domingo, 27 de fevereiro de 2011

2491) A moral da fábula (27.2.2011)




No final das fábulas de Esopo ou de La Fontaine, vem sempre aquela frasezinha curta que nos acostumamos a chamar de “a moral da história”. 

O lobo bebe água no rio junto ao cordeiro, faz-lhe um monte de acusações e por fim o devora. Após o desfecho, vem uma “moral” tipo: “Quando um poderoso decide castigar um fraco, qualquer pretexto serve, e às vezes pretexto nenhum”. 

Essas fábulas têm um propósito didático e moralizante, tanto que continuam a fazer parte da nossa literatura infantil. O lado moralizante não precisa de explicações – trata-se de implantar na mente dos pimpolhos princípios morais, éticos, etc. O lado didático é mais sutil e mais interessante. Trata-se de dizer, por um lado: “Qualquer episódio concreto pode ser interpretado sob a forma de conceitos abstratos”. E por outro: “Qualquer conceito abstrato pode ser ilustrado através de pequenas historietas aparentemente ambientadas num mundo parecido com o nosso”.

A História é uma ciência em que somos o tempo inteiro induzidos a passar do concreto para o abstrato. 

Se nos deparamos com os registros de tráfico de escravos africanos durante 150 anos, podemos traçar um gráfico que ilustra as idas e vindas desse comércio e afirmar, por exemplo, que “do ano X ao ano Y o tráfico cresceu, mas do ano Y ao ano Z ele diminuiu”. 

Mesmo conceitos tão óbvios quanto crescer e diminuir só podem ser formulados se tivermos registros confiáveis sobre as quantidades, ao longo de um período de tempo aceitável.

A passagem do abstrato para o concreto tem mais a ver com a literatura. Uma coisa é a professora perguntar ao pirralho: “Zezinho, quanto é 15 dividido por 3?”. Ou o guri estudou tabuada ou não vai saber responder. Mas ela pode criar uma pequena obra de ficção. “Zezinho, uma mulher foi ao mercado e comprou quinze chocolates. Ela tem três filhos, e, para que eles não brigassem, teve que dar a mesma quantidade a cada um. Quantos chocolates cada um deles recebeu?”. 

Motivado por essa pequena tensão dramatúrgica, o guri é capaz de entender não só a possibilidade como também a importância de se dividir quinze por três; e faz a conta.

Grande parte da literatura nasce assim, de uma idéia abstrata que ocorre ao escritor enquanto ele fuma cachimbo (“A sociedade de consumo despersonifica os seres humanos, e faz com que eles vejam uns aos outros como meras mercadorias...”) e a partir disso ele começa a escolher personagens-função: este aqui vai ser o Capitalista Inescrupuloso, aquele outro vai ser o Trabalhador Ingênuo, esta vai ser a Companheira Solidária, aquela outra a Intelectual Egocêntrica... 

O problemas das idéias abstratas é que não produzem narrativas que pareçam com a vida humana. Produzem alegorias, histórias em que os personagens são tão programados e previsíveis quando um zumbi de videogame. 

(Os videogames, aliás, estão padecendo desse mesmo mecanicismo, que estraga as Utopias Proletárias, as Fábulas Cristãs e outras narrativas que nunca saem do abstrato).









sábado, 26 de fevereiro de 2011

2490) Drummond: “Poema do jornal” (26.2.2011)



A TV nos acostumou ao conceito de ver as coisas “ao vivo”. Copa do Mundo ao vivo era uma sensação, para quem antigamente escutava pelo rádio, e somente dias depois via as imagens (péssimas) na TV e tinha que esperar semanas ou meses pelo Canal 100. Mas a Internet nos acostumou ao conceito de “tempo real”, que é a mesma coisa, mas com uma distinção importante. A TV ao vivo dá uma sensação de imagem coletiva, compartilhada pelo mundo. A Internet em tempo real, por ser no computador, dá a sensação de que alguém está transmitindo aquilo só para mim. Lembro que na Guerra do Iraque, em 2003, passei uma madrugada inteira acordado, acompanhando no computador uma imagem “em tempo real” da invasão da cidade natal de Saddam Hussein, cujo nome agora me escapa. Num carro (ou num tanque?) a câmara percorria uma longa estrada, cruzava um portal, enfiava-se pelas ruas... E eu sem sono, acompanhando aquilo.

Um dos sintomas da Modernidade é a contemporaneidade com os fatos através da telecomunicação. O primeiro sinal disso na obra de Drummond é o “Poema do jornal”, do livro Alguma Poesia, onde essa idéia explode logo nas primeiras linhas: “O fato ainda não acabou de acontecer / e já a mão nervosa do repórter / o transforma em notícia”. Por um lado, é o triunfo da tecnologia, da capacidade de integrar as vidas pessoais à comunicação global. Por outro, é o conúbio duvidoso entre o crime e a notícia, porque a simultaneidade entre os dois é tão grande que desperta a nossa desconfiança. Se o sujeito estava tão presente ao fato, por que não o impediu? Continua Drummond: “O marido está matando a mulher. / A mulher ensangüentada grita. / Ladrões arrombam o cofre. / A polícia dissolve o meeting. / A pena escreve”.

Vejam que maravilhosos anacronismos, rupturas do espaçotempo. Os gerúndios se amontoam, tudo acontece no tempo presente: o crime, o grito, o arrombamento, e enquanto isto quem escreve não é o teclado do notebook, é “a pena”, a boa e velha pena abastecida em tinteiros do século 19. Modernidade e tempo-do-onça comem e bebem na mesma mesa, na poesia modernista. Será que Drummond escrevia com uma pena? Será que no tempo dele caneta-tinteiro era high-tech? (Aliás, vale registrar que o anglicismo “meeting”, na linguagem da época, era o que hoje chamamos de “manifestação” ou “ato público”).

O poeta encerra dizendo: “Vem da sala de linotipos a doce música mecânica”. Os linotipos, ao que parece, entraram em nossa imprensa por volta das décadas de 1880-90. Eram high-tech, quando “Alguma Poesia” foi impresso. Imagino que Drummond terá experimentado a mesma sensação que eu sentia aos 15 anos quando descia à oficina do jornal em que trabalhei e via aquelas máquinas imensas, sentia o cheiro de chumbo derretido, e escutava o estralejar contínuo das pequenas linhas-de-tipo sendo compostas. Aquilo era quase ficção científica; hoje seria, no máximo, uma nostalgia steampunk.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

2489) “O Discurso do Rei” (25.2.2011)



O arrastão do Oscar acaba me levando todo ano para ver alguns filmes que não me tirariam de casa em condições normais de temperatura e pressão. O que acaba sendo uma boa coisa, porque se deixarem um cinéfilo entregue ao seu próprio gosto ele vai se restringindo e se especializando cada vez mais. Em breve se limitará a ver somente um gênero, depois só um diretor, depois um único filme, depois uma única cena... Não, melhor deixar-se de vez em quando carregar pelo gosto alheio e dar uma checada no mundo lá fora.

O Discurso do Rei de Tom Hooper (diretor que nunca vi mais gordo) acaba sendo um exemplar agradável daquele gênero que Hollywood talvez tenha criado, O Antagonismo Inicial Que Resulta Em Amizade Profunda. O provável (e depois efetivo) Rei da Inglaterra, George VI, é gago. Como vai poder se dirigir ao seu povo, agora que inventaram o maldito rádio, onde o sujeito tem que falar ao vivo, não pode receber os benefícios de uma edição que suprima seus vacilos? (É curioso ver como os personagens de 1930 pronunciam com reverência e fascínio a palavra “wireless”, num tom que só retornaria com a Internet, 70 anos depois.) Ele contrata um especialista meio informal que é uma mistura de fonoaudiólogo, psicólogo e treinador de futebol. O especialista dá um sacode no Rei e deixa-o em condições de discursar.

Em termos de estilo e linguagem, é um filmão tão tradicional quanto os ambientes por onde circula: Palácio de Buckingham, Abadia de Westminster... Não sei se é fiel à “verdade histórica”, porque antes dele eu só conhecia os fatos muito por alto. O roteiro é cruel com o Rei Edward (que abdicou em favor de George) e com a desquitada norte-americana Wallis Simpson, pelo amor de quem ele renunciou ao trono. O retrato que o filme faz dela, especialmente, é de uma acidez impressionante. Tudo para contrapor melhor os temperamentos de Edward (expedito, resoluto, mas que baqueia diante de uma sirigaita) e de George (tímido, tartamudo, mas que se ergue à altura da situação quando necessário). Como dramaturgia emocional, funciona. A verdade histórica (seja lá qual for) acaba de ser recoberta por mais uma espessa camada de fantasia coletiva.

