quinta-feira, 15 de setembro de 2016

4159) O detetive investigado (15.9.2016)



Não é muito comum um gênero artístico ser criado por uma só pessoa, num curto espaço de tempo.

Podemos dizer que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira criaram o baião nos anos 1940 no Rio de Janeiro, e que Edgar Allan Poe inventou o romance detetivesco moderno em 1841 quando publicou “The Murders of the Rue Morgue”.

Borges lembra, numa conferência famosa, que a literatura policial produziu não somente um novo tipo de história (voltada para a elucidação de um crime inexplicável) . Produziu um novo tipo de leitor. Um leitor que, sabendo que vai haver uma solução, quer chegar a ela antes do detetive. Um leitor mais desconfiado, mais atento, mais pronto para duvidar do autor.

Num grande llivro policial sendo lido por um grande leitor não passa uma corrente de ar que não deixe alguma dúvida e desconfiança quanto à razão de sua passagem justamente ali, naquele local, entre aquelas pessoas... Tudo é suspeito, tudo é duvidoso. Antes do romance policial, é possível que de fato ninguém lesse um romance com esse tipo de prevenção, com essa atenção extra ao jogo, à competição implícita.

Pierre Bayard é um psicanalista e escritor francês. Com algumas obras poucas, mas firmemente argumentadas, ele está criando um novo gênero: o romance crítico de detetive (“detective criticism”).

É um livro em formato de ensaio onde o autor, insatisfeito com o culpado apontado pelo detetive numa obra clássica, reinterpreta a história, recontando as peripécias, mostrando sua própria versão e apontando um novo culpado.

Bayard fez isso nas suas desconstruções metalinguísticas de duas obras célebres (e dois dos meus clássicos preferidos): O Assassinato de Roger Ackroyd (1926) de Agatha Christie e O Cão dos Baskervilles (1902) de Conan Doyle. Bayard também tem pelo menos um livro publicado no Brasil: Como falar dos livros que não lemos? (Objetiva, 2008), mas não posso falar sobre este porque não o li.

Na primeira das suas reescrituras (Qui a tué Roger Ackroyd?, 1998) Bayard faz um detalhado resumo do romance de Agatha Christie e reexamina ponto por ponto os fatos que conduziram ao crime, as suspeitas infundadas, os detalhes que não batiam. Ele mostra a solução apresentada por Hercule Poirot, mas mostra que a solução não se sustenta.

O passo seguinte para Bayard é pegar todos os elementos criados e arranjados por Agatha Christie e inventar baseado neles uma versão ainda melhor que a de Agatha Christie.

E ele o faz.  Sua teoria é tão verossímil quanto a de Lady Agatha, e o assassino que ele aponta é de repente uma hipótese ainda mais interessante. (Falei sobre o livro aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/04/1917-quem-matou-roger-ackroyd-152009.html).  

A segunda reescritura de Bayard intitulou-se L’Affaire du Chien des Baskervilles (2008) e neste caso li a tradução norte-americana de Charlotte Mandell, Sherlock Holmes was Wrong (New York, Bloomsbury, 2008).

Aqui, Bayard refaz a história do cão fantasma que cruzava a charneca e assombrava uma família de ricos proprietários.  E ele desmonta, tijolo por tijolo, todas as explicações que um Holmes meio lacônico fornece a Watson no final do livro. Nada do que imaginamos ter visto aconteceu de fato. Quer dizer--- sim, os fatos são aqueles. Mas eles podem ser interpretados de outro modo.

Não sei se é um novo gênero literário ou um novo gênero de crítica literária, mas eu gosto.

Diz Bayard, no segundo livro:

“A crítica detetivesca (“detective criticism”) extrai todas as consequências do fato de que muitos elementos que nos foram apresentados no texto como verdades estabelecidas são na verdade, quando observados com atenção, apenas relatos de testemunhas oculares.”

É possível manter os fatos básicos os mesmos, mas aproveitar os espaços em branco e criar outra narrativa que os justifique. Os mesmíssimos fatos podem ser satisfatoriamente cobertos pelas mais variadas explicações, como Chesterton exemplificou em “A honra de Israel Gow” (1911), um dos melhores contos da série do Padre Brown (que incluí no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, 2005).

Essa luta pela hegemonia de uma explicação está na medula mesma da literatura de detetive. Há um crime. Às vezes o assassino quer impor uma leitura: aquilo foi acidente, morte natural, suicídio. O detetive impõe outra leitura que não só explica como o crime foi praticado, mas também quem o praticou. Às vezes, antes dessa solução definitiva. a polícia ou a imprensa fornecem outras hipóteses que o detetive precisa questionar, pois sabe que não batem com suas próprias observações.

Borges, que no auge da sua escrita meditava constantemente sobre o gênero policial, imagina em “Exame da Obra de Herbert Quain” (1941) o autor de um livro policial que dá pistas enigmáticas sobre um crime e no fim diz a solução, mas, antes de se encerrar o livro, ele faz um comentário ambíguo que leva o leitor a reconsiderar, reler, reintepretar episódios do livro que até então ele via pela ótica do detetive. E só então entender o que de fato acontecera. Diz Borges: “O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive”.

O leitor-detetive Pierre Bayard mostra ser mais esperto que Hercule Poirot e Sherlock Holmes.

Sei que os respectivos fãs tentarão lavar a honra dos seus ídolos, mas acreditem, sou fã também. Quanto a Bayard, o simples fato de ter tido e executado a idéia merece uma medalha.  Não cabe comparar seu projeto com o de Lady Agatha e Sir Arthur. Estavam tentando criar tipos de obra completamente diferentes. É outra a relação com o leitor.

Bayard tem precursores ilustres nessa tentativa. Embora não chegue a propor uma nova teoria, como faz o francês, Robert L. Styx também reduz um argumento de Conan Doyle a pó (e logo num dos seus contos mais famosos) em seu conto-ensaio “Os 7 erros na Liga dos Cabeça Vermelha”, que reproduzi e comentei aqui, no meu blog sobre Raymond Chandler: http://caminhandocomphilipmarlowe.blogspot.com.br/2014/10/0009-memoria-do-leitor-2.html









segunda-feira, 12 de setembro de 2016

4158) A dieta de Um Autor Por Mês (12.9.2016)



Dizem os dietantes que as dietas unicistas são muito eficazes. Uma semana comendo só arroz. Ou então só manga num dia, só goiaba no segundo, só mamão no terceiro.

