segunda-feira, 17 de novembro de 2008

0637) As horas vagas (3.4.2005)




(gravura de Hokusai)

Tenho olho para perceber padrões recorrentes, eventos que se repetem de forma regular. Fiquei sabendo que o ator John Travolta gosta de pilotar aviões, e é dono de vários – estou falando de Boeings, não de jatinhos. E já sabia que o ex-técnico da Seleção, Carlos Alberto Parreira, pinta paisagens marinhas a óleo, as quais são até boas, considerando que as possibilidades de inovação no gênero andam por uma peínha de nada. Arthur C. Clarke é conhecido como escritor de ficção científica, mas a maior parte de sua vida foi dedicada ao mergulho submarino, e por isto mesmo foi morar no Sri Lanka, onde a água é mais confortável do que a da Inglaterra.

Einstein adorava tocar violino, e o fazia pessimamente, mas quem era doido de dizer que o maior gênio da humanidade não sabia fazer isso ou aquilo? Muito mais sorte têm músicos como Paulinho da Viola e Geraldo Azevedo, que são extremamente jeitosos com o serrote e o formão, e fazem trabalhos de marcenaria elogiado por todos. Nem todas as ocupações paralelas são tão louváveis como estas: descobrimos há pouco que o publicitário Duda Mendonça se dedica à briga-de-galos, um esporte absurdo e brutal cuja idéia só pode ter ocorrido a uma alma raposeira. Cadeia nessa galera!

Muitos indivíduos têm uma face pública, profissional, que os define aos olhos da sociedade, e muitas vezes essa atividade é a que eles escolheram para definir sua missão na Terra. É o que eles vieram fazer aqui. Mas as pressões profissionais são tão grandes que eles começam a inventar uma outra atividade, uma missão paralela desconhecida do público, e por isto mesmo mais pacífica, sombreada, amadorística, com aquele gosto relaxante de arte-pela-arte.

O que fazemos nas horas vagas nos define, tanto quanto o que fazemos nas horas de trabalho. Estas horas são “vagas” não apenas porque são “vazias”, mas porque são “imprecisas, indefinidas”, ninguém nos ordena coisa alguma, ninguém nos pressiona a fazer isto e não-fazer aquilo, e muitas vezes é o mundo que um sujeito cria nas horas vagas que acaba resgatando-o, depois que o que fez em sua profissão se dilui em irrelevância. O chefe-de-gabinete do Ministro Capanema costumava rabiscar nas horas vagas poemas como “A máquina do mundo” ou “A flor e a náusea”. O professor de Geografia e Corografia no Colégio Pedro II dedicava suas horas vagas a produzir poemas como “Monólogo de uma Sombra” ou “Versos Íntimos”. E nem todo mundo sabe que o humorista Jaguar dedicou apenas as horas vagas ao cartum, ao humor e à boemia, visto que seu “tempo oficial” sempre foi dedicado aos fluorescentes cenários do Banco do Brasil.

As horas vagas são muitas vezes as nossas horas mais importantes, e permitam-me um último trocadilho: são vagas porque são ondas, retornam como o mar e nos reconfortam. Elas nos convencem de que precisamos dessas oscilações rítmicas entre o que o Mundo nos exige que façamos e aquilo que nós mesmos resolvemos fazer e não tem Mundo que empate.


Um comentário:

tibor disse...

Sou publicitário e nas horas vagas escrevo. Bem queria que fosse o contrário...Oo