Colin Firth (o Rei) se sai muito bem, mas eu gosto mesmo é do ator Geoffrey Rush, com um personagem mais cheio de nuances do que o Rei, irreverente, pouco ortodoxo, mas também com suas limitações e pontos-cegos. Firth faz uma interpretação heróica de um personagem tecnicamente difícil (não é brincadeira gaguejar com espontaneidade, quando não se é gago) mas unidirecional. Rush pega um personagem que ninguém conhecia, ajudado por um roteiro perceptivo (a relação dele com a mulher e os filhos, mesmo pouco explorada, é bem interessante) e o enriquece. Nos filmes em que um especialista cura um problemático, em geral o especialista fica meio na sombra. É virtude do roteiro e de Rush que neste caso seja (pelo menos para mim) o contrário.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

2488) “O Retrato de Dorian Gray” (24.2.2011)



As sincronicidades são as rimas da vida real. Estão para ela assim como a simetria está para as artes visuais. No cinema temos dois tipos de rima. Podemos cortar entre imagens parecidas com idéias diferentes: em Viridiana, Buñuel corta de uma coroa de espinhos para um disco tocando na vitrola; em 2001 Kubrick corta de um osso flutuando no ar para uma nave flutuando no espaço. Ou podemos cortar entre imagens diferentes com idéias parecidas: Hitchcock corta de um casal na cama para um trem entrando num túnel.

Costumo ler livros e ver filmes sem planejamento, mas sem dúvida existe um impulso subterrâneo me levando a procurar obras que, quando justapostas, produzem uma fagulha. A fagulha do presente caso foi produzida pelo fato de, enquanto estou relendo O Médico e o Monstro de R. L. Stevenson ter assistido o DVD de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, adaptando o livro de Oscar Wilde. Estes dois textos são clássicos do romance fantástico vitoriano e são, por assim dizer, duas variações sobre o mesmo tema. Algo que poderia ser expresso no antigo slogan da série O Sombra, de Maxwell Grant: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração do homem? O Sombra sabe”.

Em ambos os casos, um respeitável cidadão britânico mantém uma fachada de indivíduo exemplar enquanto se dedica a prazeres indescritíveis e crimes imperdoáveis. No livro de Stevenson, ele o consegue através de uma poção que o transforma fisicamente em outra pessoa, um corpo físico que corresponde a uma parte de sua mente onde habitam os “baixos instintos”. No de Wilde, essa divisão é simbólica: Dorian Gray pratica os piores excessos e ao longo dos anos permanece jovem e belo como sempre, ao passo que é seu retrato quem envelhece e decai. Há certamente outras obras com perfil semelhante, mas eu diria que, principalmente no mundo de língua inglesa, estas duas novelas tão curtas criaram o padrão para as histórias de dualidade entre virtude aparente e pecado oculto.

Somos tentados a dizer que isso é a cara da Londres vitoriana, mas os exemplos contemporâneos mostram que a coisa vai mais longe. Talvez os mais conhecidos sejam Psicopata Americano (livro de Bret Easton Ellis, filme de Mary Harron) e Clube da Luta (livro de Chuck Palahniuck, filme de David Fincher). Em ambos, um sujeito extremamente comum e enquadrado no mundo corporativo desenvolve uma segunda personalidade agressiva, sádica e impossível de controlar, um “monstro do Id”, instinto puro, auto-gratificação pura. Nestas obras ficamos sabendo em detalhe quais os atos escabrosos praticados pelos modernos Dr. Jekyll e Dorian Gray, atos que a discrição da época não permitia aos escritores mostrar de maneira gráfica, explícita. Ainda somos vitorianos. Mesmo na mais permissiva das sociedades, ainda existe espaço para a cisão da personalidade entre um “cidadão acima de qualquer suspeita” e um monstro – ou, como disse Olavo Bilac, “um demônio que ruge e um deus que chora”.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

2487) “A Mulher que Enganava a Lua” (23.2.2011)




Por obra e graça de Glauco Mattoso, que conhece minhas idiossincrasias literárias, chegou às minhas mãos este livro fora-de-esquadro, de autoria de A. Dari, publicado em São Paulo, 1984. 

A edição é avara em informações, mas a foto na quarta capa deve ser do autor – um sujeito de seus 30 e poucos anos, moreno claro, cabelo preto, nos fundos de uma casa ou apartamento, sorridente, abraçado a um cãozinho. 

Não li o romance ainda, que é uma espécie de ode ao “eterno feminino”, e se inicia com um preâmbulo laudatório, cujo primeiro parágrafo transcrevo a seguir:

“Revestida de uma divindade milenar, de natureza fugitiva e universalmente perseguida, a mulher, retilínea em suas atitudes, deixa-se flutuar em seu enigma, arrasta a sua existência a decantar a sua sensualidade e, ainda que as décadas ligeiras imprimam em suas faces as marcas indeléveis que inibem a vaidade, ela persiste em querer as ternuras pré-fabricadas”. 

Não pense o leitor que todo o livro é um prolongamento desse enunciado; há personagens, há ação, como neste trecho, colhido meio ao acaso, na página 79: 

“Às duas e dez daquela manhã cinzenta, apática e emburrada, peguei Kelvia pela cintura e a levei para visitar algumas vitrinas. Segui em curtas passadas pela Regent Street. Lembrei-me de que ali em 1978 eu vi a minha imagem refletida numa vitrina e atrás dela desfilava sem pressa Jadranka e sua secreta fantasia. Um minicab inquiriu: ‘Awaiting a taxi?’ Disse que preferia caminhar”.

Bom, se não percebeu ainda, aqui vai: A Mulher que Enganava a Lua é um livro escrito sob “contrainte”, sob uma limitação voluntariamente estabelecida pelo autor. No caso, é um livro em que não aparece a letra “O”. 

Eu sou fascinado por essas façanhas, e acho um prodígio que o sujeito faça um livro com (no presente caso) 141 páginas, onde o “O” não apareça uma vez sequer. Lembro o exemplo clássico de Georges Perec, que fez um livro (La Disparition, 1969) sem usar a letra “E”. 

Mas Perec e sua editora dão um migué, um drible de corpo, nas restrições. Na edição da Gallimard, que tenho em casa, o texto é impresso em tinta preta mas os “complementos” são impressos em vermelho, e neles aparecem o nome do autor e outros detalhes que não prescindem da letra E (como o nome do selo da editora, Denoël).

No livro brasileiro, amigo, a lei é jagunça. A letra O não aparece nem por decreto. Vejam estas informações técnicas: 

“A. Dari – C.P. 19.217 – S. P. – Capital – É vedada a réplica textual, parcial e integral, sem a prévia anuência de A. Dari – Aplicáveis as penas da lei – Printed in Brazil”. 

Cada informação destas é uma profissão de fé: “serei fiel à regra que criei...” Este é o verdadeiro espírito de quem escreve sob “contrainte”. Até Perec, em seu livro de 318 páginas, teve que fazer pequenas concessões! 

Glauco me avisa que o mesmo cara publicou um livro sem a letra “A”, que já comecei a caçar. O único problema é saber como o autor conseguiu assiná-lo.






terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

2486) O sonho de Sun Tzu (22.2.2011)



(desenho de Cavani Rosas)

É uma minimalista fábula chinesa que Jorge Luís Borges cita em numerosos ensaios. Na sua Antologia da Literatura Fantástica ele a transcreve por inteiro: “Sun Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Sun Tzu que havia sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta que estava sonhando que era Sun Tzu”. O tema do Duplo ganha nessa fábula (e em todas as narrativas que se assemelham a ela) uma reviravolta sempre eficaz quando se trata de contar histórias. Não se trata mais de dizer que Fulano, “A”, descobre a existência de Sicrano, “B”, que é seu sósia, ou seu reflexo, etc. É que a partir de certo ponto começamos a pensar que quem existe de fato é B, sendo A um involuntário impostor, uma sombra pensante.

Philip K. Dick escreveu um dos mais esquizofrênicos livros da FC em A Scanner Darkly, traduzido aqui como O Homem Duplo (e adaptado para o cinema por Richard Linklater sob o mesmo título – é aquele filme em forma de desenhos, com Keanu Reeves, ao estilo de A Waking Life, do mesmo diretor). Nele, um agente da polícia investiga uma casa onde vivem uns malucos que tomam drogas sem parar. Acontece que o policial e o maluco que é dono da casa são a mesma pessoa, e não sabem. Quando ele está dentro de casa, é o drogado. Quando sai, vai para a delegacia, veste seu uniforme, e volta para espionar a própria casa onde mora. Ele não sabe se é um maluco vigiado por um policial ou se é um policial que vigia um maluco. E na verdade é os dois.

No clássico O Médico e o Monstro, R. L. Stevenson conta a história do respeitável Dr. Jekyll, que fabrica em seu laboratório uma droga que o transforma (física e psicologicamente) em Mr. Hyde, um criminoso sádico e sem escrúpulos. Com o tempo, a personalidade de Hyde ganha tal força que começa a substituir o corpo e a mente de Jekyll sem o uso da droga; o doutor adormece como ele mesmo e acorda como Hyde. Hyde prevalece, e eclipsa o doutor Jekyll. Mas, como a polícia está atrás do criminoso, passa a ser este quem começa a tomar a droga, para se transformar em Jekyll e evitar ser descoberto.

