“Parem
as máquinas!..” – gritaria o editor de um jornal, naqueles filmes policiais dos
anos 1940. Parem de imprimir o jornal de amanhã, que já está quase pronto!
Surgiu uma notícia tão sensacional que vale a pena jogar no lixo esse Corcovado
de papel agora inútil, e começar tudo de novo. O furo de reportagem vale a
despesa.
Os
pesquisadores cearenses Arievaldo Vianna (cordelista, biógrafo de Leandro Gomes
de Barros) e Stélio Torquato Lima (cordelista, professor de Literatura na
Universidade Federal do Ceará) anunciam agora uma descoberta que vai fazer
reescrever boa parte das histórias da literatura de cordel (ou Romanceiro
Popular Nordestino, como gostava de chamar Ariano Suassuna).
Todos
nós que estudamos o assunto consideramos que o primeiro a escrever e publicar
folhetos de feira no Nordeste foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e que o
teria feito a partir de meados da década de 1890. Fala-se também no grande poeta Silvino Pirauá
de Lima, mas ao que parece não há folhetos seus, impressos, que comprovem
atividade editorial nesse período.
Agora,
Arievaldo e Stelio trazem a figura de Santaninha, poeta popular, recitador,
rabequeiro, nascido em Touros (RN), criado em Fortaleza, e que teve uma parte importante
de sua carreira poética no Rio de Janeiro. A pesquisa está no recém-lançado Santaninha – Um Poeta Popular na Capital do
Império (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017).
Por
ter publicado no Rio, e não no Nordeste, Santaninha foi sempre um nome obscuro.
Os cronistas cariocas registravam sua atividade; os autores do livro citam
numerosas menções a ele e aos seus versos na imprensa da época. Mas nenhum usa
o termo “cordel”, nem parece atribuir maior importância ao “pequeno poeta”,
como ele se auto-denominava.
Por
outro lado, a maioria dos pesquisadores de cordel devem ter feito o que eu fiz,
quando me meti a estudar o assunto: procurava menções nos jornais, catálogos e
almanaques das grandes capitais nordestinas, e não do Rio. E assim Santaninha
não foi alcançado pelo radar.
Santaninha
(João Sant’Anna de Maria, 1827-?) parece ter sido um tipo muito carismático,
que cantava acompanhando-se de uma rabeca (que chamava de “Paraibinha”,
“Sombrinha” ou “Profetinha”) e vendia folhetos, tanto pessoalmente quanto em
pontos de venda fixos, no centro da cidade.
Já
no Rio de Janeiro, eis um anúncio típico de sua atividade (Gazeta de Notícias, 5 e 16 de junho de 1881):
[Os
folhetos] acham-se à venda na estação da estrada de ferro D. P. II, no quiosque
do Luiz de Camões, no largo de São Francisco de Paula, na praça da Harmonia n.
31, no ponto das barcas, num quiosque em Botafogo, no ponto dos bondes e na rua
do Resende n. 107.
Os
primeiros registros ao seu respeito estão em jornais de Fortaleza em 1873,
quando ele é descrito como “bem conhecido e popular”. Nessa época, teria possivelmente
cantado para José de Alencar, que estava em visita a sua terra pesquisando para
o romance O Sertanejo.
De
1881 em diante ele já aparece na imprensa carioca, anunciando vendas de
livretos e até de partituras.
O
cantador e cordelista Crispiniano Neto observa em seu prefácio:
[Santaninha]
não tinha com quem trocar idéias sobre a Poética desse tipo de poesia do
povo, pois estava deslocado no centro efervescente que partia da Serra do
Teixeira e invadia o Pajeú, os Cariris e as Borboremas, forjando uma Escola
Literária, a mais produtiva e mais variada de todas.
Os
autores reproduzem capa de um folheto de Santaninha, do acervo da Biblioteca
Nacional, impresso pela Livraria Editora Quaresma, contendo o que são talvez os seus
quatro poemas mais conhecidos, publicados originalmente entre 1879-1881:
1) “Guerra do Paraguai”
2) “Imposto do vintém”
3) “O célebre chapéu de sol”
4) “A Seca do Ceará”
Os
quatro poemas vêm transcritos integralmente na segunda parte do livro de
Arievaldo e Stelio. São poemas em sextilhas, com todas as características que
viriam a aparecer 10 ou 12 anos depois nos folhetos de Leandro Gomes de Barros.