Bolei uma dieta literária, uma espécie de oficina de auto-ajuda em self-service. Durante doze meses, o Penitente tem que passar cada período de 30 dias lendo unicamente obras de um mesmo autor. Na quantidade que quiser, mas sem misturar com nenhum outro.

O objetivo é fazer uma faxina linguística e mental para se reaproximar da literatura (prosa e poesia) de outra direção.

Por exemplo: faria bem a um leitor culto, interessado em expandir seus horizontes, dedicar seu mês de janeiro exclusivamente à leitura de Gertrude Stein. Digo isso porque não li quase nada dela. Stein foi quem disse famosamente que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, e ela costuma escavacar suas coisas perto do “grau zero da linguagem”. Por isso mesmo, fiquei com medo de levar uma varredura desse nível em meu sistema operacional. Mas acho que os textos enganosamente simples e enganosamente repetitivos dela são um bom detergente mental. Bancando uma aposta eu encarava!

Fevereiro seria dedicado a outro que escreve quase assim: Samuel Beckett, cujos textos em prosa são um monólogo monótono e monocórdio monopolizando monomanias monoteístas. Beckett foi amigo de James Joyce, mas seus escritos são mais próximos da prosa de Stein do que da do outro irlandês. Os seus Textos Para Nada e os vários romances são exemplos dessa linguagem. Para alguns leitores, ele “taxia mas não decola”, ou seja, cria situações fascinantes mas não conta uma história. Injustiça. Beckett dá até umas decoladas. Sua obra mais famosa encerraria fevereiro: Esperando Godot, talvez a obra mais legível, mais lúdica e mais esperançosa de Beckett.

Depois desse spa, o leitor pode se recuperar aos poucos lendo ao longo de março a obra de Paulo Leminski. Uma semana para seus “hai-quases” e poeminhas-piada. Depois os artigos literários, depois os poemas mais longos de Polonaises. (Lembrem-se: todo poema de verdade precisa ser lido três vezes – uma de manhã, outra de tarde e outra de noite. Menos que isto não vale.) Em seguida, pode ler as biografias, a de Cruz e Sousa e principalmente a de Bashô, primoroso raio-X poético. E encerrar tudo com o Catatau, uma festa-de-Babette para quem acabou de sair dum spa.

Abril pode prolongar esse estado de euforia verbal com a leitura de Guimarães Rosa. Ler Grande Sertão: Veredas em um mês seria como ver a floresta amazônica brotar diante dos próprios olhos em stop-motion. Esqueçam a pirâmide. Sugiro ler os obeliscos isolados que são os demais livros. Os contos de Tutaméia, por exemplo, têm todos uma angulosidade verbal muito semelhante, e se enfraquecem mutuamente quando lidos em série. Melhor alterná-los com as noveletas de Sagarana e Corpo de Baile e com os contos longos de Primeiras Estórias.

Maio seria dedicado a João Cabral de Melo Neto, que depois de Rosa é uma boa maneira de ir reduzindo a marcha, tirando o pé. Rosa é barroco, exuberante, mesmo quando compacta histórias inteiras em duas páginas. João Cabral tem uma linguagem de aspecto severo e monástico, mas ele mostra a riqueza que a dicção severa pode ter. O mês começaria com os poemas cênicos (Morte e Vida Severina, o Auto do Padre), depois os poemas mais longos e narrativos onde a linguagem é mais amiga do usuário, como O Cão Sem Plumas, percorreria outros títulos a gosto do freguês, mas acabaria na Educação pela Pedra.

Junho daria ao Penitente leitor a chance de ler George Perec, por mero efeito de continuidade. Falei que a poesia de Cabral é severa; as teorias da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo de que Perec fez parte, chegam a ser masoquistas, de tantas condições que impõem à prosa. Em obras como W, ou a memória de infância, Um homem que dorme, As coisas e A Vida modo de usar, um esqueleto rígido de estruturas verbais dignas de Cabral é recoberto com fabulação da pop-filosofia perequiana, uma prosa tão rigorosa quanto a poesia do pernambucano, mas saturada de faits-divers, memorabilia, cultura oral, alusões livrescas, peripécias pulp-fiction.

Julho seria o momento de ler Garcia Márquez, onde o arcabouço estrutural é menos explícito, mas existe a mesma escritura de ferro regendo os enredos. A linguagem, a estilística, predominou no primeiro semestre; no segundo, o leitor irá mergulhando nos autores onde predomina a maneira de tratar a matéria narrada. Julho pode começar com Cem anos de solidão ou O Outono do Patriarca, ou outro romance preferido do leitor. Depois, ele pode visitar os contos, e encerrar com o livro de memórias Viver para contar. Quando ele então perceberá que seus conceitos de ficção e memória são agora indistinguíveis um do outro.

Este último critério pode aliás ser posto à prova em agosto, quando Márquez for substituído por Philip K. Dick.  Justapor Dick a Márquez ajuda a diluir as fronteiras de gêneros como ficção científica e realismo mágico. A obra de PKD é vasta, mas um mês em que alguém lesse pela primeira vez na vida Ubik, Do Androids Dream..., O Homem do Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Time Out of Joint, A Maze of Death e mais algum outro seria sem dúvida um mês inesquecível. E o leitor perceberia que seus conceitos do que é real e do que é fantástico já terão sofrido uma atualização para a versão 2.0.

Setembro poderia ser dedicado à leitura de Fernando Pessoa, mas, mantendo a fidelidade ao espírito da dieta, os heterônimos teriam que ser lidos em sequência, sem misturar, começando pelo próprio Fernando de Mensagem, passando em seguida para Ricardo Reis, Alberto Caeiro, o Bernardo Soares do crepuscular Livro do Desassossego e concluindo com a explosão futurista (em todos os sentidos) de Álvaro de Campos. O objetivo disto é fazer com que os conceitos do leitor sobre o que é o “Eu” sofram uma atualização para o século 21.

