quarta-feira, 17 de maio de 2017

4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)



Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por dia daquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.







sábado, 13 de maio de 2017

4234) Ser mãe (13.5.2017)



(Ela, "a Marquesa")

Ser mãe é ter na parede um quadro com a foto do Padre Cícero e enfiar na moldura, num ritual protetor, dezenas de retratos 3x4 de pessoas conhecidas, parentes ou não, crentes ou não.

Ser mãe é gostar de escutar Agostinho dos Santos, Capiba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Gal Costa, Altemar Dutra.

Ser mãe é botar água-pra-café no fogo às duas da manhã.

Ser mãe é ler escondido as cartas que o filho recebe das namoradas e dias depois abordar um assunto qualquer como se aquilo tivesse caído do céu no seu colo.

Ser mãe é dizer pro malcriado: “Ah, tá prendendo o choro? Pois vai apanhar até chorar”, e dizer depois: “Agora vai apanhar até parar”.

Ser mãe é contar a história de quando era garota na fazenda, e a porteira do curral caiu por cima dela enterrando-a na lama, e as vacas passaram por cima, e quando arrancaram a porteira e a tiraram dali ela estava inteira e viva, mas passou uma semana tirando terra do caroço do olho.

Ser mãe é receber um poema pelo correio e responder em versos.

Ser mãe é gostar de ler romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, e livros sobre discos voadores, os Exilados de Capela e a vida no planeta Marte.

Ser mãe é iniciar a noite com um olho na novela e outro na sopa no fogão.

Ser mãe é passar alguns anos da vida rodando de ônibus por cidades pequenas do Nordeste vendendo e doando botijões de uma infusão vegetal que é tiro-e-queda contra o câncer.

Ser mãe é perder uma hora antes de ir dormir amarrando um pano com Neocid no cabelo de um sujeito que se recusa a cortá-lo porque o cabelo faz parte da revolução mundial.

Ser mãe é ganhar de presente uma garrafa de Ballantine, agradecer, guardar no armário de bebidas, e ir lá dentro tomar uma dose de Natu Nobilis.

Ser mãe é repetir uma recomendação qualquer nunca menos de três ou quatro vezes, não importa quantas vezes o resignado interlocutor diga: “Sim, eu já sei”.

Ser mãe é saber preparar orelha-de-pau, doce de leite com cravo, imbuzada, gemada com farinha e açúcar, pão torrado com nata.

Ser mãe é ir pro Céu e não voltar pra puxar o pé do filho ateu durante o sono (conforme ameaçado), porque o bichinho está tão cansado, passou a noite escrevendo aquelas coisas que só ele entende.







terça-feira, 9 de maio de 2017

4233) O Mote Flutuante no repente cubano (9.5.2017)




Poucas coisas são tão universais na poesia popular das Américas quanto o esquema de rima da décima. A boa e velha décima dos cantadores de viola nordestinos não é só deles. É de toda a América hispânica.

Já vi exemplos de canções no formato de décimas na poesia da Argentina, do Chile, do Peru, do Uruguai, de todo canto.

O exemplo que sempre cito é a canção “Volver a los 17”, gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa.

Gravação original:

Para que fique bem claro: a décima que falo é a estrofe de dez versos onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Ou, de acordo com a notação tradicional, onde cada letra representa a posição de uma das rimas: A B B A A C C D D C.

É a décima do Século de Ouro da poesia espanhola (entre os séculos 16 e 17). É a mesma décima popularizada no Brasil por Gregório de Matos (1636-1696), o “Boca do Inferno” da Bahia.

Entre nós, a décima serve entre outras coisas para glosar motes, que são versos fornecidos pelo público. O mais comum é que o mote seja de 1 ou de 2 linhas, que irão constituir o final da décima (a linha 10 ou as linhas 9 e 10, respectivamente). Ou seja: o público sugere um final para a décima, e a gente faz os versos restantes, concluindo com o mote que o público forneceu.

