O Cine Odeon (Rio) abriu uma retrospectiva de Louis Malle e fui correndo rever este filme de 1960, baseado no romance célebre de Raymond Queneau. David Thomson o considera “um filme esmagadoramente sem graça”, mas este é o equívoco mais freqüente de quem vê um filme ser anunciado como “comédia”; afinal, no vocabulário dos distribuidores de cinema ainda não existe o rótulo de, digamos, “vaudeville absurdista”. Zazie só é comédia na medida em que recorre ao repertório essencial das comédias: confusões de identidade, ação corporal, perseguições incessantes, quiproqüós, mal-entendidos, brigas ferozes que não deixam ferimentos. Existe nele algo dos filmes de Buster Keaton e Jerry Lewis, dois jesus-pequeninos dos diretores da “nouvelle vague”, mas seria demais esperar que um destes diretores tivesse a intenção de provocar risadas.
As correrias e confusões de Zazie não induzem ao riso. São um recurso que visa ao desnorteamento espacial e temporal do espectador, sabotando o piloto automático que ele costuma ligar nos filmes convencionais, e alertando-o de que um susto e uma surpresa estão sempre à sua espera na tomada seguinte. Zazie é uma versão infantil (no bom sentido do termo) de filmes como Uma mulher é uma mulher de Godard. É o mundo dos amores e da boêmia, só que visto através dos olhos de uma garotinha do interior que entra em contato com duas estranhas espécies: os Parisienses e os Adultos. Isto dá ao filme, aliás, um tom permanente de indefinição ou inversão sexual: uma menina cabeçuda e desbocada, que fala palavrão como um garoto (“Napoléon mon cul!”), um homem casado que dança de drag-queen numa boate, mulheres atiradas, homens tímidos.
Há um pouco de Jacques Tati numa cena em que o cenário modernoso e de péssimo gosto de um bar é botado abaixo por uma briga generalizada, assim como numa perseguição amalucada ao longo de um engarrafamento parisiense. Mas mais do que o humor de Tati o que temos aqui é o humor de Queneau, autor do livro original. Um humor menos voltado para a gargalhada do que para o sorriso silencioso do leitor que, diante de uma cena sem pé nem cabeça, logo percebe que ela ocorre assim por se basear num trocadilho, ou numa confusão verbal, ou numa paródia ou pastiche, ou no fato de personagens se comportarem como se estivessem em histórias de gêneros diferentes. Em muitos episódios cômicos desta natureza nos sentimos como alguém que toma parte numa festa num país estrangeiro: ficamos sem entender a maior parte do que foi dito ou feito, mas não ligamos, porque a todo instante acontece algo inesperado e divertido.
Zazie é um misto entre as comédias politizadas de Godard e as diversões hilariantes e sem-culpa de Richard Lester. Seu objetivo é menos o riso do que o desmantelamento constante de protocolos narrativos, da sintaxe esperada pelo leitor/espectador, e neste aspecto consegue reproduzir em imagem e som a desconcertante, erudita e amalucada prosa de Queneau.
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