Em outubro, ainda eletrificado pelo verso voltaico e galvânico de Campos, o leitor pode por fim entender melhor a obra de Augusto dos Anjos, e desta vez, dada a complexidade inédita do material, pode-se omitir o conjunto de sua obra poética, concentrando-se o leitor apenas no Eu e Outras Poesias na seleção canônica de Órris Soares. Isto ajudará o leitor na árdua tarefa de atualizar seus conceitos sobre cosmopolitismo e provincianismo, num momento crucial (agora) em que o primeiro está ameaçado de desaparecer pela proliferação exponencial de exemplares do segundo em suas versões metropolitanas.

Pensei muito no mês de novembro, e acho que o leitor merece uma “limpa”, como a gente diz na Paraíba: uma faxina geral nas tralhas do consciente e da memória verbal. Sabe aquelas problemas de matemática em que a página parece uma partitura sinfônica, e a gente sai cortando, simplificando, até encontrar um equivalente límpido e minimalista para aquilo tudo? Ítalo Calvino é uma resposta, começando pelo seu indispensável Seis Propostas Para o Novo Milênio, percorrendo com gosto suas fabulações da trilogia do Visconde/Barão/Cavaleiro, a aventura tarológica do Castelo dos Destinos Cruzados, o límpido labirinto do Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, e culminando com as Fábulas Italianas, onde o autor desce às fontes de si mesmo.

Dezembro é sempre um mês movimentado. Festas, trabalho, férias, viagens, família... Não há tempo para ler demais, e os ciclos de morte e ressurreição do planeta nos induzem à contemplação meditativa. Terminemos o ano, pois, relendo a obra de Emily Dickinson, uma poesia que nos seus volteios acaba tocando várias das literaturas discutidas nos meses anteriores. Depois desses autores tão biografados, televisados, premiados, fotografados, autores que escreviam sob as luzes da ribalta, por assim dizer, vamos ler uma poetisa do lusco-fusco, do intimismo. Uma poética um tanto clássica e espartilhada, de um lado, e muito anticonvencional e idiossincrática por outro. E uma poetisa que, se estendesse a mão, tocaria a de Gertrude Stein fechando o ciclo.

Nota Final: Sim, sei que os autores preferidos de vocês ficaram de fora, mas vejam que muitíssimos deles substituiriam o titular de um dos meses acima sem que a sequência educacional fosse rompida. Façam suas próprias listas. A única obrigação é explicar “por quê”.








sábado, 10 de setembro de 2016

4157) O mistério do 11 de setembro (10.9.2016)




(foto: Richard Drew / Associated Press)

Quando aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, eu fiquei pregado à TV durante um dia inteiro, porque justamente na véspera um pequeno problema de hardware me deixara sem acesso à Internet. (Fiquei irritado porque 11 de setembro era a data marcada para o lançamento do álbum Love and Theft de Bob Dylan, e eu queria ver os clips de lançamento.)

Na época eu fazia freelancer para a Editora Guanabara, que estava para lançar um Atlas Histórico ligado à Enciclopédia Delta; e minha editora Liana Pérola Schipper me encomendou uma matéria longa, especial, sobre o assunto. Nos dias seguintes, resolvido o problema de conexão, eu praticamente não fiz outra coisa senão ler e capturar textos e imagens a respeito da catástrofe do WTC.

(Digressão: acho que isto é uma resposta neurótica comum, em mim pelo menos, diante de um fato esmagador e terrível. O processo de juntar e organizar informações sobre o fato de certa forma nos protege do perigo de pensar sobre ele. É uma fase intensa mas passageira.)

Quando o indivíduo é leitor de romance policial e de ficção científica, não há como não ser um cultor, em certa medida, das Teorias da Conspiração.

A literatura policial nos ensina que não há um limite visível para a cobiça humana por dinheiro, nem para as maldades que seres humanos são capazes de fazer para ter mais Poder. A ficção científica expande esse conceito para o Universo como um todo.

Li na época uma entrevista com um dirigente da CIA em que, depois de explicar mais ou menos (ainda se estava em plena investigação) como os terroristas tinham sido treinados para usar os aviões e tudo o mais, ele disse:

“O que me deixa mais acabrunhado é pensar que nós (a CIA) não teríamos ousado pensar num plano como este, e, se pensássemos, não teríamos acreditado que era possível.”

Modéstia do rapaz. Eu atribuo à CIA (e se não foi a CIA foi alguma outra agência da “sopa de letrinhas” de que falava John Michael Hayes, o roteirista de Intriga Internacional) um plano ainda mais mirabolante do que o de meia dúzia de jihadistas sequestrando o cockpit de três ou quatro aviões.  (Digo 3 ou 4 porque até hoje não vi o famigerado “avião” que teria sido jogado no Pentágono.)

Este link (http://www.europhysicsnews.org/articles/epn/pdf/2016/04/epn2016474p21.pdf) conduz a uma matéria do saite Europhysics News sobre o atentado, intitulada: “15 Years Later: On The Physics Of High-Rise Buildings Collapses”, de Steven Jones, Robert Korol, Anthony Szamboti e Ted Walter.

O cerne da questão é: como se explica que as duas Torres, que tinham estrutura de metal, tenham desmoronado daquela forma, se todos os testes provam que a temperatura daquele fogo seria insuficiente para fazer ceder o metal? E mais ainda: como se explica que o WC7, o terceiro prédio a desmoronar naquele dia, tenha aluído praticamente todo ao mesmo tempo, horas depois do choque dos aviões?

Já escrevi a respeito, aqui:



Em matéria de história mal contada, o World Trade Center nunca vai deixar de assombrar nossas noites mal dormidas. Mal contada – não por escassez de explicações, mas pelo excesso. A melhor maneira de esconder uma informação não é proibindo que seja divulgada, é disfarçando-a no meio de uma selva de informações irrelevantes e parecidas. (Aprendi isto com Agatha Christie.)

Poucos acontecimentos do novo século podem se comparar ao impacto da queda das Torres. Mesmo a Guerra do Iraque e a do Afeganistão, que se seguiram, foram guerras convencionais, iguais a qualquer outra guerra.  O atentado do 11 de setembro teve acima de tudo o impacto do ineditismo, do nunca-acontecido, do fato que estourou-a-costura da nossa imaginação.