Em Cuba os poetas chamam o mote de “pie forzado”, que quer dizer “pé forçado”, ou “pé obrigatório”. Tanto lá como aqui, “pé” é sinônimo de “linha”. Nossos cantadores cantam o “8 pés a quadrão” e o “10 pés a quadrão”, que são estrofes, respectivamente, de oito e de dez linhas.

“Pie forzado” = “linha obrigatória”. É o mote: a linha (ou linhas) que o público fornece, e que o cantador é forçado a incluir no seu improviso.

Vi recentemente uma menção a uma variante curiosa, algo que já tinha me ocorrido usar. Eles o chamam de “pie forzado móvil”, e que seria entre nós algo como “mote flutuante”, sem posição fixa, ou pelo menos, sem a mesma posição o tempo todo.

Suponhamos que o público dá um mote de uma linha: “nas quebradas do Sertão”. Ambos os contendores terão que incluir essa linha em suas décimas improvisadas, mas cada vez numa posição mais à frente.

O primeiro cantador usa o mote como a primeira linha, e diz:

Nas quebradas do sertão
eu vejo tanto vaqueiro
montar cavalo ligeiro
pra perseguir barbatão;
vejo vaqueiro e patrão
chorando a perda do gado
quando o poço está secado
pelo sol que tudo mata,
e a vida se torna ingrata
pro dono e pro empregado.

O segundo deve fazer sua décima colocando o “mote flutuante” na segunda linha:

Mas eu vejo a alegria
nas quebradas do Sertão
quando pipoca o trovão
por cima da serrania;
cai a chuva, quente ou fria,
mesmo assim abençoada
enquanto o “pai da coalhada”
estremece a serra inteira,
e o rio faz cachoeira
pela barranca inclinada.

O primeiro cantador, agora, tem que seguir a ordem e usar o mote flutuante como a terceira linha:

Todo tipo de paisagem
se vê, porque todos são,
nas quebradas do Sertão
essências da nossa imagem.
Nem ilusão nem miragem;
o Sertão tudo comporta
desde a Natureza morta
até a paisagem viva
e uma gente que é altiva
com a seca batendo à porta.

E assim por diante, até que a linha do mote tenha percorrido todas as dez posições, “descendo” ao longo da estrofe.

No saite do repentista Alexis Díaz Pimenta, colhi um depoimento datado de 2012 do qual destaco este trecho (“controversia”, entre os repentistas cubanos, é a nossa “peleja” ou “desafio”):

Normalmente, las competencias de repentismo en Cuba están organizadas en función de las controversias, la variante más conocida y popular de la improvisación poética de la isla. No obstante, en todas las competencias hay también pies forzados, esa modalidad en que el poeta está obligado a improvisar sus décimas y terminarlas con versos ajenos. Las controversias suelen tener una extensión de 10 ó 14 décimas (5 ó 7 décimas por repentista) y al final de cada controversia cada poeta canta 1 ó 2 pies forzados. Esas son las reglas generales. (…)

Tanto en el Primer como en el Segundo Campeonato Mundial de Pies Forzados una de las grandes sorpresas del evento, fue la controversia con pie forzado móvil, un tipo de controversia que, creemos, también llegó para quedarse. Expliquémosla.

Se selecciona un pie forzado “móvil” de la lista general. Una vez escogido el pie forzado, cada poeta debe improvisar una décima usando el pie en un verso distinto, en grado descendiente, del 1 al 10. 

Es decir, el poeta A utiliza el pie forzado en el verso 1; el poeta B, en el verso 2; el A, en el 3; el B en el 4; el A en el 5; el B, en el 6; el A en el 7; el B en el 8; el A en el 9; y el B en el 10.

El esquema de la controversia quedaría así:

Poeta A........pie forzado.......... verso 1
Poeta B …....pie forzado......... verso 2
Poeta A …....pie forzado..........verso 3
Poeta B........pie forzado..........verso 4
Poeta A …....pie forzado..........verso 5
Poeta B …....pie forzado..........verso 6
Poeta A …....pie forzado..........verso 7
Poeta B …....pie forzado..........verso 8
Poeta A …..pie forzado............verso 9
Poeta B …..pie forzado............verso 10


O “mote flutuante” poderia se constituir numa modalidade interessante, se não para a cantoria de viola, pelo menos para as “mesas de glosas” ou “rodas de glosas” que atualmente andam tão em voga no Sertão. O desafio podia ser feito entre dois improvisadores, com um usando o mote nas linhas 1, 3, 5, 7 e 9, e o outro, intercaladamente, nas linhas 2, 4, 6, 8 e 10.  Ou então poderíamos ter, quando há uma mesa com dez glosadores, o que não é raro, o mote passando de um em um e percorrendo a décima até o fim.