O confronto com o Duplo tem esses dois momentos: a sensação de estar diante de um Outro que sou Eu Mesmo. Eu me vejo (de forma repelente, incômoda, ameaçadora) no Outro. Ele é igual a mim mas é um reflexo distorcido de mim, ele é o Estranho, o Estrangeiro, o Diferente, o Alheio, o Alienígena, apesar de ser “igual” a mim. E em seguida há outro momento de terror, que é quando eu percebo que estou olhando para mim mesmo com os olhos do Outro, eu me transferi para o Outro. O horror dessa situação foi explorado de maneira magistral por Julio Cortázar em contos como “Axolotl”, “A noite de rosto para cima” (no livro Final do jogo), em que o protagonista, por assim dizer, chega à conclusão de que sua vida era uma ilusão e que ele não passa de uma borboleta sonhando que era um filósofo.

2485) O fim do livro (20.2.2011)




Já comentei aqui (20 de janeiro) Não contem com o fim do livro, uma recolha de diálogos entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, os quais discorrem sobre o incêndio de bibliotecas, a destruição de livros por ditadores e censores, a obsolescência dos meios de registro, o mero esquecimento. 

Carrière observa que a Biblioteca Nacional da França, criada por volta de 1820, tem pelo menos dois milhões de livros que jamais foram consultados. Com o livro eletrônico, esse sintoma pode se agravar. 

Como vai ser possível preservar cada vez mais, porque não teremos o problema de espaço (a Biblioteca Nacional da França caberia num HD do tamanho da minha mesa), serão cada vez mais preservados os livros inúteis, os livros redundantes, os livros desinteressantes, os livros que ninguém quereria ler mesmo que soubesse de sua existência. Tiro isto por mim, que leio compulsivamente: 90% dos livros que existem não me interessam.

Mais ameaçador do que o livro eletrônico, contudo, é o neo-liberalismo editorial, ou capitalistalinismo. 

Estou agora enfiado nas páginas de O Negócio dos Livros – Como as grandes corporações decidem o que você lê (Casa da Palavra, 2006). O autor é André Schiffrin, ex-editor da Pantheon Books, que já foi uma das grandes (em qualidade) editoras dos EUA antes de ser fagocitada pelos conglomerados econômicos que estão, mais depressa do que qualquer engenhoca feita de pixels, promovendo a destruição do livro. 

Não do livro como artefato de folhas de papel impressas, mas do livro como meio de transmitir idéias.

A bibliodiversidade (a pluralidade de idéias, de abordagens, de assuntos, de leituras e de leitores) é a própria natureza da cultura. O contrário de “cultura” é “monocultura”. Essas grandes corporações estão pegando a diversidade cultural, passando o trator por cima e transformando o mercado editorial num imenso campo de soja ou de cana-de-açúcar. 

É a lógica da maximização dos lucros através da uniformização dos produtos. Vender uma única coisa, produzida de uma única maneira, é mais rentável do que vender 400 coisas produzidas de 400 maneiras diferentes, mesmo que cada uma dessas 400 dê um pequeno lucro. Para a lógica de hoje, pequeno lucro é prejuízo. Já vi um neo-capitalista se queixando numa entrevista: “Se eu tinha um lucro anual de 200% e agora meu lucro caiu para 100%, é óbvio que tive na realidade um prejuízo de 50%”.

Hoje, cinco grandes conglomerados controlam 80% das vendas de livros nos EUA (Time-Warner, Disney, Viacom/CBS, Bertelsmann e News Corporation). Nenhum veio do meio editorial. 

São grupos de telecomunicações que estão comprando todas as editoras de livros, fechando as séries e coleções que dão pouco lucro, e transformando o livro num apêndice da telecomunicação. 

A ameaça não é o fim do livro de papel: é o fim do texto literário e crítico. Isso, sim, amigos, é de fazer perder o sono. O que é pior, um e-book com Shakespeare ou as memórias de Nancy Reagan num livro de papel?





2484) O Ulisses brasileiro (19.2.2011)



Joshua Cohen apontou Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa como sendo a nossa obra mais próxima do Ulisses de Joyce. Diz ele: 

“A intrincada e hipnótica história de Riobaldo, um fazendeiro idoso vivendo no interior do Brasil. A evocação feita por Rosa dos ritmos da fala, de suas repetições, e dos variados registros verbais faz de The Devil To Pay in the Backlands (título de tradução norte-americana, feita por Harriet de Onís) um exemplo de ponta do modernismo latino-americano. É também um dos poucos épicos da Modernidade – um movimento nascido nas cidades – a abordar a periferia, o interior selvagem”. 

Fico feliz que um escritor dos EUA conheça Rosa e o coloque em companhias tão ilustres quanto as que ele comenta (mas meu bairrismo inato me sussurra que Rosa é melhor do que todos os outros juntos). 

Mas a avaliação de Cohen sugere uma dúvida. Até que ponto é modernista uma obra tendo por cenário o sertão? E a própria linguagem de Rosa, que muitos críticos consideram barroca, pode ser considerada “moderna”? Pode ter sido apenas o impacto da tremenda originalidade que nos fez chamar de novíssima uma linguagem que era mais antiga do que todos nós, apenas nunca tinha sido registrada por escrito em escala tão desmedida. 

O impacto de Rosa foi modernizador por contraste. Trazendo à tona uma linguagem artificial, um misto de arcaísmos e neologismos, Rosa expôs o provincianismo mental e a timidez linguística até da nossa literatura urbana, que se supunha tão cosmopolita. 

A complexidade filosófica e narrativa do seu sertão botava no bolso muitos dos nossos autores de romances para costureirinhas, que posavam de figurões das letras. A comparação de Cohen entre o livro de Joyce e as obras de outros autores evoca, reiteradamente, a complexidade do mundo urbano, o surgimento de tecnologias de transporte e comunicação (automóvel, avião, cinema, fotografia, rádio, etc.), a crise de pessoas perdidas numa rápida substituição de valores. 

Isto está ausente da superfície do Grande Sertão, mas está presente na criação da mentalidade que produziu esse romance e seu autor. Rosa foi modernista ao quebrar o paradigma da literatura rural (descritiva, etnográfica, bem comportada, “costumbrista”) e por extensão o da literatura urbana, que, supondo-se mais afinada com o espírito do tempo, acabou sendo deixada para trás por um romance sertanejo. 

Marshall Berman usou uma imagem de Marx para seu livro sobre Modernismo: Tudo que é sólido desmancha no ar. O Modernismo é a ditadura do efêmero, do descartável, do que é construído hoje para ser destruído amanhã, do que (no verso de Caetano) “ainda é construção e já é ruína”. 

O romance de Rosa seria modernista não em sua temática (embora estudiosos como Willi Bolle vejam em sua estrutura profunda um registro da modernização-na-marra, econômica e política, do Brasil). Rosa desmanchou no ar a nossa idéia de um Sertão parado no tempo e de um passado imutável.









2483) O Oscar (18.2.2011)




Uma crítica que se faz aos filmes de vanguarda é que são filmes que só interessam a quem faz cinema. 

Filmes onde existe pouca história, pouca narrativa, pouco trabalho de ator, e a ênfase é toda na linguagem, ou melhor, na meta-linguagem, no exibicionismo do diretor através de suas imagens, seus cortes, seus movimentos de câmara. Até suas indisciplinas narrativas acabam sendo saudadas como inovação e assimiladas pelos diretores mais jovens. 

Isso ocorre em todas as artes, é claro. Quanto mais inventiva a linguagem de um autor, mais os outros autores (ou pretendentes a autor, ou críticos de gosto refinado) se apaixonam por ela. 

Um romancista como Proust, um pintor como Picasso, um músico como Stravinsky, todos eles são gurmês cozinhando para gurmês. Em inglês existe até uma construção frequente – chama-se a Fulano “a poet’s poet”, ou “a filmmaker’s filmmaker”, para dizer que é um poeta feito à medida para ser apreciado por outros poetas, ou um cineasta para ser visto por outros cineastas.

Eu diria que o cinema industrial também é assim, não é só o cinema de vanguarda. Todo espetáculo, toda produção industrial, tudo que envolva grandes recursos, grandes equipes, grandes problemas técnicos e grandes responsabilidades, tem um fascínio próprio, que é o desafio de fazer bem feito. 

Isso não tem nada a ver com Arte; tem a ver com profissionalismo, com artesanato (vá lá esse termo tão polêmico), com desempenho técnico. Isso está num comercial de TV, num desfile de modas, num treino de Fórmula 1. 

Há uma tarefa complexa e delicada a ser executada, e um erro pode custar muito caro. O desafio é executá-la com perfeição. Fazer isso com pouco dinheiro é difícil, com muito dinheiro é difícil também.