Talvez um dia seja confirmado que a queda das Torres não se deveu à ação de terroristas islâmicos, e foi na verdade uma gigantesca queima-de-arquivo de empresas privadas e do Governo que estavam metidas em enrascadas mil, além de uma excelente oportunidade de sofrer um ataque estrangeiro que obriga a um revide imediato, como em Pearl Harbor.

Há muitas teorias de que na II Guerra os EUA precisavam de um pretexto para entrar numa guerra que a população via com distanciamento, e adotaram uma atitude passiva-agressiva, pedindo ao Japão: “Me dê motivo”.  Os japoneses, em sua euforia expansionista, caíram na armadilha e bombardearam o porto.

Se confirmarem um dia que os próprios EUA derrubaram as Torres, este fato será tão relevante e tão impactante quanto a queda das Torres, quinze anos atrás.

E será uma revelação crucial sobre a natureza de nossa civilização: uma civilização em que qualquer história gigantescamente absurda pode ser impingida como verdade à população, durante uma quantidade de tempo finita (mas suficiente para os objetivos estratégicos imediatos).






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

4156) "Liturgia do Fim"(7.9.2016)




Não existe “literatura nordestina” se por este rótulo entendermos um corpo literário homogêneo, ou pelo menos composto apenas de obras parecidas umas com as outras. Como se todos nós tivéssemos que pedir uma bênção obrigatória à seca, ao cangaço, ao sertão, à cantoria de viola, em cada livro publicado. Tivéssemos que usar um algum crachá verbal de nordestino, para que os postos de acesso nos identifiquem sem fazer muito esforço. (“Como assim, ficção científica? Tem ficção científica no Nordeste? O foguete é feito de rapadura?”)

Vai daí que eu vejo com orgulho e alívio histórias feitas por nordestinos e que fogem a esse samba-de-uma-nota-só, que já comparei com os antigos e célebres desfiles de “misses em trajes típicos”. Se deixar, a literatura (a pintura, o rock, qualquer coisa) vira justamente isso. Um desfile de gente esteticamente idealizada trajando clichês de fácil leitura.

O romance Liturgia do Fim (São Paulo, Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud se passa como numa elipse com dois focos. Um deles, o mais pesado e mais atrator, é a fazenda de Perdição, num sertão remoto do Brasil. O outro é a capital, descrita porém jamais nomeada. É nordestino? É, apenas porque não precisa ser.

Marília escolhe uma chave narrativa já escolhida, também com sucesso, por José Nêumanne em O Silêncio do Delator e Débora Ferraz em Enquanto Deus Não Está Olhando, ambos já comentados aqui no blog. A chave narrativa é limar os nomes próprios: de cidades, de logradouros, de pontos de referência, de bares, de bairros, de ruas.

O romance acontece num meio geográfico e físico onde nada parece ter nome, mas que o autor(a) visualiza com precisão. Omitindo, sempre que pode, os nomes próprios, nem por isso ele faz a história mergulhar num limbo de indiferença cenográfica. O leitor sente a cidade sem precisar usar a citação fácil do simples nome. Nestes dois livros que citei, eu só notei a ausência dos nomes próprios lá pela página 50 ou 100, porque julgava estar vendo tudo. Claro. Tudo acontecia em ambientes que me eram familiares.

Era aquela proposta de Flaubert para Maupassant: “Você precisa ser capaz de descrever o físico e a psicologia de Fulano de Tal, garçon do bar que a gente frequenta, de tal modo que, apenas descrevendo-o, sem nomeá-lo, qualquer um da nossa turma possa exclamar de repente: Oxente, isso aí é Fulano!”

Perdição; é o nome da localização imaginária da tragédia meio grega de Marília Arnaud, um nome mais do que verossímil num Estado que tem cidades chamadas Solidão, Desterro, Misericórdia. A capital, onde o narrador vai estudar e construir família depois que vem do sertão, não recebe nome, mas é vista assim:

“De uma balaustrada na parte alta da cidade avistavam-se um rio e um porto desguarnecido de barcos, igrejas com seus cruzeiros quinhentistas ornados de gárgulas, o pátio interno de um mosteiro com seu jardim de fontes e bancos de pedra, uma lagoa cingida por palmeiras-imperiais que varriam um céu de nenhuma nuvem. Em algum lugar o mar me aguardava.”

Ninguém que conheça a velha Parahyba pode confundir isto com qualquer outra coisa. E quem não a conhece, não importa: é capaz de compor um cenário coerente com essas instruções verbais.

E é desse jeito que o que há de nordestino brota, com descrições da natureza feitas com a riquezas de nomes e espécies e tipos “da fauna e da flora”.  A profusão de imagens neste livro lembra alguns livros de Osman Lins, um prosador de registro elevado e com uma atenção barroca à Natureza; ou aquelas páginas catalográficas de Guimarães Rosa em Corpo de Baile.

Os nomes das coisas têm uma poesia em si. Uma página aberta rigorosamente ao acaso:

“Por todos os lados se viam mangueiras, bananeiras, canafístulas, jaqueiras, goiabeiras, angicos, oliveiras, paus-d’alhos, umbuzeiros, umburanas, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, um amontoado de folhagem ensopada de luz, um emaranhado de ramos, brotos e galhos, um esbanjamento de copas floridas, de inflorescências em cachos, espigas, umbelas, botões em ânsia de desabrocho, e nas encostas ondulavam ao vento as esponjinhas das caliandras, os talos das damas-da noite e dos cipós-de-leite, as pétalas das vassourinhas, chananas e velames, um delicado pasto de néctar e pólen à espera dos afagos das abelhas”.

São os trechos férteis do sertão, ou de qualquer lonjura remota da Paraíba.

Inácio, o narrador, afirma ter levado dez horas de viagem de Perdição até a capital, num ônibus pinga-pinga. E quando uma Natureza de nomes tão familiares é literariamente compactada e posta em movimento, com o passar da história a gente percebe o quanto tudo isso existe de fato, num lugar onde alguns só imaginam haver o ermo e a desolação.

Essa natureza áspera mas exuberante é trespassada pela tragédia humana das pessoas. Neste aspecto, temos por um lado a crônica terrível da tragédia do patriarcado rústico, situação que evoca Raduan Nassar, numa reiteração de fatalidades.