É um tipo de inovação que, para mim, está totalmente de acordo com o espírito da cantoria. Nossos motes variam desde o mote de uma linha apenas, no final, até duas linhas (a 9 e a 10) ou então, num modelo aliás muito usado no Rio Grande do Norte, o mote de duas linhas que aparecem nas posições 4 e 10.

O fato do mote se deslocar ao longo da estrofe requer um cuidado adicional: o mote tem que ser um tipo de frase que possa aparecer no começo, no meio e no fim de uma frase maior, para que os improvisadores possam incluí-lo no seu discurso sem forçar a barra. O exemplo que escolhi, “nas quebradas do sertão”, é isto: uma expressão sugestiva, meio que completa em si mesma, um segmento meio isolado, que não exige necessariamente um preâmbulo nem um complemento.







sexta-feira, 5 de maio de 2017

4232) As Formas Simples (5.5.2017)



Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simples saiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.







terça-feira, 2 de maio de 2017

4231) Descoberto um precursor do cordel nordestino (2.5.2017)






“Parem as máquinas!..” – gritaria o editor de um jornal, naqueles filmes policiais dos anos 1940. Parem de imprimir o jornal de amanhã, que já está quase pronto! Surgiu uma notícia tão sensacional que vale a pena jogar no lixo esse Corcovado de papel agora inútil, e começar tudo de novo. O furo de reportagem vale a despesa.

Os pesquisadores cearenses Arievaldo Vianna (cordelista, biógrafo de Leandro Gomes de Barros) e Stélio Torquato Lima (cordelista, professor de Literatura na Universidade Federal do Ceará) anunciam agora uma descoberta que vai fazer reescrever boa parte das histórias da literatura de cordel (ou Romanceiro Popular Nordestino, como gostava de chamar Ariano Suassuna).

Todos nós que estudamos o assunto consideramos que o primeiro a escrever e publicar folhetos de feira no Nordeste foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e que o teria feito a partir de meados da década de 1890.  Fala-se também no grande poeta Silvino Pirauá de Lima, mas ao que parece não há folhetos seus, impressos, que comprovem atividade editorial nesse período.

Agora, Arievaldo e Stelio trazem a figura de Santaninha, poeta popular, recitador, rabequeiro, nascido em Touros (RN), criado em Fortaleza, e que teve uma parte importante de sua carreira poética no Rio de Janeiro. A pesquisa está no recém-lançado Santaninha – Um Poeta Popular na Capital do Império (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017).

Por ter publicado no Rio, e não no Nordeste, Santaninha foi sempre um nome obscuro. Os cronistas cariocas registravam sua atividade; os autores do livro citam numerosas menções a ele e aos seus versos na imprensa da época. Mas nenhum usa o termo “cordel”, nem parece atribuir maior importância ao “pequeno poeta”, como ele se auto-denominava.

Por outro lado, a maioria dos pesquisadores de cordel devem ter feito o que eu fiz, quando me meti a estudar o assunto: procurava menções nos jornais, catálogos e almanaques das grandes capitais nordestinas, e não do Rio. E assim Santaninha não foi alcançado pelo radar.

Santaninha (João Sant’Anna de Maria, 1827-?) parece ter sido um tipo muito carismático, que cantava acompanhando-se de uma rabeca (que chamava de “Paraibinha”, “Sombrinha” ou “Profetinha”) e vendia folhetos, tanto pessoalmente quanto em pontos de venda fixos, no centro da cidade.

