A blasfêmia é um ato de libertação. Sofremos na infância uma lavagem cerebral (toda educação tem algo de lavagem cerebral) proibindo-nos sequer de pensar certas coisas. A religião católica ameaça com o fogo do Inferno e com tormentos indizíveis certas ofensas, mesmo mentais, à Divindade. Quando adolescente, eu passava noites em claro pensando coisas sacrílegas e pornográficas, mas não via trezentos raios de fogo trovejando do céu, reduzindo-me a algo menor que uma mosca torrada. Quando conheci o cinema de Luís Buñuel, um especialista em sacrilégios, entendi-o profundamente. Não, nunca tive raiva da igreja. Apenas queria ter certeza de que ninguém me eletrocutaria para sempre só porque visualizei a imagem de... Deixa pra lá, não quero escandalizar os leitores.
Em Memórias, Sonhos e Reflexões C. G. Jung narra um episódio de infância em que o esforço para aceitar a visualização de uma cena sacrílega (e, vista em retrospecto, bastante bobinha) produziu nele alguns dias de incessante terror que culminaram (quando permitiu por fim que a imagem se formasse em sua mente) num estado eufórico e quase transcendental de libertação íntima. Comento este episódio em meu livro O Anjo Exterminador (Ed. Rocco, 2002), porque ele tem relevância para discutir a tendência blasfema dos surrealistas parisienses em geral e de Buñuel em particular. A blasfêmia é um ato de afirmação da liberdade individual: “Eu penso no que eu quiser, e assumo a responsabilidade”.
Não é o caso de episódios recentes como a publicação num jornal dinamarquês de cartuns ofensivos ao Profeta Maomé. O que os dinamarqueses fizeram não é uma blasfêmia, porque para eles, provavelmente, Maomé é uma entidade tão exótica e distante quando o Padrinho Ciço ou Iemanjá. Não acho que um humorista dinamarquês (ou de qualquer país ocidental) tenha problemas íntimos em fazer gozações com o respeitável Profeta do Islã.
Este é um ingrediente ainda mais explosivo na revolta dos muçulmanos. Eles não apenas vêem seu ídolo ofendido, como percebem que os ofensores estão se lixando para o ídolo. Na verdade, nem sequer quiseram ofendê-lo: querem apenas ridicularizá-lo, porque não lhe dão nenhum importância. É essa atitude arrogante e desdenhosa do Ocidente para com seus valores sagrados que enfurece ainda mais os islamitas.
Um dos polêmicos cartuns, reproduzido na imprensa, mostra Maomé chegando todo enfarruscado no Paraíso, onde é recebido por Buda, Cristo e Jeová, que lhe dizem: “Liga não, eles fazem isso com a gente o tempo todo”. Ao contrário dos países do Oriente Médio, onde Igreja e Estado geralmente se misturam, as sociedades ocidentais têm essa atitude bem republicana de “colocar Deus no seu devido lugar”. O que os cartunistas dinamarqueses fazem não é heresia nem blasfêmia; isto só acontece quando agredimos algo em quem acreditávamos. E, não sendo blasfêmia, é mera pose, mero escracho, não envolve nenhum tipo de crescimento ou libertação espiritual.
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