O peso moral do cristianismo, somado a um certo puritanismo que não consegue conviver com a exceção à regra. Um puritanismo tiranizado pelo homem e administrado pela mulher.

Religião é uma coisa que exerce um peso terrível sobre quem acredita nela. E acreditar nela sem ser capaz de ter sentimentos bons, como ocorre com tantos, deve ser pior ainda. Ou então quem acredita duvidando, porque nenhuma resposta encerra a questão, nenhuma promessa é totalmente cumprida.

Não exagero vendo certos traços da tragédia pessoal de Augusto dos Anjos na de Inácio, já que ele cita o poeta mais de uma vez. Sua história é uma reiteração do drama inicial de “A Árvore da Serra”: “Não mate a árvore, pai, para que eu viva.”  Vejo rastros do Eu também na letra inicial dos nomes de um grupo crucial de personagens, mas deve ser viagem minha.

Se o romance de Marília Arnaud pertence a algum gênero, não é um gênero definido por superficialidades paisagísticas, mas por um conflito muito mais primal e mais remoto. São, por exemplo, as histórias sobre O Confronto Final Com o Pai Terrível.  Certo tipo de pai parece tornar isso inevitável: o velho Karamázov, o velho Lear, o velho Kafka.

O romance tem algo de façanha ao conseguir sustentar um discurso tenso, poético, elevado, do começo ao fim, sem abrir mão do regional, mas um regional amplo, com muitas camadas de vocabulário e de elocução. Seu arcabouço é uma verbalização entrelaçada com esmero. A fazenda como Éden violentado, a cidade como cárcere e rotina, tudo isso se entretece numa narrativa ao estilo do reino do vai-e-volta, saltando para o presente, o passado remoto, o passado esquecido.

A tragédia que impulsionou a história (e para a qual a história se reencaminha o tempo inteiro, acompanhando o percurso de volta do narrador) é mais velha do que a Bíblia, não é nordestina nem outra coisa. É um atrator convulso, uma agonia que não dorme, e que faz um personagem como Inácio desperdiçar toda a vida que a cidade lhe oferece, porque restou aquele nó doloroso no passado que não permite que ele se concentre em coisa nenhuma.








segunda-feira, 5 de setembro de 2016

4155) O som ao redor do edifício (5.9.2016)




É inevitável comparar este filme, Aquarius (em cartaz pelo Brasil) com o anterior de Kleber Mendonça, O Som ao Redor. Existe continuidade temática, dramática, de linguagem, de muita coisa, entre os dois filmes.

São dois flashes da luta pelo território urbano de uma grande cidade, onde os senhores feudais de outros tempos não mandam mais em ninguém. Como sempre, só manda quem consegue se impor. O conflito imobiliário em nossas cidades não é menor que o conflito fundiário no campo.

O bairro é outro, mas a vizinhança é do mesmo tipo. O rapaz de moto que vende pó atrás do quiosque perto do edifício Aquarius lembra o neto de W. J. Solha, no outro filme, um playboy mimado que praticava pequenos furtos. Irandhir Santos fez um segurança e agora faz um salvavidas.

Há um paralelismo nessa presença discreta, mas contínua, de uma rede de pessoas secundárias, de vizinhanças, de compadrio, troca de favores, pequenos serviços, lealdades e amizades momentâneas. Aquele casulo de compromissos e de expectativas que mantém um morador em conexão com um lugar.

No Som..., um cara mal tratado por uma madame risca-lhe o carro com um prego quando ela se prepara para ir embora; em Aquarius, dois caras que ela reconhecia e tratava pelo nome surgem do nada e por lealdade colocam em sua mão uma pista.

A promiscuidade entre as classes sociais em Boa Viagem deve ser algo inimaginável para a família de Lord Grantham em Downton Abbey, mas certas leis da existência estão sempre valendo. “Dize-me quem te serve ou a quem serves, e eu te direi quem és.”

Todo mundo tem um papel social muito rígido para desempenhar. “You gotta serve somebody.” Clara e sua empregada Ladjane levam essa relação com leveza. Em certos momentos são apenas duas mulheres que se aproximam uma da outra, que precisam da presença da outra para encarar situações.

Você e um empregado (ou um amigo) podem ter quatrocentos anos de casa grande e de senzala, respectivamente, e saber que isso é diluível em tempo. O tempo até agora foi pouco. Patrões e criados nesses filmes de Kleber se confrontam, se relacionam, em tons diferentes, mas de modo sempre plausível. E todos se assemelham na busca constante de segurança territorial: o meu canto, o meu lugarzinho, o meu cafofo, o meu QG, o meu ponto-castañeda, o meu sanctum, o zero cartesiano do meu GPS.

Em O Som..., há uma cena arrepiante que ocorre à noite. Vemos do alto, por uma janela, um pátio interno, plantas, um muro. De repente um vulto humano, escuro, surge na sombra em cima do muro. Pula para dentro e corre a se esconder fora do ângulo de visão. Logo surge um segundo, diferente, mas fazendo a mesma coisa. E um terceiro, e um quarto, e assim surge do nada uma invasão silenciosa de vultos ariscos como ninjas.

Lembra o famoso episódio de Conan Doyle sobre o castelo de Villefranche, que hospeda alguns cavaleiros afamados e é sorrateiramente invadido à noite por camponeses amotinados e famintos (A Companhia Branca, 1891).

É o medo atávico de ver vultos obscuros invadindo nosso santuário na calada da noite. Os zumbis. Os vampiros. Os sem-teto. Os sem-escolha. Os sem-alma. Pode ser um arrastão noturno rebatando tudo, na mão-grande. Pode ser uma carta de intimação de uma construtora, com palavras como “nossa oferta final” ou algo que faça o mesmo efeito.

Visto por esse ângulo da expulsão do paraíso, o filme de Kleber é o contrário da passividade de "Casa Tomada” (1946), o conto famoso de Julio Cortázar, onde os remanescentes da família aceitam que a casa lhes está sendo tomada aos poucos, aposento por aposento, andar por andar, até que eles próprios vão embora e trancam por fora a porta da frente. Sabem, e não comentam, que o mundo não lhes pertence mais. Como o próprio Cortázar na época, admitindo que a Argentina não era mais sua e indo viver na França.