Já no Rio de Janeiro, eis um anúncio típico de sua atividade (Gazeta de Notícias, 5 e 16 de junho de 1881):

[Os folhetos] acham-se à venda na estação da estrada de ferro D. P. II, no quiosque do Luiz de Camões, no largo de São Francisco de Paula, na praça da Harmonia n. 31, no ponto das barcas, num quiosque em Botafogo, no ponto dos bondes e na rua do Resende n. 107.

Os primeiros registros ao seu respeito estão em jornais de Fortaleza em 1873, quando ele é descrito como “bem conhecido e popular”. Nessa época, teria possivelmente cantado para José de Alencar, que estava em visita a sua terra pesquisando para o romance O Sertanejo.

De 1881 em diante ele já aparece na imprensa carioca, anunciando vendas de livretos e até de partituras.

O cantador e cordelista Crispiniano Neto observa em seu prefácio:

[Santaninha] não tinha com quem trocar idéias sobre a Poética desse tipo de poesia do povo, pois estava deslocado no centro efervescente que partia da Serra do Teixeira e invadia o Pajeú, os Cariris e as Borboremas, forjando uma Escola Literária, a mais produtiva e mais variada de todas.

Os autores reproduzem capa de um folheto de Santaninha, do acervo da Biblioteca Nacional, impresso pela Livraria Editora Quaresma, contendo o que são talvez os seus quatro poemas mais conhecidos, publicados originalmente entre 1879-1881:

1) “Guerra do Paraguai”
2) “Imposto do vintém”
3) “O célebre chapéu de sol”
4) “A Seca do Ceará”

Os quatro poemas vêm transcritos integralmente na segunda parte do livro de Arievaldo e Stelio. São poemas em sextilhas, com todas as características que viriam a aparecer 10 ou 12 anos depois nos folhetos de Leandro Gomes de Barros. Há erros ocasionais de ortografia, de rima ou de métrica (que encontramos também em Leandro).  Mas o perfil do Romanceiro está ali, inconfundível e inegável.

Não se tem notícia certa do ano da morte do poeta, mas os autores supõem que ele teria morrido antes de 1888-1889. Sabe-se que ele manifestou (na imprensa do Rio) a intenção de voltar a sua terra natal, e não se tem notícia de obra sua sobre dois fatos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, sobre os quais um “poeta repórter” como ele não teria deixado de se manifestar poeticamente.

Aqui, um anúncio típico dos que ele fazia publicar na imprensa. É do jornal Monitor Campista (Campos dos Goytacazes-RJ, 4-9-1881):

O pequeno poeta João Sant’Anna de Maria, que toca e canta excelente[sic] versos ao som de sua rabeca Sombrinha, faz tenção, no hoje 4 do corrente, [de] divertir [pela] segunda vez no Hotel da Coroa, por isso faz saber ao respeitável público desta cidade que o divertimento principiará às 4 horas da tarde, e cantará outras variedades. Espera, pois, a muito digna coadjuvação do muito hospitaleiro e ilustrado povo campista. Faz ciente mais que o divertimento será no jardim do mesmo Hotel: a entrada de cada pessoa será de 500 rs. Se não chover.

E algumas sextilhas de A Seca do Ceará, que fala da seca de 1877:

Chegam os pobres arrastados
com a fome com que vêm,
pedindo esmolas aos ricos,
muitos dizem que nada têm;
responde: “Eu estou de saída
para ir pedir também”.

Nesta seca em que nós estamos,
que traz os pobres arrastados,
não pedem só as viúvas,
nem cegos, nem aleijados;
pedem os homens sadios
robustos, moços e barbados.

Não pedem só os caboclos,
negros, pardos e mulatos;
também pede gente branca
que comia em finos pratos,
já hoje come nas cuias
bravas comidas dos matos.

A publicação é da Editora Imeph, de Fortaleza: www.imeph.com.br / imeph@imeph.com.br

Santaninha foi aquilo que se costuma dizer agora “o ponto fora da curva”, um exemplo que se desvia notavelmente do comportamento mediano dos demais exemplos. Escrevia seus poemas, fazia imprimi-los e os vendia pessoalmente, cantando-os em público. Arievaldo Vianna e Stelio Torquato afirmam que lhe dão o nome de “Precursor e não de ‘Pai da Literatura de Cordel’, que julgamos ter sido merecidamente associado à figura do bardo de Pombal”.