Isto explica por que motivo o Oscar, esse boneco tão superestimado, fascina tanto as pessoas que o criaram e que garantem sua fama, ou seja, os membros da famosa Academia de Hollywood. 

O Oscar não tem nada, rigorosamente nada a ver com a Arte cinematográfica como eu a entendo. É um prêmio técnico, concedido e votado por técnicos, e que premia a competência técnica. É um prêmio corporativo no bom sentido, porque as pessoas que o votam sabem o quanto é difícil criar um efeito especial, interpretar um personagem, inventar um cenário, pesquisar um figurino, bolar uma história original. A Arte é importante; mas isto que estou descrevendo também é, por que não?

O Oscar é um prêmio que ignora o lado transcendental da Arte e premia os “artesãos competentes”, que trabalharam duro e fizeram um filme dar certo. 

Premia o envolvimento emocional das pessoas, suas noites em claro, seus dias de sangue, suor e lágrimas, suas ausências da família. Premia seus anos de estudo e treinamento, sua paciência inesgotável para trabalhar em equipe correndo contra o relógio. 

As longas listas de nomes nos agradecimentos explicam o que é o Oscar. Não é um prêmio para os artistas, é um prêmio para os profissionais, e é só neste aspecto que tem valor.





2482) “O Rei e o Baião” (17.2.2011)



Livros sobre a vida e obra de Luiz Gonzaga existem muitos; desde pesquisas acadêmicas até memórias na primeira pessoa, redigidas por ghost-writers. Me atrevo a dizer que nenhum desses livros até agora conseguiu ser tão bonito quanto O Rei e o Baião, editado por Bené Fonteles (Brasília: Fundação Athos Bulcão, 2010). Não que a substância, o texto do livro seja algo para se descartar, pelo contrário; mas a preciosa iconografia do livro é a primeira coisa que bate no olho da gente. É quase como fazer um passeio por um dos muitos Museus Luiz Gonzaga que existem no Brasil, com o do guerreiro José Nobre, em Campina Grande.

Começo pelas fotografias de Gustavo Moura retratando aspectos do Sertão e do Cariri: caatingas, várzeas, vaqueiros, meninos, tocadores de fole. Os paraibanos já conhecem o trabalho de Gustavo, mas neste livro, suas fotos, justapostas à história de Gonzagão, enriquecem o poder de evocação das paisagens descritas nos versos. O mesmo vale para as séries de belas xilogravuras de José Lourenço, João Pedro do Juazeiro, Francorli e Carmen, além de outros gravadores (que contribuem uma xilo cada um). Como já falei nesta coluna, o cordel é, como a música de Gonzaga, a junção ideal entre o oral e o escrito, o primitivo e o tecnológico. Folheto impresso é como disco prensado. É o modernismo abrindo uma brecha para a passagem do dilúvio do popular, e pense numa brecha que jamais se fecha de novo.

Os ensaios de análise e crítica dariam um excelente livro só de textos, e são assinados por Gilberto Gil, Bené Fonteles, Antonio Risério, Elba Braga Ramalho, Gilmar de Carvalho, Sulamita Vieira e Hermano Vianna. E Bené, o idealizador e realizador do livro, fecha o volume com uma farta e minuciosa (a maior que já vi) iconografia gonzagueana, posta em contexto e comentada: fotos de juventude, fotos da carreira, dezenas de capas de discos, anúncios e “reclames”.

Meus leitores sabem que sou um sujeito contraditório. Vivo defendendo, nesta coluna, o barateamento do livro, as edições populares, os livros de bolso, a pulp fiction, o cordel, e mais recentemente os livros eletrônicos e as publicações internéticas – todos os formatos gráficos que multiplicam o texto literário e o deixam acessível a quem só tem centavos no bolso. Por outro lado, encanto-me com facilidade pelo livro primor-gráfico, o livro obra-de-arte. Como conciliar isto? Não sei. É um dos paradoxos do Brasil, o fato de que nossa faixa de compradores de livros se mantém sempre proporcionalmente a mesma, mas o mercado de livros de luxo não para de crescer. O Rei e o Baião é um livro que deveria ser espalhado pelas bibliotecas do país. Além de, depois, receber edições eletrônicas, em PDF ou formato semelhante, que o tornem mais acessível, porque os ouvintes de Luiz Gonzaga merecem ver uma homenagem tão bonita. Como prévia para o centenário de Seu Luiz, no ano que vem, não poderia haver coisa melhor.

2481) "A labareda que lambeu tudo” (16.2.2011)





(Caetano Veloso e Geneton Moraes Neto, em plena Era Paleozóica)

Este documentário idealizado e escrito por Geneton Moraes Neto (co-dirigido com Jorge Mansur) foi exibido pelo Canal Brasil, e talvez vire filme. Geneton é um dos melhores entrevistadores da TV Globo, embora a maior parte do seu tempo seja dedicada à edição-em-chefe de programas variados. Mas é um ex-cineclubista, um ex-superoitista, e ele próprio se questiona na primeira parte: “Será que não desperdicei com jornalismo um tempo que poderia ter dedicado ao cinema?”. 

O filme (ou programa, como queiram chamá-lo) é uma tentativa de acertar essas contas, e o faz com um tiro certo, misturando política, Tropicalismo e cinema novo. Geneton entrevista Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner, sobre o tempo em que viveram no exílio; mas o cinema entra por vias transversas, porque Glauber Rocha é uma presença constante nas lembranças de todos.

A primeira parte tem também Paulo César Peréio fazendo uma espécie de “alter ego” do diretor, recitando um texto em que ele explica a necessidade do filme e seu modo de concepção. As entrevistas se concentram no período em que os quatro músicos viveram no exílio. 

A identificação de Geneton com o Tropicalismo (e seu relacionamento de longo tempo com alguns dos entrevistados) o leva a conseguir tirar um novo leite de uma pedra já tão ordenhada. É divertido ouvir Caetano contar histórias de Glauber: como ele gostava de andar nu dentro de casa a qualquer hora do dia, ou de como conseguiu que Jean-Luc Godard escrevesse uma carta elogiando Caetano (sem conhecê-lo) para tentar livrá-lo da prisão. 

Gil descreve com detalhe o processo de criação da música “Cálice”, e Macalé conta história impagáveis, como a de quando, sob efeito do LSD, foi ver o Museu de Madame Tussaud e se apaixonou pela Branca de Neve, tendo que ser retirado aos prantos pelos amigos.

É de Macalé a frase que dá subtítulo ao filme (cujo título principal é Canções do Exílio), e que serve como metáfora da ditadura militar que “passou o rodo” na cultura brasileira. Na verdade, ele se refere ao calor carioca, que eles sentiram no momento em que, de volta ao Rio, a porta do avião se abriu e o calor entrou, dando aquela sensação de “finalmente cheguei em casa”. 

Geneton se pergunta (com a voz de Peréio) durante o filme: “Por que não fazer um filme com as pessoas simplesmente falando? Por que tudo tem que ser tão cortado, tão curto? Por que tem que se partir do princípío de que as pessoas não estão interessadas em coisa nenhuma?”.

Ver gente falando sobre assuntos que nos interessam ainda é um dos grandes trunfos da TV (e do cinema; e da Internet com seu YouTube e tudo o mais). É curioso ver essa discussão numa época de Big Brother, um programa que enclausura pessoas numa casa e precisa inventar gincanas imbecilizadas ou festinhas debilóides para dar-lhes algum assunto sobre que conversar. Parece haver um consenso de que é sempre interessante ver pessoas conversando. A diferença é apenas de repertório.





2480) O Brasil Sub-20 (15.2.2011)



Assisti os cinco jogos da fase final (e alguns da classificatória) do campeonato sul-americano sub-20, em que a Seleção do técnico Ney Franco acabou campeã. Geralmente não dou muita atenção a essas categorias. Já vejo futebol em excesso, e se é para perder tempo prefiro perdê-lo com a Seleção principal. Mas essa nova Seleção tinha Neymar (um jogador polêmico), tinha pelo menos dois do Flamengo, e os jogos eram depois da meia-noite, um horário em que eu já podia desligar o computador e ligar a TV com a consciência do dever já cumprido.

O time do Brasil é bom. Ney Franco é um técnico que me faz ter fé no futuro, juntamente com Mano Menezes na Seleção principal. São bons treinadores, sem a truculência de Dunga (que tomava atitudes certas, como a de proibir TV dentro do ônibus da Seleção, mas da maneira errada); sabem montar uma equipe e sabem jogar para a frente. Os resultados estão aí. O Brasil jogou algumas partidas medíocres (a penúltima, 1x0 no Equador, foi um pesadelo de incompetência e gols perdidos), mas isso se devia à insegurança e à tensão dos jogadores, todos muito jovens e muito cobrados. Como os adversários também o eram, os defeitos se equilibravam, mas o jogo virava um horror.