Mas o movimento de tomada do espaço urbano acontece sempre em mão dupla.

O filme de Kleber Mendonça capta o espírito do ano do movimento “Ocupa Estelita” no Recife e das ocupações de escolas secundaristas em São Paulo. É um choque historicamente inevitável diante da brutalidade das ocupações “gentrificadoras” do espaço urbano.

O coronel-patriarca-bíblico interpretado por W. J. Solha em O Som ao Redor pertence a uma linhagem de nobres que podem ser canavieiros, do gado, do algodão. (Hoje devem ser do mercado financeiro, fazendeiros do ar, que plantam zeros para colher percentagens.)

Foi talvez pensando na segurança financeira do futuro Coronel Francisco que em tempos remotos algum antepassado seu irrompeu, impudente e conquistador, na topografia urbana do Recife, comprando o que seriam depois quarteirões inteiros, com o destemor de quem nada à noite num mar assombrado por tubarões.

Coronéis como ele conquistaram suas terras sabe-se lá por que meios, mas certamente com muita ambição, e com bastante coragem. O coronelzão nunca teve medo de enfrentar o futuro. Os feitos dos coronéis e os malfeitos das construtoras estão guardados na poeira de um arquivo. E um belo dia um deles é pêgo como o flanco descoberto e tem prestar contas ao passado. Esse passado (dizia William Faulkner) que ainda não parou de passar.





domingo, 4 de setembro de 2016

4154) "Aquarius", o filme (4.9.2016)




(ilustração: Toinho Castro)


Um dos temas que correm ao longo do filme de Kleber Mendonça Filho é um confronto entre modo-de-ver analógico e modo-de-ver digital, a partir da entrevista inicial de Clara a duas jornalistas. Clara se dá bem com todos. Passa músicas em pendraive, coleciona vinis, publicou entre outras obras um livro sobre Villa-Lobos. Ela mostra a raridade de um vinil, que vem com um recorte de jornal dentro, uma matéria sobre John Lennon.

Tudo pode ser analógico ou digital, e por enquanto é perda de tempo inventar pretextos para abrir mão de um dos dois. Não precisa.

Você precisa de uma informação exata mas obscura. É 2016, e você vasculha um arquivo kafkeano de pastas de plástico e caixas de papelão. Ali deve ter uma nuvem de poeira e ácaros que se for espalhada dá pra cobrir o bairro. Mas o analógico tem a sobrevida do material em que é registrado, e está tudo lá. A informação é encontrada.

E noutra situação você precisa da leveza e instantaneidade do equipamento digital para filmar de improviso, em condições antagonísticas, para registrar o espanto, o choque, a fúria balbuciante de quem pisou numa armadilha pontiaguda da própria esperteza. Celular apontado ao vivo, quem sabe transmitindo direto não só para uma audiência, mas deixando uma cópia de tudo. Isso, só a imagem digital pode.

Somos (eu sou da geração de Clara) pessoas analógicas num mundo cada vez mais digital, mas não é isso que rejeitamos nesse mundo. Rejeitamos, quando é o caso, uma certa falta-de-passado que esse mundo tem, porque às vezes temos a impressão de que a foto digital, o selfie, o instagram, existe apenas para ser visto por alguns segundos, “curtido”, e esquecido para sempre.

O instante, o momento, a faísca do presente, tudo isto é sagrado, e aí estão o haikai, o repente e o I-Ching. Mas veja-se que todas essas girândolas em honra do presente foram feitos com a pólvora de muitas gerações, de tradições inteiras. Porque o instante só vale se houver, no instante em que o vemos, um passado todo, inteiro como uma pedra.

A família de Clara gosta de curtir imagens, de comentar fotos antigas, de puxar fios de gente enganchados na memória. A imagem puxando a história. Uma imagem parada põe uma história em movimento. Histórias da sua vida e outras. Momentos de reencontro e armistício entre as gerações. Pessoas que se gostam, mas que divergem, assoprando as brasas do afeto. Clara nem é um modelo de mãe nem uma desorientada. Ganhou um certo desdém pela vagarosidade mental alheia, mas deve ter sido mais pelas barras que passou do que por qualquer esnobismo de origem.

Clara vive bem, ali, e vive de rendas. Afirma ter outros imóveis, mas aquele é o lugar onde ela gosta de viver. A família, claro, é sempre a última que leva isso a sério. Qualquer grande agente imobiliário pode contar a meia-voz histórias de divisões de espólio que deixariam Agatha Christe ocupada por uns cem anos.

Clara não quer ser ameaçada, nem incomodada por surubas ao som de um pancadão. Ela se surpreende a saltar da cama no meio da noite e correr para trancar por dentro a porta da frente. Clara já sabe que cada fase da vida é uma guerra diferente, e o choque que a atinge em pleno peito é uma bomba de efeito moral. Ninguém quer destruí-la, apenas removê-la.  

O mundo onde eu mandava está sumindo pouco a pouco, pensa cada um deles ou delas. Mas dali ninguém os tira. E mesmo que a gente não veja a intelectual de Boa Viagem e os nobres de Downton Abbey com a hipotética simpatia com que vemos o sem-teto Adoniran Barbosa e seus comparsas, Mato Grosso e o Joca, não podemos negar que todos têm motivos mais do que concretos para fincar o pé naquele canto. Não faríamos o mesmo?!

Uma série formalmente conservadora e tradicional como Downton Abbey nem por isso deixa de mostrar com certo distanciamento e humor os comportamentos absurdos de nobres e de criados no tempo em que se vivia em conjunto a fantasia que podemos chamar de “a Persuasão Aristocrática”, a noção de que os nobres eram seres superiores e deviam ser tratados como pessoas infinitamente preciosas pois cada minuto de suas vidas era indescritivelmente importante.

O nobre verdadeiro perde o castelo mas não perde a nobreza. É um patrimônio histórico de grande beleza, mas por alguma razão está se esboroando.

O que une mesmo os personagens do filme de Kleber e da série de Julian Fellowes nem é a posse de uma edificação de pedras e argamassa, é a continuidade afetiva de um passado. O apartamento de Clara é uma reprodução em 3-D de cada momento vivido ali, com os parentes mais velhos que já se foram, a história dos amores, das trepadas, dos dramas, dos perigos, das canções, dos filhos criados, das mortes e das sobrevivências. Deixar aquela casa será como deixar aquele corpo. Ela sabe que um dia vai acontecer.