De fato, Santaninha foi um agente isolado, embora, a partir de agora, nomes semelhantes ao seu possam surgir de novas pesquisas agora direcionadas para o ambiente de onde ele surgiu. O papel crucial de Leandro não foi apenas a escritura de folhetos (outros os escreveram antes dele), mas a ação constante e incansável que acabou deixando de ser apenas a iniciativa de um indivíduo, e sim um “processo de consagração da poesia popular como mercadoria rentável e altamente popular”.

Santaninha criou a própria obra, mas Leandro criou, com sua tenacidade e seu exemplo, gerações inteiras de – olha que ironia num país como o nosso – poetas que viveram da própria poesia.










domingo, 30 de abril de 2017

4230) "Para Belchior, com amor" (30.4.2017)




Belchior teve a coragem de dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem. Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso a vida toda.”

O primeiro disco dele, hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um impacto que nunca se dissipou.

Os jovens de hoje que o escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações humanas recorrentes.

E acima de tudo é um disco que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo, daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração coletivo.

Belchior evocava João Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.

Hoje, é praticamente zero a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.

A notícia da morte do poeta me pegou no meio da leitura de Para Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017), coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande.

Kelmer reuniu contos, crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula, Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira, José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.

O século 20 foi o Século da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras.  Primeiro, através da indústria fonográfica, depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a ópera e a música erudita jamais sonharam.

Em muitos momentos desse processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os diamantes são eternos.










quinta-feira, 27 de abril de 2017

4229) Dalva de Oliveira (27.4.2017)



Não sei que idade eu tinha. Geralmente localizo o ano de minhas experiências de antes dos 11 anos em função da casa onde morávamos, porque quase todo ano a gente se mudava: Rua Padre Ibiapina, Rua do Lapa, Rua Solon de Lucena, Rua Miguel Couto, Vila dos Motoristas, Rua Estilac Leal no Alto Branco... Pronto: este último endereço foi a famosa “casa própria” onde meus pais se fixaram. Houve outras mudanças depois, mas entre os quatro e os onze anos eu me localizo tendo como bússola aqueles endereços.

Não sei onde eu morava quando vi o show de Dalva de Oliveira, a Rainha do Rádio, cujo centenário comemoramos este ano.

Sei que foi à noite, num palanque armado na Praça da Bandeira (de costas para o Cine Capitólio), bem em frente ao Correio. Lembro da multidão, não tão grande que me impedisse de ver o palco à distância. Lembro da mulher loura vestida de preto, e minha mãe, segurando minha mão e comentando com alguém: “Olha a volta de ouro no pescoço dela, que coisa linda!”. E lembro da voz.

Eu já sabia que ela era Dalva de Oliveira, aquela voz límpida, sofrida, angustiada, que derramava seus dramas pessoais pela Rádio Borborema, a Rádio Cariri e a Rádio Caturité. Para não falar nas rádios do Rio de Janeiro, que meu pai sintonizava com presteza por entre os chiados da estática, e de onde a mesma mulher brotava, límpida, torturada.

Não conheço quem possa resistir a um tango que começa assim:

Tenho o coração feito em pedaços...
Trago esfarrapada a alma inteira...

O tango é “Cristal”, a única música que me lembro de ter ouvido no show, porque já a conhecia do rádio: “Mais frágil que o cristal.. foi o amor... nosso amor...”  

“Cristal”, gravação original:

A educação sentimental de minha geração indefesa foi no meio das catástrofes morais e afetivas de intérpretes como Dalva, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Maysa e outras, pelo lado feminino, e Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, Orlando Silva, pelo lado masculino.

Muita tinta já deve ter corrido sobre a influência das letras de música no comportamento afetivo dos jovens. Se eu fosse escolher, diria que Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira marcaram para os da minha geração a descoberta do amor, do sexo, da relação entre homens e mulheres, as noções de pecado, de fidelidade, de dominação, de solidão, de gozo e de sofrimento.