Na única derrota do Brasil, contra a Argentina, tivemos um pênalti contra e um jogador expulso com dois minutos do jogo. Remamos contra a maré até empatarmos, e depois sofremos um gol de bobeira. Numa partida normal, teríamos ganho. Numa partida normal contra o Uruguai também ganharíamos, mas sem a goleada escandalosa de 6x0. Esse jogo mostrou o quanto o futebol pode se inclinar para um lado ou para o outro. O Brasil fez 2x0 no fim do 1o. tempo, e um uruguaio foi expulso. O jogo parecia ganho. Começa o 2o. tempo; pênalti contra o Brasil e um brasileiro expulso. Ficam 10 contra 10 e o Uruguai tinha a chance de fazer 2x1. O jogo iria pegar fogo. Vai o garoto e chuta o pênalti pra fora; dois minutos depois o Brasil faz 3x0. O jogo acabou aí, e o resto, a goleada, foi mera consequência.

Triste sorte do uruguaio que perdeu o pênalti: foi o mesmo que tinha feito o gol da vitória contra a Argentina, levando o país de volta às Olimípiadas depois de não-sei-quantos anos. No espaço de poucos dias, esse garoto com menos de 20 anos já provou o melhor e o pior que o futebol pode oferecer.

Só não sei como vai ser o caso de Neymar. Está marchando aceleradamente para se converter num naufrágio. Futebol ele tem, e muito; mas está naquele período crítico em que a marra é maior que o futebol. Joga-se ao chão ao menor contato, provoca os adversários e depois se queixa de estar sendo perseguido, já fala de si na terceira pessoa (“tudo é contra o Neymar!...”). Sou fã do seu talento, mas receio que desça pelo ralo, como já desceu o de muitos outros tão talentosos quanto ele. Mas depois virá outro. É impressionante a capacidade do Brasil de produzir, e de destruir, craques de futebol.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

2479) Itamardito (13.2.2011)



Itamar Assumpção recusava a pecha de Maldito. Um artista maldito é em geral um sujeito que incomoda pelo que diz, pelo que faz e pelo que é; mas ao mesmo tempo nos impede de ignorá-lo. É um elemento estranho, às vezes agressivo, às vezes provocador, que coloca em xeque não somente os valores estéticos de quem está à sua volta, mas também sua paciência e seus bons modos. O Maldito inquieta, e não pode ser deletado. É como um vírus que se recusa a ser expulso e fica por ali, perturbando, e despertando o receio de que possa, de um momento para outro, fazer o mundo acabar.

O SESC lançou ano passado a “Caixa Preta”, reunião da obra completa de Itamar, com todos os discos que lançou em vida, e trabalhos inéditos que ele estava preparando quando morreu em 2003, aos 53 anos. Ouvi muito Itamar na década de 80, quando a melhor coisa na música brasileira era a chamada Vanguarda Paulista: Itamar, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e outros. Eram artistas e grupos reunidos em torno do Teatro Lira Paulistana, de saudosa memória, que ficava em frente à Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. (E onde eu, Fuba e Tadeu Mathias realizamos show memoráveis há 30 anos, mas aí é outra história).

A Vanguarda Paulista foi o momento mais Frank Zappa da música brasileira. Algo desse espírito semi-erudito, semi-jazzístico, semi-dadaísta subsiste hoje na obra de Tom Zé e Jards Macalé (parceiros eventuais de Itamar). Um teste prático para saber o grau de novidade de uma música é colocar o disco como fundo musical para uma conversa entre amigos, numa sala, bebendo cerveja e batendo papo. Alguns tipos de música se prestam a servir como pano de fundo para nossas conversas, produzindo um som agradável e impregnando aquele momento de um tom emocional qualquer. Não tem nada a ver com qualidade. Pode ser um jazz, uma MPB tradicional, uma sinfonia orquestral, uma bossa nova; qualquer uma pode servir como sonoridade secundária, porque não atrapalha a nossa conversa.

Na maioria das canções de Itamar, esse encanto é impossível de manter. A música quebra o tempo todo, não tem uma continuidade rítmica que possa embalar nossos pensamentos e dispensar nossa atenção. A toda hora tem um breque! A toda hora parece que os músicos se desentenderam e resolveram dar uma parada para acertar as diferenças batendo boca. E é uma música atonal, que não segue melodias fáceis, uma música que “não é bonita” e parece estar desafinando aqui, acolá.

Não, não está, mas essa estranheza fez as platéias do começo da Bossa Nova, acostumadas ao bolero e ao samba-canção, acharem que João Gilberto estava desafinando quando cantava “Samba de uma Nota Só”. Não estava. As melodias e harmonias que a Bossa Nova propunha foram sendo entendidas e assimiladas, e se transformaram num novo padrão. Não incomodam mais, e servem de trilha sonora aos nossos saraus, ouvidas por todos, escutadas por ninguém, invisíveis como o padrão geométrico do tapete que pisamos.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

2478) Drummond: o poema ready-made (12.2.2011)



(Marcel Duchamp, foto de Julian Wasser)


O poema mais polêmico do livro de estréia de Carlos Drummond, Alguma Poesia, foi o famoso “No meio do caminho”, o qual produziu respostas tão numerosas e variadas na imprensa que o próprio Drummond, anos depois, se deu o trabalho de coletar todas elas num livro hoje raro (Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema, Editora do Autor, 1967) . É bem verdade que a repetição monocórdia das mesmas frases (“No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho...”) desconcerta e irrita os leitores de sonetos parnasianos; mas quem tiver boa vontade deve reconhecer que o poema descreve uma situação de perplexidade existencial e tenta reproduzi-la através dessas repetições. O leitor pode até dizer que aquilo “não tem poesia”, como muitos disseram; mas ele deve admitir que existe ali um mínimo de presença autoral, existe a intenção de dizer algo com os recursos da literatura.

Passemos agora a outro poema do mesmo livro, intitulado “Sinal de Apito”. Diz ele: “Um silvo breve: Atenção, siga / Dois silvos breves: Pare. / Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo: Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motoristas a postos. / (A esse sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente)”. E pronto. Tá aí o poema! Oitenta anos depois ainda não entendo como este pequeno fragmento dadaísta deixou impassíveis sujeitos como Gondin da Fonseca e Oscar Mendes, que espernearam bastante diante do poema da pedra.

O que há de poético em “Sinal de Apito”? Para mim, que sou drummondiano, nada, nada além de uma brincadeira (coisa que “No meio do caminho” não pretendia ser), uma brincadeira bem ao gosto dos dadaístas de 1916 em diante. Numa crônica sobre Godofredo Rangel (em Passeios na Ilha), Drummond fala desse texto como “...algo que eu publicara como poema, e era apenas a transcrição, em linhas irregulares, de um trecho de regulamento da Inspetoria de Veículos”. Ou seja: um “ready-made” à maneira de Marcel Duchamp, que expunha como obra sua uma roda de bicicleta ou um urinol. O Modernismo brasileiro sofreu essa contaminação das vanguardas européias, inclusive no que tinham de mais provocativo, brincalhão, desconcertante. Qualquer vanguarda mistura, de modo aleatório, pouco planejado, obras que se pretendem uma nova maneira de fazer e obras que não passam de pilhérias para irritar os que preferem fazer as coisas à moda antiga. Como se os poetas novos dissessem: “Está vendo o meu Sinal de Apito? Pois eu acho que existe mais poesia nele do que n’O Caçador de Esmeraldas”.

Drummond, por trás dos óculos sérios, tinha um temperamento de clown (ele se auto-denominava “Carlito” às vezes, identificando-se com Chaplin), gostava de pregar peças aos amigos. Isto não transparece muito em sua poesia, e quando surge fica eclipsado pelo peso da seriedade ou da emotividade do resto da obra. Mas ele tinha também seus momentos Marcel Duchamp.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

2477) “CyBorges – The Game” (11.2.2011)




Recebi há cinco dias a versão beta de CyBorges - The Game, o grande lançamento da Orbis Tertius para este ano de 2033. Evidentemente não vivenciei o game por inteiro; o que registro aqui são primeiras impressões. 

A imagem de Jorge Luís Borges mudou muito nas décadas mais recentes. Tido como intelectual, erudito, livresco, ininteligível, o escritor foi redescoberto pelas novas gerações como um gerador de infinitos universos interativos, um metalinguista por excelência, um apostador compulsivo na capacidade re-criativa do leitor. Ou seja: um designer de games, nascido antes do tempo. Um visionário que precedeu a tecnologia adequada aos seus talentos. 

Mas vamos ao jogo. O game contempla as diversas facetas de Borges. 

Borges o descendente de generais (a reconstituição da batalha de Junín tomou-me duas madrugadas inteiras; venci). 

Borges o sedutor (e que grande golpe criativo escolher o visual de suas musas a partir de atrizes de sucesso: Beatriz Viterbo com o visual andaluz de Placeres Montoya; Teodelina Villar com o perfil clássico da francesa Lou d’Hergemont; e Ulrica, surpreendentemente, com as feições da bergmaniana Bibi Andersson). 

