Não costumo encher esta coluna com relatos autobiográficos. Isto aqui não é uma coluna social, embora tenha algo de coluna socialista. Pode ser vista também como uma coluna vertebral ou espinha dorsal da memória, em que os elementos vão se encaixando uns aos outros como vértebras, ou como vagões de trem. Não importa o símile, desde que o resultado seja longo, firmemente encaixado, e flexível.
Resumindo: dias atrás estive em Belo Horizonte para fazer
uma palestra no Circuito Literário da Praça da Liberdade. O detalhe é que a
palestra foi na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, que fica ao lado do
Palácio da Liberdade. Com isto, retornei
depois de 43 anos àquele edifício que teve um papel crucial na minha formação
como leitor. BH é uma das quatro cidades
onde morei pra valer. As outras são Campina Grande, claro, Salvador e este Rio
de Janeiro em cuja terceira margem vivo hoje a circular minha canoa. Vivi em BH dos 19 aos 21 anos, estudando
cinema na Universidade Católica (naquele prédio do lado oposto do Palácio), e
morando numa pensão a 50 metros dali (não existe mais: fotografei o prédio
imponente com que a gentrificação implacável a sepultou no solo).
Minhas manhãs e tardes eram passadas naquela biblioteca
de enormidade borgiana (e eu ainda não conhecia Borges!). Foi lá que tirei por empréstimo os dois
primeiros livros que li em inglês, The Time Machine de H. G. Wells e The
Martian Chronicles de Ray Bradbury. Era
lá que eu decifrava, linha por linha, as críticas do Cahiers do Cinéma. Foi
lá que eu li (olha só que biblioteca democrática, em pleno governo Médici) Os
Protocolos dos Sábios de Sião, o Minha Luta de Adolf Hitler, as Origens da
Revolução Russa de Kochan, Trotsky: o Profeta Armado de Isaac Deutscher. Lembro que nessa estante havia dois outros livros
de Trotsky: Stálin, com umas 500 páginas, e Os Crimes de Stálin com 800.
Fui embora de BH e a biblioteca ficou como o quarto de
Manuel Bandeira, “intacto, suspenso no ar”. Aparece de maneira fugaz no meu
conto “Exame da Obra de Giuseppe Sanz”, no livro Mundo Fantasmo (que deu seu
nome a este blog). Hoje, à sua entrada, veem-se
as estátuas do grupo do Encontro Marcado: Fernando Sabino, Oto Lara Resende,
Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Era um pouco desse espírito que me
iluminava, junto a Lincoln Cunha, Elizeu Ewald, Régis Frota, Paulo Sérgio Braz,
Geraldo Pires, João Antonio de Paula e tantos outros amigos que o vento leva e
o tempo traz de volta. Em sua honra, tomarei
um café e comerei um doce-de-leite em forma de losango, em alguma madrugada
silenciosa e aberta para o futuro.
5 comentários:
Mineira do interior também vivi o começo dos meus 20 anos em BH, lá se vão 7 anos. Essa biblioteca tb foi essencial na minha formação de leitora. Obrigada por esse texto que me fez viajar. =)
Ô Braulio! Emocionado! Beijos, amigo!
Esse relato me trouxe à lembrança uma querida biblioteca: a do Instituto de Educação Padre Anchieta, em São Paulo, onde fiz o ginásio e o colégio. Pequena mas riquíssima, era um espaço encantado. Li tudo o que pude de José de Alencar, Machado de Assis e Monteiro Lobato, entre muitos outros. Trinta e sete anos depois voltei àquela mesma escola, dessa vez como professora. Ansiosa por ver como estava a "Biblioteca Guilherme de Almeida" (assim se chamava), encontrei uma sala desorganizada repleta de pilhas de livros misturados sobre mesas, cadeiras e chão. Não havia mais biblioteca, apenas um depósito mal conservado. Sem bibliotecário não é possível haver biblioteca, disseram. E assim foi, durante o tempo em que lá permaneci. E assim é. Nem tudo melhora com o passar do tempo...
pensei que tinhas morado a valer no Recife também.
abção, beto azoubel.
Beto Azoubel, nunca tive casa no Recife nem em Olinda. O que eu tinha era o mau costume de me socar na casa dos amigos e ficar ali durante meses, até ser carinhosamente enxotado.
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