Estou me deleitando e me instruindo com a leitura das Estórias de Cabedelo, contos populares recolhidos por Altimar Pimentel. É um dos numerosos volumes do trabalho que Altimar e outros pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Documentação Popular da UFPb vêm realizando há anos com os contadores de histórias de nosso Estado.
Este projeto já revelou uma narradora notável como Luzia Teresa, de cujas narrativas já saíram dois volumes bem encorpados.
Os contos populares são uma coisa curiosa. São aprendidos, preservados e passados adiante por gente simples do povo: lavradores, empregadas, donas de casa, pessoas muitas vezes analfabetas, mas possuídas por aquela verve e aquele amor pela narrativa que hoje encontramos tão pouco em nossas classes médias.
A maioria dos nossos universitários (e dos doutores em que eles se tornam) é incapaz de contar do começo ao fim o filme que assistiram ontem. E Luzia Teresa morreu com 74 anos sem ter contado todas as histórias que sabia: a UFPb conseguiu registrar apenas 242.
Em suas notas às Estórias de Cabedelo, Altimar registra uma expressão bem nordestina:
“Sei que depois foi para um quarto, estava uma cama bonita medonha...”
É bem nosso este uso da palavra “medonho” como adjetivo intensificador (não sei se os gramáticos usam este termo; não tem problema, eu uso). “Medonho” quer dizer uma coisa muitíssima: um calor medonho, uma preguiça medonha....
A palavra, no entanto, é derivada de “medo”: medonho é tudo aquilo que provoca medo. O Dicionário Houaiss, curiosamente, registra apenas os significados negativos: “atroz, execrável, revoltante, hediondo, detestável...”
Mas a certa altura brota no verbete o sentido que, em nossa linguagem popular, essa palavra assume: “difícil de ser suportado”. Assim, de vez em quando surge da boca de um narrador popular uma expressão tipo: “Aí quando eles saíram da floresta viram lá adiante um castelo bonito que era medonho!”
Mais do que uma simples curiosidade vocabular, existe por trás de expressões assim um mergulho instantâneo na medula da vida e da mente humana. E isso é o tom, é o diapasão de toda a arte popular. Beleza e terror andam ali de mãos dadas. O conto de fadas popular é um mostruário de heroísmos e crueldades, gestos de bondade e chacinas brutais. O encantamento está sempre a um passo do terror.
O narrador popular pode não conhecer o conceito de “numinoso” popularizado por Jung: “o inexprimível, misterioso, tremendo, o totalmente outro, propriedades que possibilitam a experiência imediata do divino.”
Para ele, no entanto, a beleza esplendorosa e a Morte estão fundidas num mesmo holograma, onde cada uma se transforma na outra a cada instante. A Beleza, quando passa de um certo grau, provoca medo. A visão de uma “princesa bonita medonha” provoca em nós mais do que um prazer estético: provoca o terror do abismo. Sabemos que aquela Beleza é o mar de onde nunca se retorna; e é com terror e êxtase que ali mergulhamos.
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