terça-feira, 5 de janeiro de 2010

1481) Flash Gordon (12.12.2007)




Numa entrevista à TV, o escritor português Antonio Lobo Antunes disse que todo escritor, ao ser indagado sobre as influências que o levaram a escrever, costuma citar Joyce, Proust, etc. Para ele, isso é conversa fiada de intelectual. 

“Quem nos leva a escrever é Flash Gordon”, disse. “Muito antes de conhecermos os grandes autores, a vontade de contar histórias já nos foi despertada por aqueles autores ditos menores, mas que apaixonam nossa imaginação: Emilio Salgari, Julio Verne...”

Yambo, o protagonista da A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, é um homem com amnésia que reconstitui a própria infância através dos livros e gibis que leu. Yambo relaciona a imagem de Flash Gordon, que ele lia no semanário L’Avventuroso, aos heróis arianos da época (1934) e à própria imagem de Mussolini, e diz à página 237: 

“Tive em Flash Gordon a primeira imagem de um herói de uma guerra de libertação combatida em um Alhures Absoluto, fazendo explodirem asteróides fortificados em galáxias distantes”. 

Ele percebe também os anacronismos dos quadrinhos de Alex Raymond, em que os personagens “eram incongruentemente dotados tanto de armas brancas ou flechas quanto de prodigiosos fuzis de raio fulminante”.

Ariano Suassuna recorda ter visto na infância Flash Gordon no Planeta Mongo, e diz: “Quando vi a chegada do homem à Lua pela televisão, fiquei decepcionado. Flash Gordon era mil vezes mais interessante”. 

Lobo Antunes nasceu em 1942, Eco em 1932 e Ariano em 1927. Nestes três escritores tão diferentes entre si vemos o resultado de uma das primeiras investidas maciças da cultura pop norte-americana (cinema e quadrinhos) durante as décadas de 1930-40.

Hoje em dia vivemos saturados de “Space Opera”, a tal ponto que mesmo os aficionados (como eu) consideram isto uma banalização insuportável da beleza da FC. 

Flash Gordon surgiu numa época em que o “realismo aparente” era soberano. Naquela paisagem naturalista e banal suas aventuras envolviam reinos futuristas, monstros pré-históricos, foguetes espaciais, lutas de gladiadores, pistolas desintegradoras. 

Eram, e ainda são, um escoadouro indisciplinado e descontraído para as imagens do inconsciente, sem a mínima preocupação com a lógica ou a verossimilhança. A imagem brotando pelo seu valor como imagem; a peripécia surgindo pelo seu valor como peripécia.

Flash Gordon foi o Star Wars de seu tempo, ou melhor, uma síntese surrealista entre o futurismo de Star Wars e o medievalismo de O Senhor dos Anéis. Nada tem de científico. Seus enredos são absurdos, seus personagens são de papelão. 

No cinema, os efeitos especiais provocam risos no espectador de hoje; nos quadrinhos, o belo desenho de Alex Raymond continua imbatível. Mas acima de tudo ele comprova o poder da imaginação pura, despida de pretextos, independente da razão e da lógica. 

Flash Gordon é o nosso inconsciente coletivo posto a nu e revelado às crianças antes que elas sejam vacinadas contra a imaginação.






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