Borges o lutador de faca (sugiro ao jogador que escolha a seção do jogo intitulada “Esquina Rosada” quando tiver muito tempo disponível e garantia de não ser interrompido). 

Borges o sabotador do espaçotempo: fui informado de que seções como “O Imortal” ou “Averróis Quest” criam loops escherianos dos quais é impossível emergir. 

A imprensa comentou a ausência do “Aleph”, mas todos sabem que os direitos deste conto foram adquiridos pela Dangerous Multivisions Inc., que continua a anunciar o game para o ano que vem. Paciência; há material literário mais que suficiente no setor “The Forking Paths”, em que nos é dado acesso a um total de 22 contos de Borges reconstituídos em computação gráfica e lidos em voz alta pela voz (digitalizada) de Borges – e os que temerem alguma redundância entre texto e imagem preparem-se para variados tipos de surpresa. 

Alguns críticos se queixaram da falta de uma “narrativa principal” para o game. Ora, tal narrativa é justamente a passagem gradual de um homem do mundo real (simbolizado pela época em que Borges não era cego) para o mundo virtual. (Esses críticos certamente não visitaram a seção “Ruínas Circulares”, concebida numa releitura cyberpunk). 

A fase realista nos dá caminhadas intermináveis (acompanhadas pela voz digitalizada de Estela Canto ou de Maria Ester Vázquez) pelas ruas noturnas de uma Buenos Aires mítica; a fase virtual nos propele a labirintos (o de “Abenjacan El-Bokhari” supera em horror o próprio Alone in the Dark). 

Nada, contudo, iguala a seção “Funes”, onde, após horas de clamores e batalhas, de milongas e de hexágonos, o player se queda diante do próprio rosto em webcam e um som que lhe sugere estar no fundo de um rio, embalado e anulado pela correnteza. 

Cotação: 5 estrelas.





quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

2476) O moído de Kafka (10.2.2011)



Podemos defender, sem susto, a tese de que foi Franz Kafka o autor europeu mais emblemático do século 20, aquele que fez uma obra mais afinada com o diapasão do século. (Tolstoi ou Balzac seriam candidatos possíveis ao posto equivalente para o século 19.) No momento, o mundo literário acompanha uma polêmica meio kafkeana, envolvendo o destino de uma enorme quantidade de manuscritos e papéis deixados por Kafka (cerca de “vinte metros de pastas”) que estão em Tel Aviv. A história é complicada. Antes de morrer, Kafka pediu a seu grande amigo Max Brod que queimasse seus papéis. Brod retorquiu que jamais faria isso, e não o fez. Além de publicar os principais livros do amigo (O Processo, O Castelo, América) ele fugiu para a Palestina em 1939, e levou consigo tudo o que podia, pouco antes dos nazistas fecharem a fronteira tcheca. Graças a isso, os papéis de Kafka não foram destruídos.

Mas é como se tivessem sido. Brod os preservou com fidelidade e avareza. Ao morrer, deixou-os em poder de sua secretária, Esther Hoffe, que também os guardou com mão de ferro. Esther morreu em 2007, aos 101 anos, deixando o espólio para suas filhas Eva e Ruth, ambas hoje na casa dos 70 anos. E é neste ponto que a história empanca, porque as duas não chegam a um acordo sobre o que fazer com os papéis de Kafka. (Embora o manuscrito original de O Processo já tenha sido vendido para a Alemanha por quase 2 milhões de dólares). Corre na justiça israelense um kafkeano processo envolvendo inúmeros interessados e incontáveis advogados. Os documentos são contraditórios, especialmente os de Max Brod, que também teria deixado uma outra carta doando o material de Kafka para instituições culturais de Israel.

Enquanto o imbróglio jurídico não se esclarece, em 2010 foi possível pelo menos fazer um primeiro inventário. Fala-se de cadernetas e mais cadernetas de anotações e diários, manuscritos de textos já publicados, numerosas cartas (de e para Kafka), além de manuscritos do próprio Max Brod, que também teve uma farta produção literária, ainda que menor importância. Fala-se também numa primeira edição do livro de Tristan Tzara Première Aventure Céleste de M. Antipyrine, um clássico do Dadaísmo, com dedicatória do autor para Kafka. (Este ruído que vocês ouvem é de algumas dezenas de milionários, impacientes, esfregando as mãos na porta da Sotheby’s.)

O material está sendo inventariado, e quem quiser saber mais leia este artigo de Elif Batuman (http://tinyurl.com/2cnhm9u), cheio de detalhes pitorescos, inclusive ao descrever a excentricidade das irmãs Hoffe – uma delas vive num apartamento em Tel Aviv com mais de cem gatos, que dormem sobre os manuscritos do autor de “Investigações de um Cachorro”. Batuman afirma que nos últimos 14 anos foi publicado um livro a respeito de Kafka a cada dez dias. O autor tcheco morreu em 1924, e é espantoso imaginar que uma parte considerável dos seus escritos ainda está inédita.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

2475) “Método Prático da Guerrilha” (9.2.2011)



A guerrilha latino-americana já teve um charme, para os jovens, que os jovens de hoje são incapazes de compreender. Em primeiro lugar, naquele tempo havia um consenso difuso de que terroristas e guerrilheiros (considerados a mesma coisa) eram pessoas “do Bem”. Eram sujeitos idealistas, capazes de dar a própria vida para combater as injustiças sociais. Como vivíamos numa ditadura, tínhamos (nós, adolescentes naquela época) a noção de que a única opção moralmente correta era ficar a favor dos inimigos da ditadura (e tínhamos razão). E havia o aspecto literário. A guerrilha era excitante, era perpassada de aventura, de romantismo. Era uma conjugação perigosa entre doutrinação marxista e aquela valentia meio suicida desses caras que fazem Camel Trophy ou Rally dos Sertões. E nós, pobres nerds cheios de óculos e de espinhas, tínhamos uma inveja permanente desses sujeitos que, além de assumirem a tarefa de mudar o mundo, não tinham medo de levar tiro.

A guerrilha venceu em Cuba, talvez porque o regime de Fulgêncio Batista já estivesse mesmo caindo de podre; talvez até uma passeata de seminaristas o tivesse derrubado. Mas a vitória de Fidel Castro e Che Guevara alastrou uma fogueira de pequenas guerrilhas mundo afora. Infelizmente, Guevara estava para a Revolução assim como Orson Welles estava para o cinema: estreou com seu maior triunfo, e daí em diante foi uma “pisa” depois da outra. O romance Método Prático da Guerrilha de Marcelo Ferroni (Companhia das Letras, 2010) faz uma reconstituição da última aventura do Che, na Bolívia, onde acabou assassinado.

Se a juventude de algum país começar a ter sonhos guerrilheiros, acho que basta ao Governo distribuir milhares de cópias deste livro para dissuadi-los. Não pode haver retrato mais trágico e patético do que a descrição do Exército Brancaleone chefiado pelo Che na selva boliviana. Dezenas de homens esquálidos, desnutridos, esfarrapados, brigando o tempo todo entre si, assaltando as choupanas de camponeses famintos, vítimas de diarréias permanentes, emboscando soldados tão inexperientes quanto eles próprios, travando combates caóticos, e sendo dizimados “pelas beiras”, pouco a pouco, a cada confronto. Li em 1971 o diário Che Guevara na Bolívia (uma edição brasileira provavelmente clandestina), e fiquei com uma idéia meio depressiva sobre o que significava ser guerrilheiro. O livro de Marcelo Ferroni, escrito quase todo num presente do indicativo seco, factual, distanciado, faz parecer juvenis e românticos textos como Bar Don Juan de Antonio Callado ou Reunião de Julio Cortázar.

É difícil separar o café do leite, saber o que é fato pesquisado (o autor refere-se indiretamente, sem maiores detalhes, a relatórios militares, biografias, memórias dos guerrilheiros) e o que é a inevitável invenção ficcional de personagens, peripécias, emoções, diálogos. É a história cruel de alguém que acorda de um sonho e descobre que está num pesadelo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

2474) “Tio Boonmee” (8.2.2011)



Este filme tailandês em cartaz no Rio tem como título Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas, e ganhou a Palma de Ouro em Cannes.. Se você acha o título difícil de memorizar, console-se pensando que o diretor se chama Apichatpong Weerasethakul. É um diretor “cult” do momento; não vi nenhum dos seus outros filmes, mas este é belamente narrado e fotografado, mesmo com uma relativa precariedade técnica. Apichatpong (que os críticos dos EUA, para simplificar, chamam de “Joe”) gosta de planos longos em que as coisas acontecem com seu próprio tempo, como se não soubessem que diante delas está uma sala escura cheia de poltronas onde pessoas impacientes esperam que aconteça alguma coisa. A cena inicial, ao amanhecer, mostra, numa baixada coberta de mato, um animal (uma vaca?) se desamarrando da árvore, fugindo, e sendo trazido de volta por um homem. Isto dura alguns minutos, com silêncio e cantar de grilos, e me fez sentir que aquela baixada era mais real do que a sala onde eu estava sentado. Cenas de filme podem nos dar duas sensações (ambas esteticamente legítimas): a de uma história que está sendo contada ou a de uma coisa que está acontecendo. No filme de “Joe” predomina a segunda. Ele sabe, para usar a expressão de Tarkovsky, “esculpir o tempo”.

