações políticas
específicas da disputa e da concessão da “láurea”, as pressões, recados,
ameaças, promessas. Existe política no Nobel e existe política na escolha das
menções honrosas no concurso de poesia de uma escola dominical em Conceição do
Mapinguari.
Na casa dos meus pais tinha uma dúzia de volumes daquela
coleção Prêmio Nobel, exemplo de
resistência nas salas de visitas e estantes escolares do Brasil inteiro. Doze
autores cujos nomes aprendi naquelas lombadas: Bjornstjerne Bjornson, Theodor
Mommsen, Sully Prudhomme, Frederic Mistral, José Etchegaray...
Li algum? Consegui ler dois: O Pássaro Azul, a peça-poema de Maurice Maenterlinck, que eu descobri
recentemente ser cunhado de um dos meus autores favoritos naquela mesma época,
Maurice Leblanc; e A Luz Que Se Apagou
de Rudyard Kipling, do qual eu já conhecia Mowgli,
o Menino Lobo (The Jungle Book), pela Coleção Terramarear, e o famoso poema
“Se...” (“If...”), do qual meu pai tinha um vinil, na voz de Rodolfo Mayer.
Comigo, o Nobel ficou associado desde cedo ao que a
imprensa já transformou em carimbo: nome impronunciável e obra ininteligível.
Sempre tenho um susto quando descubro que o ganhador é alguém como Saramago ou
Vargas Llosa. Quando anunciaram Dario Fo, foi a minha vez (antecipada) de achar
que era pegadinha.
Prêmios têm valor?
Para mim, sim, porque eu sou primeiro que tudo um leitor, um leitor que
escreve. (Gosto muito de escrever, mas
de ler gosto mais ainda. Pela singela razão de que posso ler o mundo de todo
mundo, mas pra escrever só escrevo o meu.)
Prêmio é spotlight.
Como leitor, no meu tempo de estudante, eu acompanhava na imprensa todos
os prêmios. Nos anos 1970 houve expansão da imprensa alternativa, das coleções
populares, dos tablóides de oposição, das antologias, e também dos concursos literários. Foi assim que Rubem Fonseca (que já era autor publicado e maduro)
surgiu no radar de todo mundo, ao ganhar o Prêmio do Paraná, o maior do país,
com “Lúcia McCartney” (1969).
Os leitores correm atrás, os livreiros, os editores: para
todos esses é importante. Seria uma injustiça se não fosse também para o “galardoado”.
Eu já me inscrevi, já perdi deadline, gastei pequenas
extravagâncias com postagens de pacotes, já perdi onde tinha certeza, já ganhei
quando não esperava, já perdi sem me abalar, já ganhei sem merecer.
Prêmio só deve ter importância quando a gente ganha.
Mesmo quando é preciso preparar inscrições, enviar originais, etc., o melhor é
fazer isso e esquecer. Quando ganha, você vai lá satisfeito e agradece. Mas é
como bilhete de loteria. Por enquanto, a gente compra, guarda... e “esquece”.
O folclore e o cerimonial em torno do Nobel são
irresistíveis para a cultura popularesca.
Um retrato literário que me vem à lembrança é um velho
professor sueco, jurado do Nobel de Literatura, com quem se abrem as primeiras
páginas do romance The Prize (1966)
de Irving Wallace, um thriller de espionagem em torno de um escritor
norte-americano que vai a Estocolmo para receber o Nobel de Literatura e se
envolve numa intriga internacional, cheia de tentativas de assassinato e de
perseguições.
Foi filmado, claro. Criminosos
Não Merecem Prêmio (1963) foi o título brasileiro do filme, dirigido por
Mark Robson e tendo Paul Newman no clichê de Andrew Craig, o escritor
beberrão e conquistador (uma espécie de
Norman Mailer ou Bukovsky), que confessa à imprensa sueca (enquanto azara sua
cicerone estatal, Elke Sommer) estar sobrevivendo graças a contos policiais em
revistas de pulp fiction.
O filme de Robson aparece de vez em quando naquelas
listas tipo “Os Dez Melhores Filmes Hitchcockianos Não Dirigidos Por
Hitchcock”. Tem cenas que parecem
tiradas de North by Northwest (Intriga
Internacional, 1959), certamente por ter o mesmo roteirista, Ernest Lehman. Por
outro lado, deve ter concorrido para que logo depois Paul Newman fizesse um papel
muito semelhante, como o cientista atômico dos EUA numa suspeita visita à
Alemanha Oriental, em Torn Curtain (Cortina
Rasgada, 1966) de Hitchcock em pessoa.
Uma das cerimônias do Nobel mais ominosas que o cinema já
mostrou foi a de A Beautiful Mind (Uma
Mente Brilhante): nela, o matemático John Nash (Russell Crowe) recebe o Nobel
de Economia quando está em pleno tratamento de esquizofrenia. Lá nos salões
suecos, ele avista de longe os personagens de sua alucinação, contidos mas
presentes.
Prêmio de literatura é bingo, é víspora, é loteria, é
algo que cai do céu. As coisas que caem do céu independem de estarmos pensando
nelas ou não. Melhor ir escrever o próximo livro.
O melhor comentário sobre o Nobel para Bob Dylan foi de Leonard
Cohen: “É como pregar no Everest uma medalha de ‘maior do mundo’”.
3 comentários:
Por que uma cerimônia ominosa? Abominável, execrável? Ora, se o personagem tem alucinações, a cena cabe no filme.
Quanto ao comentário de Cohen sobre Dylan, preferi o Murakami, que foi algo mais ou menos assim: 'jogar pela janela os discos de Dylan e sair para tomar uma cerveja gelada". Pode parecer despeito, mas para mim foi ótimo, pois achei uma bobagem darem um prêmio de literatura para um músico. Agora, como sugeriu Ruy Castro, podem dar o Grammy para um escritor qualquer. Pode ser até um escritor de segunda linha, como eu. ;)
Acho que o prêmio não foi para o músico e sim para o poeta, Paulo Rafael. Justíssimo, aliás.
E o termo "ominosa" eu usei no sentido de "ameaçadora, terrível.". :-)
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