(continua)








sábado, 3 de setembro de 2016

4153) Daqui não saio, daqui ninguém me tira (3.9.2016)




Gosto de inventar gêneros cinematográficos novos. Você pega uma dúzia de filmes e cria uma frase que define o que eles têm em comum.

Quando chamamos um filme ou romance policial de whodunit, esse nome é uma frase: “Quem foi que fez [isto]?”. Não importa quem sejam os personagens, onde se passa a história, em que época. Se houver um crime e alguém empenhado em descobrir quem foi seu autor, é um whodunit.

A gente poderia, por exemplo, inventar um gênero chamado Escapei do Fim do Mundo, um gênero abrangente e bom de drama, que poderia incluir tanto E o Vento Levou quanto Moby Dick, dando-se ao termo “fim do mundo” uma certa amplitude metafórica. Uma fazenda, um navio, valem por mundo para alguém.

Ou um apartamento de frente para o mar, quase térreo, num prédio pequeno, sem elevador, anacronicamente encravado entre espigões futuristas com nome de artistas ou nome de santos. Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira poderia ser um dos gêneros a que pertence o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius, rodado no Recife, que ganhou prêmios importantes e acendeu polêmicas.

A ex-professora Clara (Sonia Braga) é pressionada por todos os lados, até pela família, a vender o último apartamento do prédio, que está sendo adquirido aos poucos por uma grande construtora. Ela não quer vender, não quer sair.

Por um flashback inicial vemos que passou por ali a história dela e de mais de uma geração de pessoas. Passado é passado, todo ele tem o mesmo peso. O Passado pode ser um móvel véi encostado numa parede igual a qualquer outra. Só a gente sabe o tesouro que existe ali.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Não lembro se a frase é pronunciada em Aquarius. Eu vejo nessa expressão menos um trecho de marcha de carnaval do-tempo-de-Adão-cadete do que uma frase-feita, de autor conhecido, mas incorporada ao linguajar coloquial do brasileiro. Tal como “eu era feliz e não sabia”.

Engraçado.  Aquarius e Downton Abbey (série britânica, na Netflix) são os dois primeiros exemplos que consigo pensar para o gênero do Daqui Não Saio...  Na série, a família Crawley, liderada pelo cavalheiríssimo Lord Grantham, passa por catástrofes mundiais sucessivas, e vê-se o tempo todo ameaçada de ter que desmembrar suas propriedades e perder sua Casa Grande. Trata-se de um espantoso castelo, que pertencia, na época retratada, ao Lord Carnavon que financiou a descoberta da tumba de Tutankâmon. Qualquer um de nós terçaria armas contra quem quisesse nos arrancar de uma vivenda assim. Que é nossa por direito adquirido.

O terceiro exemplo que me ocorre eu não vi no cinema, vi no show Semba de Antonio Nóbrega, no Sesc-Pinheiros em São Paulo, onde ele repassa um belo dum repertório sambístico. E ele canta o hino do Daqui Não Saio Daqui Ninguém Me Tira: “Se o senhor não tá lembrado, dá licença de eu contar: aqui onde agora está esse edifício alto era umas casa véia, um palacete assobradado...” E o enunciado do gênero, por mais heroico que seja, não cancela o fato de que as pessoas acabam saindo mesmo, acabam sendo tiradas mesmo, como foram em Pinheirinho (SP), na zona portuária carioca, no mundo afora. 

Os posseiros urbanos de Adoniran Barbosa vivem na mesma expectativa de Clara, no seu idílico Pina, porque quando menos se espera chegam os homens com as ferramentas “e o dono mandou derrubar’. Há um repertório de variadas pressões para tirar Clara de casa, umas desagradáveis, outras bizarras, outras repugnantes. E Clara finca pé e diz: agora é que eu não saio mesmo.

O espaço urbano é um campo de batalha a ser conquistado, defendido. Hoje a batalha é financeira, pós-geográfica, como dizia o cyberpunk Gibson. O filme aponta um conflito concentrado, minúsculo: uma pessoa irredutível diante de uma meta-transação onde muita gente tem algo significativo pra ganhar. E só não ganhou ainda porque a transação empacou, não avança. Por causa dela.  E as pessoas se irritam. Quem é ela para desdenhar uma coisa que a maioria deles não hesitaria diante de nada para obter?

(continua)





quinta-feira, 1 de setembro de 2016

4152) O Trazedor (1.9.2016)



(ilustração: Clarividência, René Magritte)


Minha escola de tradução foi aula vaga na faculdade, biblioteca, caderno, caneta e dicionário. (Isso se eu descontar minhas experiências adolescentes de tradução de letras de músicas, começando por Ray Charles e “Eu Não Posso Parar, Amando Você”).

Profissionalmente, comecei a traduzir por volta de 1986, por indicação de Julio Ludemir. Livrinhos de bolso, de banca-de-revista: histórias de amor, de faroeste. Alguns eram bem ruinzinhos. Outros tinham uma certa aventura, uma confiança narrativa que tornava suas fórmulas menos previsíveis. É bom começar a traduzir pelo material profano, barato, pedestriano mas bom de entretenimento. Muitos querem começar pelos autores que mais admiram, e dão com os burros nágua.

Assim, quando em 1987 recebi da Editora Récord um livro de L. Ron Hubbard, soltei dez foguetões comemorando o upgrade. Quando peguei um Isaac Asimov me senti os próprios deuses.

Traduzo por dinheiro, em primeiro lugar, e por amor à arte em segundo. (Acho que essa ordem está errada. Se o amor à arte desaparecesse eu não sei se faria, por dinheiro somente, uma coisa tão cansativa e tão consumidora de tempo.) Em todo caso, eu ainda acho quem me pague mais de 30 reais por lauda traduzida, e, como autor, meu sonho era encontrar quem me pagasse o mesmo por uma lauda escrita. Não existe. Se existisse, eu já teria publicado uns dez romances.

