O chileno Roberto Bolaño virou de uns 10 anos pra cá um
queridinho da crítica literária. Tenho amigos que detestam os livros dele e
amigos que o acham o novo Cortázar, o novo Galeano. Tudo isso é reflexo da
qualidade (má ou boa) do que ele escreve? Somente em parte. Na parte maior é
reflexo desta praga que chamam de hype
(=ráipe), também conhecida como marketing, badalação, tititi, bajulação às
cegas, pressão-eufórica-sobre-o-mercado-consumidor apregoando a chegada
(parafraseando os Titãs) do Melhor Escritor Latino-Americano De Todos os Tempos
Da Semana Passada.
Li agora O Espírito
da Ficção Científica de Bolaño (Companhia das Letras, 2016, traduzido por
Eduardo Brandão).
É bom? Olha, não amarra as chuteiras dos três excelentes
romances dele que já li: Os Detetives
Selvagens (1998), Literatura Nazista
nas Américas (1996) e Estrela Distante
(1996).
É ruim? Olha, me deu muito prazer na leitura. Se bem que
um prazer diluído, pelo fato de ser nitidamente um livro menor. Mas se em vez
de 182 páginas o livro tivesse o dobro, o prazer seria o mesmo.
Gosto do jeito que Bolaño escreve. Me identifico com uma
certa dicção direta, coloquial, que ele consegue manter, mesmo em textos de tom
e cadência muito diferentes, e recebo dele umas lições de simplicidade que
sempre me fizeram falta como escritor. (Sou do tipo que a frase tem que vir de
cabeça pra baixo num trapézio, vestida de arlequim e iluminada com luz-negra,
porque se for somente uma frase então não presta.)
O espírito da
ficção científica é dado como um livro de 1984, publicado apenas agora,
pois foi achado entre os papéis do escritor.
Coisa publicada após a morte é sempre problemática. Nem tudo que ficou inédito é uma obra-prima à espera da glória. A maioria é de coisas que o autor olhou e pensou: “Isso aqui é meio fraquinho, já fiz uma tentativa disso que deu mais certo. Vou guardar somente por motivos sentimentais”. Aí chega a viúva, cheia de contas a pagar, e anuncia que achou “o melhor livro dele”.
Coisa publicada após a morte é sempre problemática. Nem tudo que ficou inédito é uma obra-prima à espera da glória. A maioria é de coisas que o autor olhou e pensou: “Isso aqui é meio fraquinho, já fiz uma tentativa disso que deu mais certo. Vou guardar somente por motivos sentimentais”. Aí chega a viúva, cheia de contas a pagar, e anuncia que achou “o melhor livro dele”.
A “tentativa que deu mais certo” é Os Detetives Selvagens, do qual este livro é um primeiro esboço ou
um primo-pobre. Jovens intelectuais na pindaíba, morando na Cidade do México,
produzindo poemas, namorando garotas mais ricas do que eles, bebendo,
metendo-se em confusões...
Espírito é um
rascunho de Detetives, até pela
estrutura. Poetas jovens e impressionáveis admiram poetas um pouco mais velhos,
mais escolados, mais cheios de talento e de expedientes. A dupla de poetas ingênuos Remo e Jan Schrella,
do Espírito, admira José Arco do
mesmo modo que o adolescente Juan García Madero, em Detetives, admira a dupla mais calejada formada por Arturo Belano e
Ulises Lima.
O contexto é semelhante, tal como a amizade ligeiramente
hierárquica mas cordial, a presença de duas irmãs lindas e literárias (praticamente
as mesmas que aparecem em Detetives e
Estrela Distante). E também as
demandas levemente quixotescas. Em Detetives,
Belano e Lima reviram o México de cima a baixo à procura de pistas de uma
antiga poeta vanguardista, hoje octogenária, Cesárea Tinajero. Em Espírito, Remo e José Arco se dedicam a
comprovar (ou desmentir) a afirmativa feita por uma revista obscura de que o
México tinha, então, 661 revistas de poesia, sendo que “para o fim do ano vaticinava a arrepiante cifra de mil revistas de
poesia, noventa por cento das quais com toda certeza deixariam de existir ou
mudariam de nome e de tendência estética no ano vindouro”.