As canções do repertório de Dalva reproduzem um universo de paixões extremadas, de desejos intensos, de uma sensualidade que chega quase ao transtorno mental, de noções brutais de posse e de traição. Era um mundo moralmente muito repressor e transgressor – porque essas duas funções são proporcionais. Luís Buñuel dizia que ninguém gozava com mais força do que os espanhóis, porque eram o povo mais reprimido do mundo.

A voz de Dalva é a voz de um arquétipo feminino capaz de rasgar o próprio peito e ofertar o coração em chamas. Privadas de tantos caminhos, as mulheres daquele tempo faziam desaguar na paixão uma energia “capaz de mover milhões de mundos”, como dizia Augusto dos Anjos.

Num tempo de severa censura, não somente nas letras de músicas, essa sensualidade projetava sua potência de ar comprimido nas alusões, nas indiretas, nos subentendidos. Ela cantava:

Que será
da minha vida sem o teu amor,
da minha boca sem os beijos teus
da minha alma sem o teu calor?
Que será
da luz difusa do abajur lilás
que nunca mais irá iluminar
outras noites iguais?
(Marino Pinto & Mauro Rossi)

O que acontecia naquelas noites ficava a cargo da imaginação dos(as) ouvintes, que não precisava de mais que uma fagulha para pegar fogo. A cantora modulava a voz acompanhando as sugestões da letra, ora apequeninando-se em carinho, ora erguendo-se altiva como uma leoa ferida, ora deixando-se devanear em vagas promessas de prazeres terrenos. E o sexo idealizado fulgurava num horizonte de orgasmos múltiplos e ereções vitalícias.

Tudo acabado entre nós, já não há mais nada...
Tudo acabado entre nós, hoje de madrugada...
Você chorou e eu chorei... Você partiu e eu fiquei...
Se você volta outra vez, eu não sei.
(“Tudo Acabado”, J. Piedade & Osvaldo Martins)

Dalva tinha um sotaque que até hoje tenho dificuldade de localizar com precisão. Ela gostava de pronunciar um “erre” como um “ere”: “meu amorrr... parrrtiu... o peixe é pro fundo das rrredes...”  Sua voz cristalina e afinada fez escola em Ângela Maria, Núbia Lafayette e mais tarde até em Elis Regina – esta numa outra “chave” estilística, mais reflexiva, mais senhora de si, menos teatral, mas com a mesma densidade interpretativa e a precisão das notas.

Errei, sim, manchei o teu nome...
Mas foste tu mesmo o culpado:
deixavas-me em casa, me trocando pela orgia,
faltando sempre com a tua companhia...
Lembro-te agora que não é só casa e comida
que prende por toda vida o coração de uma mulher!
(“Errei, sim”, Ataulfo Alves)

Dalva e seu marido/compositor Herivelto Martins foram roteiristas e atores de um drama conjugal vivido nas manchetes e nas reportagens das revistas de fofocas. Traições, separações, reconciliações, brigas, difamações públicas, batalhas judiciais. Uma dessas histórias de escândalo que o showbiz encoraja e vampiriza. Vende disco, vende ingresso. E de tantos em tantos meses, uma nova canção chegava às rádios, respondendo à canção anterior do desafeto, como capítulos de uma telenovela escrita nos moldes de um desafio de violeiros.

A história do machismo brasileiro, das relações de propriedade amorosa, não pode ser escrita sem passar pelas composições de Adelino Moreira para Nelson Gonçalves e as de Herivelto para/sobre Dalva. São aqueles momentos da História em que existe uma sintonia total de emoções entre artistas e público, uma retroalimentação constante de valores, de princípios, de balizas, do que se pode e o que não se pode, do que se deve e o que não se deve.