Isso me obriga a traduzir somente o que posso traduzir rápido: seria ótimo poder fazer 2 a 3 mil palavras por dia. Parei de traduzir livros durante anos, depois de 1994 porque me apareciam trabalhos que pagavam muito melhor. Fiquei traduzindo somente alguns contos das antologias que eu mesmo organizava. Mas era menos pela grana do que pelo gosto de “traduzir Fulano”.

E só voltei porque agora tem Google, tem tradutores online (mil), forums de discussão, o escambau. Hoje o ofício é bem mais aparelhado do que há 20 anos. E ainda assim a gente erra.

Quanto menos a gente relê e revisa mais a gente erra, e mesmo quando revisa mais, erra também.

Já vi editores reclamando ter recebido uma tradução onde nem corretor ortográfico foi passado, nem os erros de digitação foram corrigidos. E já entreguei originais assim, só para evitar uma desgraça maior. É arte, mas é profissão também, é “silviço”. Nem todo dia a gente acerta, e todo time grande tem uma tarde no Maracanã que é pra esquecer.

Cada um tem seu método, sua linha de montagem de-um-homem-só. Pense Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos. O arquivo final é enviado para a editora com a rubrica VALE ESTE e na mesma noite é enviado outro com a rubrica VALE ESTE 1.

Ninguém pense que depois de digitada a palavra FIM o trabalho acabou. O suposto fim é o fim da primeira volta no circuito. É o recomeço, o eterno retorno. Aquela frase problemática deixada para trás há quatro meses começa a reaparecer no horizonte.

Volto ao começo, e vou saltando ponto-a-ponto para resolver as dúvidas, uniformizar termos, escolher entre opções, fazer cair cada ficha.

O primeiro rascunho é um matagal de [dúvidas???], de [alternativa 1 / altern. 2 / alt. 3], que na primeira passada vão sendo deixadas para trás pra resolver depois, porque o importante no momento é não perder o ritmo.

Ritmo de prosa, principalmente prosa de ficção, romance de gêneros populares bem escritos, é muito difícil de readquirir depois, fazendo revisão salteada, um ponto aqui, outro ali. Ritmo, ou é na hora em que a frase está passando, ou nada.

Depois, volta-se ao começo. Guarda-se o livro original, e se revisa frase a frase o livro todo, considerado agora como um texto que vai falar só por si. É nessa fase que se dá o polimento final no ritmo e na melodia.

Ganha-se algum dinheiro. E alguma luz com isso.

Há alguns romances que prefiro não ler logo. Prefiro traduzir à medida que vou lendo, no ritmo da narrativa, traduzindo um parágrafo sem saber ainda o que há no parágrafo seguinte. Vou passando por cima das palavras que não entendo, nome de planta, nome de roupa, detalhe, deixo o original [entre colchetes] e sigo, para não perder o ritmo da narrativa. Resolvo na revisão.

Outros livros requerem leitura prévia, pra não se perder. No meu caso, ficção científica. A maioria dos textos de FC propõe universos novos, criaturas desconhecidas, termos técnicos inventados pelo autor, uma enciclopédia inteira de informações que não adianta buscar no Google, porque só tem naquela obra.

A maior parte dos neologismos de FC, quando o autor é atento, se resolvem na terceira incidência. O autor sabe que aquela palavra não existe, a gente não sabe o que é o verbo “grokkar”. Na sequência da história esses termos se auto-explicam. Mas é preciso ler na frente. Em geral, pelo menos um capítulo inteiro adiante, para poder fazer uma idéia geral de que mundo é aquele.

Em textos assim, o tradutor tem que ser o batedor de si mesmo, ir na frente analisando o terreno e voltando para informar o grosso da tropa. (O grosso da tropa é ele mesmo também.)

Traduzir é escrever. Traduzir é trazer. O tradutor é um escritor sem licença para inventar.







segunda-feira, 29 de agosto de 2016

4151) A arte de reescrever o passado (29.8.2016)



São dois temas bem antigões, que parecem não ter muito a ver um com o outro, mas têm:

1) A possibilidade tecnológica de fazer uma pessoa desaparecer de um documento, de uma lista, de um arquivo, de uma foto, de mil registros ao vivo em televisão.

2) A escolha entre uma decisão rigidamente técnica (baseada em provas concretas) e outra decisão que é jogo-de-cinturalmente política (baseada em opiniões). A distância entre uma cultura onde tudo fica registrado, o preto no branco, o cinzel na pedra, a tinta no papel, e uma cultura sem documentos, oral, maleável, baseada apenas na memória e no testemunho do momento.

Diz um personagem de Ted Chiang, em “The Truth of Fact, the Truth of Feeling” (2013):
Antes de adotar o uso da escrita, uma cultura tem os seus conhecimentos transmitidos exclusivamente de forma oral, e pode facilmente revisar sua própria história. Isto não é proposital, mas é inevitável: pelo mundo inteiro os bardos e os griots vêm adaptando seu material poético às platéias para quem cantam, e assim vão gradualmente ajustando o passado às necessidades do presente.

Essa é a idéia geral por trás da noção de que a História é escrita e ensinada pelos vencedores, de que são os vencedores que contam a sua versão dos fatos. “História” neste caso inclui até mesmo as epopéias, rapsódias, ou que nome tenham as obras de grande porte contando um episódio glorioso do passado.

O melhor relato de uma batalha tanto pode ser de um escritor do lado vencedor quanto de um escritor dos vencidos; e ambos serem igualmente grandes e necessários. E, mais uma vez, não há determinismo prévio nessas escolhas. Os Sertões de Euclides da Cunha foi uma obra encomendada pelos vencedores mas que acabou celebrizando o heroísmo dos vencidos.

De novo Ted Chiang:
A idéia de que relatos do passado não podem ser modificados é um produto da reverência que as culturas alfabetizadas têm com relação à palavra escrita. Os antropólogos nos dirão que as culturas orais entendem o passado de maneira diferente: para elas, suas histórias precisam menos de ser factualmente exatas do que de validar o entendimento que a comunidade tem sobre si mesma. Desse modo, não seria correto afimar que suas histórias não merecem confiança; suas histórias fazem o que eles precisam que elas façam.

Em 1984 de George Orwell temos uma das primeiras obras mais consistentes, na literatura distópica, na tentativa de imaginar como seria uma língua do totalitarismo. