Marcel Duchamp passou para a História da Arte como um brincalhão, um irreverente, que se divertia em interferir nas obras... Não, espera aí, está tudo errado. A História da Arte fez justiça a Duchamp, sim, inclusive ao questionar a influência desproporcional que algumas atitudes suas tiveram nos descaminhos de uma certa Arte Conceitual de hoje, para quem “Arte é qualquer coisa que a gente diga que é Arte”. A visão simplista da obra de Duchamp não se deve aos historiadores de Arte, mas a nós que fazemos jornalismo cultural, e que pela própria natureza do meio que utilizamos temos que ser rápidos, superficiais, incompletos. Paciência. Eu bem gostaria de poder escrever um livro de duzentas páginas sobre cada um dos assuntos que abordo aqui nesta coluna, mas não tenho tempo.
Há um aspecto importante na personalidade de Duchamp: ele era um grande trocadilhista. Os surrealistas dos anos 1920, que eram fervorosos leitores de Freud, erigiram o trocadilho como uma das formas de revelação do Inconsciente, e como um dos processos capazes de produzir fagulhas poéticas instantâneas pelo choque entre duas idéias dissímiles. Para isto contribuiu sem dúvida a obra clássica de Freud “O Trocadilho e Suas Relações com o Inconsciente”. Uso o termo “trocadilho” que me parece mais exato, embora algumas traduções do livro usem o termo “chiste”, e em inglês seja preferido “joke” (piada) em vez do “pun” (trocadilho). O trocadilho é a interferência de duas das séries de sinais que formam a linguagem: o Som e o Sentido. (Há outras séries: o sinal gráfico, o comentário facial ou gestual, etc.) Quando dizemos de uma determinada pessoa que ela “nem Freud nem sai de cima”, estamos multiplicando as possibilidades de leitura e interpretação da frase.
Duchamp usou trocadilhos em muitos títulos de suas obras, e podemos dizer que vários trabalhos seus são trocadilhos materiais em vez de verbais. Seu famoso quadro da Mona Lisa com bigodes tem como título “L. H. O. O. Q.”. Pronunciando essas letras em voz alta em francês soa como “Elle a chaud au cul”, que não me arrisco a traduzir aqui, mas é algo equivalente a “Taco cru pegando fogo”. Uma de suas obras mais curiosas intitula-se “Traveler’s Folding Item” (Objeto Dobrável de Viajante, 1916). Trata-se da capa plástica de uma máquina de escrever, com o nome da marca, “Underwood” gravado na parte da frente. A capa é daquele tipo de plástico um tanto rígido, que tanto pode ser dobrada quanto pode ficar de pé sozinha, sem a máquina por baixo. Colocada assim, ela se assemelha a uma saia, deixando clara a intenção do trocadilho: “Underwood” significa “Embaixo de Wood”, e é uma alusão a Beatrice Wood, namorada de Duchamp na época. Um objeto e uma palavra dão a idéia de que embaixo da saia de Beatrice existe algo que serve para escrever poemas. (As possibilidade de interpretação, como sempre, são infinitas)
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