Tio Boonmee fala da zona-de-sombra entre este mundo e o outro, e mostra os últimos dias de vida de um homem com um grave problema renal, que quer fazer as pazes com suas lembranças e sua família. Aparecem fantasmas e criaturas estranhas, gerando um clima meio David Lynch, pelo impacto do surgimento do fantástico, sem preparação dramatúrgica, numa narrativa que parecia estar se encaminhando de outra forma. Comparar um diretor novo com diretores velhos é um passatempo da crítica, talvez porque o cinema é como a culinária. Não é só o modo de preparar que conta, mas cada artista usa ingredientes que, mesmo sendo da Natureza, parecem seus. Quando os reencontramos na obra de outro é que percebemos que nada na arte pertence ao artista, tudo pertence à Memória Prima que nos faz fazer filmes e assisti-los.

Há uma cena calmamente bela em que uma princesa, junto a uma cachoeira, lamenta a juventude perdida e depois tem relações sexuais com um peixe. Contada assim parece uma bobagem, mas é um episódio (que pode corresponder a uma das “vidas passadas” do Tio Boonmee) que quebra o fluxo da história principal e a eleva a um estágio superior de significado. Outra sequência surpreendente é o sonho de Boonmee, de ir a um mundo do futuro em que os visitantes do passado são localizados, têm sua imagem projetada através de lanternas e com isto deixam de existir. Parece uma alegoria sobre a fotografia e a televisão (que aparecem reiteradamente no filme), além do próprio cinema. As pessoas morrem e deixam atrás de si imagens, fantasmas translúcidos; e a contemplação desses fantasmas é um dos passatempos mais importantes dos vivos, dos feitos de carne e osso.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

2473) Perdidos na Bienal (6.2.2011)




O estudo da Patologia Topológica vem enfrentando preconceitos dentro da comunidade científica internacional. Como toda ciência nova, ela lida mais com perguntas e incertezas do que com verdades chanceladas pelo uso e pela experimentação controlada. Daí ser considerada por uns uma pseudo-ciência e por outros um delírio paranóico. 

A Física contemporânea, por exemplo, estuda o que a literatura popular chama de fendas no espaço-tempo, fissuras no tecido no Universo. Sua existência em escala macro já foi comprovada – são os famosos “buracos de minhoca” nos quais uma partícula física entra, e sai, quase instantaneamente, noutro local, a milhares de quilômetros ou milhões de anos-luz. 

O que a Patologia Topológica estuda é a existência deste fenômeno na escala humana. Muitos desaparecimentos famosos, acidentes, fatos extraordinários, podem ser explicados pela ocorrência de fendas desse tipo. Passagens, portais, configurações tão extraordinárias que dentro do seu âmbito as leis que governam a matéria se comportam de forma diferente. 

Estuda-se, por exemplo, o caso da instalação pós-modernista “Klax”, do artista indiano Raman Sendjabi. Influenciado (segundo ele próprio) pelos parangolés do brasileiro Hélio Oiticica, Sendjabi criou um labirinto de placas de amianto e isopor, no qual os participantes eram convidados a entrar e experimentar, segundo ele, “sensações temporárias de perda da referencialidade espaçotemporal”. 

A obra foi exposta na Bienal da Lausanne em 2002 e causou escândalo pelo desaparecimento de seis pessoas, inclusive duas crianças, que entraram ali e não saíram; depois de horas de espera, e sob protestos do artista, a obra foi desmontada diante da polícia e dos curadores da exposição, mas sem sinal das pessoas. 

No ano seguinte, 2003, Sendjabi (processado pelas famílias dos desaparecidos) conseguiu uma liminar para remontar sua instalação na Bienal de Cracóvia. Qual não foi a surpresa de todos quando, no dia de abertura, emergiram da obra quatro dos desaparecidos, todos levemente desnutridos e anêmicos, mas em boas condições físicas. Foram incapazes de explicar e mesmo de entender o que se passara; com amnésia parcial, não faziam ideia de que tinham estado desaparecidos por cerca de um ano. 

Novo escândalo forçou a desmontagem da obra e novo processo movido contra Sendjabi. Em 2004, sob forte cobertura da imprensa, “Klax” foi remontada na Bienal de Osaka, e embora ninguém se atrevesse a penetrar em seu labirinto, logo emergiu dali a secretária suíça Michelle Lamproix, igualmente amnésica e desnorteada. Para ela, pouco mais de meia hora tinha transcorrido desde sua entrada no labirinto, dois anos antes. 

A última pessoa desaparecida era um taxista de Lausanne, de 22 anos, Jean-Marc Desmolieu. Na Bienal da São Paulo de 2010, quando “Klax” foi reexposta, ele não apareceu, mas jogou para fora do labirinto o manuscrito de um texto sobre arte pós-moderna, que está sendo decifrado pelos especialistas.







sábado, 5 de fevereiro de 2011

2472) Os polícias e os bandidos (5.2.2011)




O romance O Homem Duplo (“A Scanner Darkly”) de Philip K. Dick conta a história de Fred, um agente da polícia de Los Angeles, encarregado de vigiar um tal de Bob, dono de uma casa cheia de malucos que passam o dia tomando drogas alucinatórias. 

As drogas são tão pesadas que Bob não sabe que ele e Fred são a mesma pessoa. Toda vez que sai de casa, ele vai à polícia, veste uma roupa de camuflagem eletrônica (que projeta imagens falsas de seu rosto e de seu corpo) e volta àquele quarteirão, desta vez na pele do Agente Fred, para vigiar a própria casa onde mora – só que ele não sabe disso, porque agora é Fred, e pensa que Bob é outra pessoa.

O dilema esquizofrênico entre o Bem e o Mal, a Lei e o Crime, o Sistema e a Revolução, etc., é um subtema constante na literatura do nosso tempo, porque sabemos que não faz muita diferença pertencer a um ou a outra. 

Lembro de um conto de pacto-com-o-Diabo: um sujeito recebe de noite a visita de Lúcifer, que lhe oferece a vida eterna em troca de sua alma. O sujeito, que nunca tinha ligado a mínima para religião, se apavora, manda o Diabo pro inferno e corre até a igreja mais próxima para se aconselhar. 

O padre ouve a história dele e propõe batizá-lo e dar-lhe a comunhão. “Para que?”, pergunta ele. “Ora,” diz o padre, “porque, desse modo, quando você morrer sua alma vai para o Céu e viverá lá eternamente, junto de Deus”. O cara protesta: “Muito bonito! Então todos dois estão me propondo o mesmo negócio?!”

Sim. O Bem e o Mal, a Lei e o Crime, etc etc., são a mão direita e a mão esquerda do charlatão cósmico que nos propõe um só negócio: ser o nosso dono. 

Quem leu o 1984 de Orwell deve lembrar que o protagonista, Winston, é recrutado para agir numa célula subversiva coordenada por um tal de O’Brien. Quando ele se entrega totalmente a essa atividade libertária, fica sabendo que O’Brien era um agente do governo cuja função era atrair gente insatisfeita para falsas células subversivas, e prendê-los todos de uma vez só.

Não é muito diferente da situação básica de outro clássico do humor negro britânico, O Homem que era Quinta-Feira de G. K. Chesterton, em que o personagem é um policial disfarçado que se filia a uma organização subversiva, com a intenção de desmascarar e prender todos os participantes, e com o passar do tempo começa a perceber que todos os outros são policiais infiltrados, como ele. Nenhum é subversivo.

Chesterton publicou esse livro em 1908. Nessa mesma época, segundo Marshall Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar) havia na Rússia grupos terroristas que eram, sem o saber, controlados pelo Ministério do Interior. O chefe de um desses bandos, Evni Azev, acabou coordenando o assassinato do seu próprio empregador, o Ministro do Interior, Viacheslav von Plehve. 