Claro que a obra não vive apenas disso. São igualmente belos e fortes os momentos de lirismo puro em que a beleza simples da cidade se ergue mais alto do que as querelas pessoais. "Ave Maria no Morro” é um momento lírico que eu comparo à “Alvorada” de Cartola:

Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura..
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu
pois quem mora lá no morro
já vive pertinho do céu.
(“Ave Maria no Morro”, Herivelto Martins)

São esses passeios poéticos em que a dor individual se dilui na beleza da paisagem humana. E mostra o morro em seu lado idealizado de um lugar feliz de gente pura, ilusão tão inevitável quanto a de julgá-lo um covil de viciados e assassinos. Foi inclusive por conta da bela imagem de Herivelto que, muitos anos depois daquele show na Praça da Bandeira, eu e Lenine fizemos outra música, falando do desembarque de uma nave de alienígenas num morro carioca:

Os homens se perguntaram:
“Por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?”
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
(“O dia em que faremos contato”, Lenine & BT)











segunda-feira, 24 de abril de 2017

4228) Roberto Bolaño e a ficção científica (24.4.2017)





O chileno Roberto Bolaño virou de uns 10 anos pra cá um queridinho da crítica literária. Tenho amigos que detestam os livros dele e amigos que o acham o novo Cortázar, o novo Galeano. Tudo isso é reflexo da qualidade (má ou boa) do que ele escreve? Somente em parte. Na parte maior é reflexo desta praga que chamam de hype (=ráipe), também conhecida como marketing, badalação, tititi, bajulação às cegas, pressão-eufórica-sobre-o-mercado-consumidor apregoando a chegada (parafraseando os Titãs) do Melhor Escritor Latino-Americano De Todos os Tempos Da Semana Passada.

Li agora O Espírito da Ficção Científica de Bolaño (Companhia das Letras, 2016, traduzido por Eduardo Brandão).

É bom? Olha, não amarra as chuteiras dos três excelentes romances dele que já li: Os Detetives Selvagens (1998), Literatura Nazista nas Américas (1996) e Estrela Distante (1996).

É ruim? Olha, me deu muito prazer na leitura. Se bem que um prazer diluído, pelo fato de ser nitidamente um livro menor. Mas se em vez de 182 páginas o livro tivesse o dobro, o prazer seria o mesmo.

Gosto do jeito que Bolaño escreve. Me identifico com uma certa dicção direta, coloquial, que ele consegue manter, mesmo em textos de tom e cadência muito diferentes, e recebo dele umas lições de simplicidade que sempre me fizeram falta como escritor. (Sou do tipo que a frase tem que vir de cabeça pra baixo num trapézio, vestida de arlequim e iluminada com luz-negra, porque se for somente uma frase então não presta.)

O espírito da ficção científica é dado como um livro de 1984, publicado apenas agora, pois foi achado entre os papéis do escritor. 

Coisa publicada após a morte é sempre problemática. Nem tudo que ficou inédito é uma obra-prima à espera da glória. A maioria é de coisas que o autor olhou e pensou: “Isso aqui é meio fraquinho, já fiz uma tentativa disso que deu mais certo. Vou guardar somente por motivos sentimentais”. Aí chega a viúva, cheia de contas a pagar, e anuncia que achou “o melhor livro dele”.

A “tentativa que deu mais certo” é Os Detetives Selvagens, do qual este livro é um primeiro esboço ou um primo-pobre. Jovens intelectuais na pindaíba, morando na Cidade do México, produzindo poemas, namorando garotas mais ricas do que eles, bebendo, metendo-se em confusões...

Espírito é um rascunho de Detetives, até pela estrutura. Poetas jovens e impressionáveis admiram poetas um pouco mais velhos, mais escolados, mais cheios de talento e de expedientes.  A dupla de poetas ingênuos Remo e Jan Schrella, do Espírito, admira José Arco do mesmo modo que o adolescente Juan García Madero, em Detetives, admira a dupla mais calejada formada por Arturo Belano e Ulises Lima.

O contexto é semelhante, tal como a amizade ligeiramente hierárquica mas cordial, a presença de duas irmãs lindas e literárias (praticamente as mesmas que aparecem em Detetives e Estrela Distante). E também as demandas levemente quixotescas. Em Detetives, Belano e Lima reviram o México de cima a baixo à procura de pistas de uma antiga poeta vanguardista, hoje octogenária, Cesárea Tinajero. Em Espírito, Remo e José Arco se dedicam a comprovar (ou desmentir) a afirmativa feita por uma revista obscura de que o México tinha, então, 661 revistas de poesia, sendo que “para o fim do ano vaticinava a arrepiante cifra de mil revistas de poesia, noventa por cento das quais com toda certeza deixariam de existir ou mudariam de nome e de tendência estética no ano vindouro”.