Jovens intelectuais num apartamento, bebendo, fumando,
namorando, falando de livros? Não há como não pensar na maciça influência
exercida a partir de 1963 por O Jogo da
Amarelinha (“Rayuela”) de Julio Cortázar. Um livro que quem ainda não leu sempre associa a um jogo complicado de
capítulos saltantes em idas-e-vindas um tanto intimidadoras. Quem leu, sabe que
este aspecto, apesar de ser um dos mais visíveis do livro, está longe de
esgotá-lo. O Jogo da Amarelinha é essencialmente
um livro sobre boêmios exilados, com pouca grana, discutindo arte, amor, literatura,
política, aventura existencial.
A diferença mais visível entre este livro de Bolaño e os
outros que o influenciaram está no fato de que o jovem Jan Schrella é um fã ardoroso de
ficção científica, e boa parte do livro consta das cartas ingênuas, cartas de
fã, fã do Terceiro Mundo, enviadas (sem muita esperança de leitura ou de
resposta) para autores como Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg,
Forrest J. Ackerman e outros.
Jan Schrella chega a resumir, num capítulo inteiro, um
romance de Gene Wolfe, que ele chama de A
Sombra, história de uma nave-geração que chega depois de séculos a um
planeta em crise, e não sabe se deve voltar para a Terra. Esse argumento (e o
nome de alguns personagens principais: Johann, Helmuth, Grit) não correspondem
a nenhum livro de Wolfe que eu tenha lido ou localizado na web, ainda mais se
aceitarmos que Bolaño estava escrevendo em 1984.
O espírito da
ficção científica não é um livro de FC, e nisso provavelmente irá
decepcionar o leitor que tiver esta expectativa. Mas parece muito com livros de
memórias como The Futurians (1977) de
Damon Knight, sobre sua convivência, em apartamentos compartilhados, com James
Blish, Cyril Kornbluth, Judith Merrill, Frederik Pohl... São os relatos daquela época da vida em que
todo mundo é jovem e entusiasmado, todo mundo acredita que a literatura pode
mudar o mundo (nem toda literatura, é claro – apenas a que ele escreve).
Damon Knight relata naquele volume de memórias as
carraspanas, as publicações, os fanzines, as críticas devastadoras que os
contistas faziam aos textos uns dos outros, as namoradas roubadas ou
compartilhadas, as peças de gosto duvidoso que se pregavam entre si, as
polêmicas, os dinheiros emprestados e não pagos...
Aquela época da vida em que todo mundo sonha com um
futuro de glória capaz de redimir os colchões desconfortáveis, a roupa sem
lavar, a má bebida, o fumo barato, a incerteza sobre o mês que vem. A
literatura envolve tudo isto numa aura de aventura e encanto. Talvez não ajude
a ganhar a vida, mas como ajuda a viver.
E, perpassando tudo, aquela sensação de tempo dilatado
através da bebida, do fumo, da insônia, da alimentação precária, da presença de
mulheres por quem é possível se apaixonar no ato de abrir a porta e vê-las pela
primeira vez. A arte de suspender o tempo na medula de uma noite feliz que
nunca se acaba, como relata Remo na página 113:
Deveria perguntar a alguém ou consultar algum almanaque, às vezes tenho
certeza de que foi a noite mais longa do ano. Tem mais, às vezes seria capaz de
jurar que não acabou como acabam todas as noites engolidas de repente ou
ruminadas por um bom tempo, com um lento amanhecer. A noite de que falo – noite
gatesca de sete vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em
momentos díspares e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava ou
persistia uma parte e portanto toda ela. Hidra amabilíssima, capaz de, às seis
e meia da manhã, voltar inopinadamente às três e quinze por um espaço de cinco
minutos, fenômeno que sem dúvida pode ser incômodo para alguns mas que para
outros era mais que uma bênção, um perdão real e uma forma de rebobinar.
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