segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

3106) Django e o personagem (10.2.2013)





No filme de Quentin Tarantino, Django Livre, os dois pistoleiros, Schulz e Django, vão até uma fazenda fingindo interesse num assunto qualquer, mas com a intenção de resgatar uma escrava. Django tem que se fingir de negociante de negros que lutam para agradar os brancos. No filme, os fazendeiros brancos cultivam uma luta que é uma espécie de MMA entre dois brutamontes, no tapete da sala, para uma platéia de meia dúzia de amigos ricos, que fazem apostas. Os negros lutam “na mão” até que um consegue deixar o outro indefeso; então, o patrão oferece um martelo para que o perdedor seja “finalizado”.

O poder nos cega, o poder nos diz que somos invencíveis, que todos os nossos desejos serão satisfeitos, todos os nossos prazeres serão aceitos e legitimados, que mesmo as nossas fantasias mais cruéis merecem ser trazidas ao mundo real.  Dê a um ser humano poder absoluto sobre outro ser humano, e verá o quanto um ser humano vale pouco aos olhos de outro.

Schulz adverte a Django: “Não saia do personagem”. Atores sabem o que é isto. Leonardo DiCaprio cortou a mão num caco de vidro, na cena do jantar, mas ficou no personagem, e usou a mão sangrando como parte da cena. Incorporou o acidente à criação. Naquele mundo, continuar representando, sem deixar a peteca cair, é garantia de continuar vivendo.

Porque naquele ambiente todos representam. Schulz se disfarça de dentista. Django, quando libertado, se fantasia de branco (ou de mestre-sala, não sei). Criminosos se fantasiam de xerife. Stephen (Samuel L. Jackson, ótimo) é uma raposa calculista que se fantasia de puxa-saco ingênuo (o verdadeiro administrador da fazenda é ele). O fazendeiro (Leonardo DiCaprio, excelente) tem um personagem exuberante e imutável até o momento em que percebe estar sendo enganado, quando então reage como qualquer sinhôzinho quando é vítima de um insulto, ou pior, quando vê que estava sendo feito de otário.

Sair do personagem (perder a calma, o sangue frio, a paciência) é o que perde esses personagens. Quem sai do personagem perde o controle que tinha sobre a própria história. Negros são obrigados a “entrar num personagem” para sobreviver: a imitar os brancos, agradar os brancos, trair outros negros em benefício dos brancos. Schulz, que parece capaz de se sair de qualquer enrascada mediante sorrisos, gestos largos e exuberância vocabular, sai desse personagem no momento em que a raiva e a revolta moral são mais fortes do que o instinto de sobrevivência. Tarantino dirige cada cena como um arqueiro que retesa um arco, e quanto maior a energia retesada mais sangrento e trovejante é o desfecho, no momento em que ele desfere a flecha.



Um comentário:

Lucila disse...

Essa representação é a base da harmonia racial brasileira. Gostei do filme, na medida do que vi, porque a crueldade de Tarantino com os negros (e, neste ponto, concordo com Spike Lee) me horrorizou demais. E fiquei abismada, ao virar a cara para platéia nas cenas de humilhação violenta de ver apenas rostos encantados pelo espetáculo cinematográfico... Posso estar sendo sensível demais. Mas, o que queria comentar é essa sua observação das representações. Quando,em uma das cenas finais, de vingança pistoleira do protagonista, a trilha sonora é alterada para um rap, senti, claramente, com pôde ter surgido aquela expressão artística violenta e cadenciada. Muito embora, no Sul do EUA, gêneros mais melancólicos tenham properado... No Brasil, por mais que a música seja influenciada pelo negro, nunca o ritmo ou as letras expressaram violência e ódio (até ser influenciada pela cultura americana), em qualquer região. Representamos bem.