Há erros ocasionais de ortografia, de rima ou de métrica (que encontramos
também em Leandro). Mas o perfil do Romanceiro
está ali, inconfundível e inegável.
Não
se tem notícia certa do ano da morte do poeta, mas os autores supõem que ele
teria morrido antes de 1888-1889. Sabe-se que ele manifestou (na imprensa do
Rio) a intenção de voltar a sua terra natal, e não se tem notícia de obra sua
sobre dois fatos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República,
sobre os quais um “poeta repórter” como ele não teria deixado de se manifestar
poeticamente.
Aqui,
um anúncio típico dos que ele fazia publicar na imprensa. É do jornal Monitor Campista (Campos dos Goytacazes-RJ,
4-9-1881):
O
pequeno poeta João Sant’Anna de Maria, que toca e canta excelente[sic] versos
ao som de sua rabeca Sombrinha, faz tenção, no hoje 4 do corrente, [de]
divertir [pela] segunda vez no Hotel da Coroa, por isso faz saber ao
respeitável público desta cidade que o divertimento principiará às 4 horas da
tarde, e cantará outras variedades. Espera, pois, a muito digna coadjuvação do
muito hospitaleiro e ilustrado povo campista. Faz ciente mais que o
divertimento será no jardim do mesmo Hotel: a entrada de cada pessoa será de
500 rs. Se não chover.
E
algumas sextilhas de A Seca do Ceará,
que fala da seca de 1877:
Chegam
os pobres arrastados
com
a fome com que vêm,
pedindo
esmolas aos ricos,
muitos
dizem que nada têm;
responde:
“Eu estou de saída
para
ir pedir também”.
Nesta
seca em que nós estamos,
que
traz os pobres arrastados,
não
pedem só as viúvas,
nem
cegos, nem aleijados;
pedem
os homens sadios
robustos,
moços e barbados.
Não
pedem só os caboclos,
negros,
pardos e mulatos;
também
pede gente branca
que
comia em finos pratos,
já
hoje come nas cuias
bravas
comidas dos matos.
A
publicação é da Editora Imeph, de Fortaleza: www.imeph.com.br
/ imeph@imeph.com.br.
Santaninha
foi aquilo que se costuma dizer agora “o ponto fora da curva”, um exemplo que
se desvia notavelmente do comportamento mediano dos demais exemplos. Escrevia
seus poemas, fazia imprimi-los e os vendia pessoalmente, cantando-os em
público. Arievaldo Vianna e Stelio Torquato afirmam que lhe dão o nome de
“Precursor e não de ‘Pai da Literatura de Cordel’, que julgamos ter sido merecidamente
associado à figura do bardo de Pombal”.
De
fato, Santaninha foi um agente isolado, embora, a partir de agora, nomes
semelhantes ao seu possam surgir de novas pesquisas agora direcionadas para o
ambiente de onde ele surgiu. O papel crucial de Leandro não foi apenas a
escritura de folhetos (outros os escreveram antes dele), mas a ação constante e
incansável que acabou deixando de ser apenas a iniciativa de um indivíduo, e
sim um “processo de consagração da poesia popular como mercadoria rentável e altamente
popular”.
Santaninha
criou a própria obra, mas Leandro criou, com sua tenacidade e seu exemplo,
gerações inteiras de – olha que ironia num país como o nosso – poetas que viveram
da própria poesia.
2 comentários:
Arievaldo Viana, que nem sempre, mostrando-se um emérito pesquisador das coisas do Nordeste, notadamente da Literatura Popular.
Mais um trabalho excelente.
Kydelmir Dantas
Nova Floresta-PB
Quem criou a expressão "literatura de cordel" foi Sílvio Romero?
"Sílvio Romero, pioneiro dos estudos etnográficos e historiador literário, já fazia uso do termo “literatura de cordel" em Estudos sobre a poesia popular, de 1885. Por outro lado, Romero não destaca nenhum poeta em particular, à exceção de João Sant’Anna de Maria, o que leva a crer que estas publicações incipientes ainda não haviam atingido o padrão que imortalizaria o gênero na memória popular e na cultura brasileira."
Do livro: Marco Haurélio. Literatura de Cordel: do sertão à sala de aula. São Paulo, Paulus, 2013
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