sábado, 15 de março de 2008

0246) O romance da mentira (3.1.2004)




(na foto: Hercule Poirot)

Boto minha mão no fogo como uma percentagem impressionante desses romances policiais clássicos, tipo Raymond Chandler ou Agatha Christie, tem como pontapé inicial uma mentira que um personagem diz para outro, e que desencadeia toda a trama. 

No caso dos livros sobre detetives particulares, por exemplo, é quase sempre uma cliente bonita que procura o detetive durão, conta-lhe uma história meio desconchavada, paga-lhe um bom adiantamento, deixa em aberto algumas possibilidades eróticas a curto prazo, e some. O detetive, acreditando nela, começa na página seguinte a meter-se numa encrenca atrás da outra.

O leitor terá notado que nas primeiras linhas coloquei num mesmo saco dois autores que são clássicos, mas de escolas diferentes. Chandler é o primeiro grande estilista literário das chamadas histórias policiais “hardboiled” norte-americanas. Agatha Christie é o antípoda disto: uma escritora apenas mediana, oriunda de uma família inglesa bastante bem-de-vida, e criada na tradição do romance de mistério britânico. 

Nos romances onde ela usa o detetive Hercule Poirot, acontece um crime, há numerosos suspeitos, Poirot interroga todos, e cada um deles conta uma ou várias mentiras. Cabe a Poirot saber quem está mentindo, qual é a mentira, qual é a verdade correspondente, e se a mentira tem a ver com o crime. Multiplique essa situação por 8 ou 10 suspeitos, e você tem o romance de 300 páginas que “Dame” Agatha passou a vida escrevendo.

Um detetive de romance não apenas tem que esclarecer um crime violento e misterioso, mas precisa também limpar um mato danado para chegar a essa solução. Porque todos mentem: os suspeitos, as testemunhas, todos os envolvidos têm algum motivo para contar uma mentira que só na página 87 vai ser percebida pelo detetive, o qual vai ter então que voltar atrás e refazer todas as suas suposições, levando em conta os novos fatos. 

É um vai-e-vem familiar aos cientistas, que em seus laboratórios estão sempre remanejando hipóteses, corrigindo o rumo, alterando suas deduções de acordo com os últimos fatos comprovados.

Não é só o criminoso: todos os personagens de um romance policial mentem para o detetive. Uns por medo, para ocultar detalhes que possam comprometê-los. Outros, por motivos pessoais que nada têm a ver com o crime, e que por isso mesmo eles acham que não são da conta da polícia. Outros porque querem proteger uma terceira pessoa. Outros porque querem incriminar uma quarta. Outros na verdade não estão mentindo, estão apenas interpretando erradamente alguns fatos, e induzem o detetive a incorrer no mesmo erro. 

Por isso que os bigodes de Hercule Poirot são longos e pontudos: ele ouve o pessoal falar, e fica enrolando o bigode, olhando, pensando... Nesses romances, a maioria das confusões e dos mal entendidos são produzidos pelos inocentes, que em geral metem os pés pelas mãos. O culpado planeja tudo para precisar mentir apenas o mínimo indispensável.





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