Acabei de ler a última página do romance de Umberto Eco A Misteriosa Chama da Rainha Loana (Record, 2005) e o que mais lamento é minha total incapacidade de ler sequer uma frase em italiano, porque este é um livro sobre memória cultural de um italiano que viveu a infância e a adolescência sob o fascismo.
Um texto saturado daquilo que o pessoal do Pasquim chamava “a horta da Luzia”: uma floresta de referências culturais obscuras, a chamada cultura-de-almanaque, o interminável jogo do “você sabia?”, e toda a “trívia” resultante de nossa maciça absorção do que nos vem do rádio, do cinema, das revistas, etc.
Yambo Bodoni é um comerciante de livros raros que sofre um AVC e fica amnésico. Ele mantém a memória geral: sabe andar, falar, sabe que está na Itália, etc. Mas perdeu todas as suas memórias pessoais: não reconhece a esposa e os filhos, não sabe quem é. (Casos assim são mais freqüentes do que se imagina.)
Começa então um trabalho lento de recuperação da própria biografia, e Yambo recorre à memória cultural de sua infância. Viajando para a casa de sua família no interior, ele começa a remexer no sótão e nos armários, e tudo que encontra lhe restitui um pedaço de si mesmo. Gibis, discos 78, jornais, revistas, panfletos fascistas, brinquedos, letras de músicas, coleções de selos...
O charme do livro é que ele é todo ilustrado com fac-símiles de tudo que traz Yambo um reconhecimento nostálgico. O livro de Eco é um caso radical e especial de “anagnórise”, a “descoberta, ou reconhecimento” que ocorria nas tragédias gregas, quando um personagem tinha a revelação sobre a verdadeira identidade de alguém.
Esse recurso virou clichê no romance folhetim: é o rapaz pobre que se descobre herdeiro do trono, são os jovens enamorados que descobrem terem sido amiguinhos de infâncias, é a mãe que descobre no rapaz simpático da vizinhança o filho perdido há muitos anos.
No livro de Eco, é um indivíduo tentando descobrir a si mesmo, porque os outros (a esposa, os amigos) só lhe revelam o que sabem ou acham a seu respeito. Mas ele mesmo, em seu interior, em seus segredos íntimos, continua um desconhecido para si próprio.
O romance pode ser cansativo pelas incessantes enumerações do personagem, recordando leituras, canções de sucesso, fatos políticos, mas para quem se interessa pelo lixo cultural (no bom sentido) que abarrota afetivamente nossa memória não tem como não gostar, mesmo que grande parte das referências culturais de Eco passem em branco para um leitor brasileiro de outra geração.
O impressionante é a quantidade de memórias semelhantes, principalmente leituras; no caso das canções de rádio, “não pegou nem uma letra”, como se diz por aí.
Eco escreve brilhantemente, como sempre; mesmo com o excesso de citações sua prosa é agradavelmente barroca, e as últimas cinqüenta páginas são uma “viagem” digna de Fellini e de David Lynch.
Um comentário:
Meu mergulho maior na "Itláia"profunda é via Fellini mesmo... Sou um semi-analfabeto cultural diante da sua erudição agalopada, caro amigo. Nem me arriscarei... Depois de O Nome da Rosa (um primo ex-padre me traduziu as citações latinas) não consegui "penetrar" muito mais na literatura do Umbertão... Li O pendulo de Foucault e Baudolino... Mas não sei porque, me lembrei daquela cena de Amarcord em que o avô doidão que belisca a bunda da criada e peida na mesa no meio da discussão sai no meio da neblina e acha que morreu... Suas conjeturas durante a cena rápida me encantam. E eu as entendo quase que celularmente, mesmo não sendo um italiano.
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