Chesterton, Dick e Orwell não eram profetas nem visionários. Eram apenas sujeitos que conheciam a tendência do Charlatão Cósmico para o humor negro.






sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

2471) O mistério Krapotkin (4.2.2011)



“A semelhança eufônica com o nome do famoso anarquista poderia explicar, em parte, o relativo ostracismo a que o escritor russo-brasileiro Krapotkin foi estranhamente relegado", comentou o crítico J. Silveira sobre o fato de que até o Google localiza com dificuldade as (poucas) páginas dedicadas ao excêntrico romancista. Criador de uma Oulipo “avant la lettre”, e várias vezes comparado a Borges (cuja obra aparentava desconhecer ou desdenhar), ele não tem relação com Piotr Kropotkin (1842-1921), reverenciado por anarquistas e libertários do mundo inteiro, principalmente entre os jovens (ainda hoje, em manifestações contra o G-8, em Davos ou em qualquer parte, veem-se jovens “punk” com cabelo moicano azul empunhando posters do barbudo e atarracado pensador russo). Já o escritor, Nikolai Krapotkin (1916-1995), teve a possível má sorte de emigrar em 1945 para o Brasil, onde produziu sua obra e onde se enterrou para sempre no âmbar translúcido da nossa língua, que se tornou para ele, como para tantos outros, “esplendor e sepultura”.

“Há um poço subterrâneo, de trajeto caligráfico, ligando Rússia e Brasil”, escreveu Krapotkin num artigo publicado em 1961 na Revista do Livro, “uma corrente de energia psíquica entre territórios tão apartados e distintos; ela produz a mesma crispação cósmica arrebatando o intelecto, a mesma fascinação com a clareza da álgebra e com as sombras do incognoscível”. Krapotkin publicou aqui Ouroboros (1965), Mardi Gras (1972), O Livro dos Jogos (1978) e o póstumo (inacabado) O Livro das Superstições (2011). Seu roteiro de ficção científica O Livro Invisível (não filmado, publicado em 1990) só pode ser chamado de FC, segundo um crítico, “no sentido em que Alice in Wonderland pode ser chamado de literatura infantil”.

Krapotkin era um escritor fora-de-esquadro (a seu respeito, ver: http://tinyurl.com/4nf5f28). Com notória facilidade para idiomas (escrevia nas principais línguas européias), utilizava de modo surpreendente o português, desconcertando e divertindo o leitor. Contudo, sua principal força não é no nível estilístico, mas no estrutural. Assim como Italo Calvino, Harry Stephen Keeler ou Milorad Pavich, sua originalidade estava principalmente na estrutura interna da narrativa e no modo como organizava a sucessão de peripécias. Seu uso de cartões perfurados, como os dos antigos programas de computador, foi visto por alguns críticos como uma influência de Nabokov; mas essa semelhança superficial foi desmentida por Antonio Biely num artigo da saudosa revista Nicolau, de Curitiba.

Um grupo de abnegados está exumando a obra de Krapotkin, grande parte da qual (como sua volumosa correspondência literária, meticulosamente preservada em cópias carbono) continua inédita. Especula-se também sobre sua utilização de pseudônimos, pois mais de uma vez queixou-se de que seu verdadeiro nome era visto com desconfiança pelo leitor brasileiro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

2470) Jekyll Estripador (3.2.2011)



(gravura de Barry Moser)

O trocadilho infame deste título poderá ser perdoado por alguns leitores, se eu os convencer da importância do intercâmbio entre literatura e vida, ou, no presente caso, entre literatura de crime e crime de verdade. O Dr. Jekyll é o personagem do livro de R. L. Stevenson conhecido no Brasil como O Médico e o Monstro. É um médico respeitado que, ao tomar uma poção que ele mesmo inventou, transforma-se em Mr. Hyde, um sujeito sádico, violento, que age no submundo e pratica atrocidades. O livro de Stevenson foi publicado em janeiro de 1886 e em junho já vendera 40 mil cópias em Londres. Teve enorme impacto junto ao público e à imprensa, e diz-se que a própria Rainha Vitória o leu.

Dois anos depois os palcos de Londres já exibiam as primeiras adaptações teatrais da obra de Stevenson, quando, entre agosto e novembro de 1888, aconteceram os cinco assassinatos atribuídos a “Jack o Estripador”. Até hoje não se sabe quem foi ele. Assassinou e desfigurou cinco prostitutas, demonstrando razoável conhecimento de anatomia. Entre os inúmeros indivíduos que foram suspeitos dos crimes estavam vários médicos famosos, inclusive Sir William Gull, médico da Rainha. De um momento para outro, portanto, um médico londrino viveu em carne e osso a transformação de Dr. Jekyll em Mr. Hyde, praticou crimes ainda mais sádicos do que os de Hyde, e conseguiu escapar. Ficcionalmente, escapou até de Sherlock Holmes, que nesse ano de 1888 o ignorou, pois estava às voltas com os casos do “Intérprete Grego” e do Signo dos Quatro.

Historiadores perguntam se o sucesso da noveleta de Stevenson teria incentivado algum médico esquizóide a liberar sua porção criminosa. A verdade é que a criminalidade no submundo londrino desse tempo já era muito grande. Os crimes de Jack se sobressaíram apenas por causa da meticulosa violência, da sua serialidade, e da incapacidade da polícia em descobrir a identidade do assassino. Hoje, serial killers são quase um lugar comum. Na época, era algo em que ninguém tinha pensado, e essa ameaça pendente (“ele está solto, ele vai atacar de novo, ele vai fazer aquilo com qualquer pessoa”) alvoroçou a opinião pública.

A polícia de Londres recolheu na época 128 cartas (remetidas para ela própria, para a imprensa ou para outros destinatários) de pessoas que diziam ser Jack. Fala-se que cerca de 40 delas poderiam ser do criminoso. A grande quantidade de cartas com falsas ameaças e falsas confissões demonstra o impacto dos crimes junto à opinião pública. O crime, principalmente o crime brutal, cruel, psicótico, é uma ruptura do Ego da sociedade, por assim dizer. É aquele momento em que as barreiras de controle se rompem e o animal bruto emerge. A literatura de crime é uma forma de liberar essa pressão e de chamar a atenção para a existência dela, sem que o crime ocorra. Se Mr. Hyde foi um pesadelo de Stevenson que virou livro, Jack the Ripper foi um pesadelo de Londres, e virou crime.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

2469) Apanhados nas redes sociais (2.2.2011)



Uma piada na Internet mostra duas fotos. Na primeira, Julian Assange, o sujeito do WikiLeaks, diz: “Eu forneço informações privadas das corporações para as pessoas, de graça. E sou um vilão”. Na outra, Mark Zuckerberg, criador do Facebook, diz: “Eu forneço informações privadas das pessoas às corporações, por dinheiro. E sou O Homem do Ano”. Há exagero, como em toda piada, mas nos faz pensar um pouco. Zuckerberg diz que não criou o Facebook (como sugerem livros e filmes) para ficar famoso e conseguir ganhar gatinhas. Diz ele que queria “descobrir uma maneira de aproximar pessoas” e que estava obcecado em “realizar algo”. Este último motivo me parece plausível. Nerds como Zuckerberg gostam de resolver problemas técnicos e intelectuais (problemas que eles próprios criam do nada), e não pensam muito em ficar ricos, comprar ternos Armani, andar de BMW, etc. O filme A Rede Social faz um contraste interessante entre ele e Sean Parker (Justin Timberlake), o criador do Napster, que é uma curiosa mistura de nerd e yuppie, preocupado com roupas, ostentação, etc. Já Bill Gates pertence a um terceiro tipo. Não há dois nerds iguais, a não ser os medíocres.

Um nerd disse certa vez que gostava mais de computadores do que de garotas porque os computadores davam respostas mais rápidas e que faziam sentido. Quem é taquipsíquico (gente que pensa mais depressa do que o normal), dificilmente vai encontrar num ser humano normal a mesma velocidade de resposta. Por outro lado, nerds são lentos para se adaptar a ambientes estranhos. Sua dificuldade de conviver com outras pessoas (e de arranjar namoradas) não é bem por causa das pessoas em si, é pela obrigação de tomar banho, vestir uma roupa diferente da habitual, sair de casa, chegar num local cheio de gente desconhecida, submeter-se a rituais meio ridículos, ser forçado a conversar (além da pessoa que lhe interessa) com gente a que não dá a mínima, ouvir uma música que não lhe agrada... Quem é assim é nerd? Então eu sou nerd.

As redes sociais (Facebook, Orkut, etc.) oferecem para esses sujeitos (que pouco estão ligando para aparência pessoal, roupas, etc.) a oportunidade de conversar com gente interessante (= gente que se interessa pelos mesmos assuntos que eles, seja Star Wars, xadrez, folk rock, magia céltica, música barroca, o escambau), e poder conversar em seu próprio quarto, de calção, comendo biscoitos, sem gastar o dinheiro da mesada. E com a opção de, com um só clique, desligar aquilo tudo e ir para a sala, ler um livro, escutar um som, ou apagar a luz e adormecer do jeito que está. Esses caras não são nocivos, não são violentos, não são destrutivos. São apenas diferentes. As redes sociais permitem, aos caras que gostam de ir direto ao assunto, ir somente aos assuntos que lhes interessam, sem precisar fazer um teatrinho social para agradar a ninguém. Se isso não é um progresso nas relações humanas, favor parar o planeta que eu quero descer.