Nos blogs e saites com listas dos “melhores começos de
livros”, “melhores finais”, etc., as listas me dão boas dicas para livros que
nunca li e nunca lerei.
O que falta neles, às vezes, é teoria. Tudo bem escolher algumas linhas do romance de Fulano e dizer que é uma das grandes aberturas-de-romance de todos os tempos. Mas, por quê?
Nem todo sujeito que faz essas listas se dá o trabalho de justificar suas escolhas. Em geral não são críticos – estes, sim, têm o trauma de precisar justificar até o-que-não-é-preciso. São simples fãs, e as verdades estéticas de um fã são “auto-evidentes”.
O que falta neles, às vezes, é teoria. Tudo bem escolher algumas linhas do romance de Fulano e dizer que é uma das grandes aberturas-de-romance de todos os tempos. Mas, por quê?
Nem todo sujeito que faz essas listas se dá o trabalho de justificar suas escolhas. Em geral não são críticos – estes, sim, têm o trauma de precisar justificar até o-que-não-é-preciso. São simples fãs, e as verdades estéticas de um fã são “auto-evidentes”.
Vou escolher um trecho colhido num desses saites, de uma
autora que nunca li, um livro que não conheço.
São as linhas iniciais do romance The Violent Bear It Away (1960), de Flannery O’Connor, uma escritora do sul dos EUA, muito respeitada, mas não me lembro de ter lido sequer um conto dela. Sou um leitor indiferente, portanto. Como começa o livro?
São as linhas iniciais do romance The Violent Bear It Away (1960), de Flannery O’Connor, uma escritora do sul dos EUA, muito respeitada, mas não me lembro de ter lido sequer um conto dela. Sou um leitor indiferente, portanto. Como começa o livro?
“Fazia apenas metade de um dia que o tio de Francis Marion
Tarwater estava morto, quando o menino ficou bêbado demais para terminar de
cavar sua cova e um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um
garrafão, teve que acabar o serviço e arrastar o corpo desde a mesa do
café-da-manhã, onde ele ainda estava sentado, e sepultá-lo de um jeito decente
e cristão, com o sinal do Salvador plantado na cabeça do túmulo, e terra
bastante por cima para impedir que os cães o puxassem para fora.”
Tem esse menino (que idade terá ele?), a quem cabe a tarefa de enterrar sozinho o tio (imagino que F. M. Tarwater seja o próprio garoto) e não pôde terminar porque ficou bêbado. (Talvez isso corresponda a uma tradição como a tradição nordestina de que trabalhadores que limpam fossa sanitária bebem cachaça durante o trabalho, o que sempre deu origens a episódios pitorescos e escatológicos.)
Aparece um negro, com aqueles nomes pomposos e vazios de tantos personagens negros do Sul dos EUA, que parecem nome de governador.
Veio em busca de bebida (um garrafão, “a jug”) – talvez fosse um local de “moonshiners”, fabricantes clandestinos de bebidas.
Teve que ir buscar o corpo, que, num detalhe digno de Buñuel, continua sentado à mesa onde morreu.
E os detalhes finais mostram uma mistura de espiritualidade (“the sign of its Saviour at the head of the grave”) e de brutalismo (“enough dirt on top to keep the dogs from digging it up”).
O leitor sente firmeza em quem escreve. Não precisa mais do que isso para dar vontade de ler o resto.
8 comentários:
Cara, Flannery O´Connor figura em quase TODOS os manuais que li sobre "bem escrever". Chego a ficar quase curioso para lê-la, mas aí lembro que eu tenho muito a escrever, e deixo pra lá. :)
Te falei na FLUPP lá na Maré e torno a repetir: você é foda. :)
Baitabraço!
Gostei disso! Comparável ao olhar o rosto de uma pessoa e podermos saber um tanto de sua vida e do seu passado... Abraço, escritor pai da minha amiga Nayara...
Braulio, o que vc faz é a redistribuição das riquezas literárias do mundo. Da Flanery encontrei 2 livro de contos na Estante Virtual, quero reconferir a maestria (O Ernani Ssó me lembrou que já lemos dela O Terceiro Tiro/L&PM e que não nos entusiasmou). Dos inícios magistrais ainda fico com o Ray Bradbury em Fahrenheit 451: Queimar era um prazer. (Isso, a respeito de um bombeiro numa sociedade futurista, é um anzol irresistível). Ei, que tal um txt sobre os piores começos de livros? Sei, a concorrência é entre milhões!, mas se poderia eleger alguns top, de autores conhecidos. O Millôr destaca o Sir Ney e seu péssimo Brejal dos Guajás, aqui: http://www2.uol.com.br/millor/aberto/textos/004/007_06.htm
Gracias, abração.
Lembrei-me de um conselho dado pelo meu orientador quando comecei a escrever a tese de mestrado (que nada tinha a ver com literatura): “Escreva tudo, inclusive as conclusões, e deixe por último o início. Isso porque só quando terminar terá perfeito domínio do conteúdo, e por isso uma ideia clara sobre o que deve e o que não deve ser enfatizado.” Nunca pensei em aplicar isso a uma peça literária, mas vai que funciona? (Observação: nunca, jamais, haverá um começo mais instigante do que este: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Postumas”.)
Bom Zulmira, claro que haverá "um começo mais instigante", mas depende do gosto pessoal. Por exemplo, o início de Anna Kariênina: "Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira."
Também me deu vontade de ler algo da autora.
Eu comecei a ler a Flannery O'Connor, porque, vendo a série Lost, um personagem lia o livro dela. O take quase não deixava ver a capa, tive que pausar, dar zoom, tentar ler a imagem embaçada de movimento, o escambau, para adivinhar autora e título. Hoje a amo. Espero que você tenha ido atrás e que em breve poste algo a mais sobre ela. Um abraço!
P.S.: só agora, prestes a confirmar o comentário, é que percebi que a postagem é de 2015. Mas fica comentado assim mesmo.
Olá Braulio. Também não lembrava de ter lido nada dela. Fui dar uma checada e parece bastante visceral. Muita imagem visual. “O sol era uma enorme bola vermelha, como uma hóstia empapada de sangue, e, quando sumiu de vista, deixou uma listra fina no céu, como uma estradinha de terra a pairar sobre as árvores”. Este é final do conto “Um templo do Espírito Santo”. Espero que seja tão bom como o Flann O’Brien, que conheci aque nessa coluna e achei ótimo. Abç
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