Jovens intelectuais num apartamento, bebendo, fumando, namorando, falando de livros? Não há como não pensar na maciça influência exercida a partir de 1963 por O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”) de Julio Cortázar. Um livro que quem ainda não leu sempre associa a um jogo complicado de capítulos saltantes em idas-e-vindas um tanto intimidadoras. Quem leu, sabe que este aspecto, apesar de ser um dos mais visíveis do livro, está longe de esgotá-lo. O Jogo da Amarelinha é essencialmente um livro sobre boêmios exilados, com pouca grana, discutindo arte, amor, literatura, política, aventura existencial.

A diferença mais visível entre este livro de Bolaño e os outros que o influenciaram está no fato de que o jovem Jan Schrella é um fã ardoroso de ficção científica, e boa parte do livro consta das cartas ingênuas, cartas de fã, fã do Terceiro Mundo, enviadas (sem muita esperança de leitura ou de resposta) para autores como Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Forrest J. Ackerman e outros.

Jan Schrella chega a resumir, num capítulo inteiro, um romance de Gene Wolfe, que ele chama de A Sombra, história de uma nave-geração que chega depois de séculos a um planeta em crise, e não sabe se deve voltar para a Terra. Esse argumento (e o nome de alguns personagens principais: Johann, Helmuth, Grit) não correspondem a nenhum livro de Wolfe que eu tenha lido ou localizado na web, ainda mais se aceitarmos que Bolaño estava escrevendo em 1984.

O espírito da ficção científica não é um livro de FC, e nisso provavelmente irá decepcionar o leitor que tiver esta expectativa. Mas parece muito com livros de memórias como The Futurians (1977) de Damon Knight, sobre sua convivência, em apartamentos compartilhados, com James Blish, Cyril Kornbluth, Judith Merrill, Frederik Pohl...  São os relatos daquela época da vida em que todo mundo é jovem e entusiasmado, todo mundo acredita que a literatura pode mudar o mundo (nem toda literatura, é claro – apenas a que ele escreve).

Damon Knight relata naquele volume de memórias as carraspanas, as publicações, os fanzines, as críticas devastadoras que os contistas faziam aos textos uns dos outros, as namoradas roubadas ou compartilhadas, as peças de gosto duvidoso que se pregavam entre si, as polêmicas, os dinheiros emprestados e não pagos...

Aquela época da vida em que todo mundo sonha com um futuro de glória capaz de redimir os colchões desconfortáveis, a roupa sem lavar, a má bebida, o fumo barato, a incerteza sobre o mês que vem. A literatura envolve tudo isto numa aura de aventura e encanto. Talvez não ajude a ganhar a vida, mas como ajuda a viver.

E, perpassando tudo, aquela sensação de tempo dilatado através da bebida, do fumo, da insônia, da alimentação precária, da presença de mulheres por quem é possível se apaixonar no ato de abrir a porta e vê-las pela primeira vez. A arte de suspender o tempo na medula de uma noite feliz que nunca se acaba, como relata Remo na página 113:

Deveria perguntar a alguém ou consultar algum almanaque, às vezes tenho certeza de que foi a noite mais longa do ano. Tem mais, às vezes seria capaz de jurar que não acabou como acabam todas as noites engolidas de repente ou ruminadas por um bom tempo, com um lento amanhecer. A noite de que falo – noite gatesca de sete vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em momentos díspares e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava ou persistia uma parte e portanto toda ela. Hidra amabilíssima, capaz de, às seis e meia da manhã, voltar inopinadamente às três e quinze por um espaço de cinco minutos, fenômeno que sem dúvida pode ser incômodo para alguns mas que para outros era mais que uma bênção, um perdão real e uma forma de rebobinar.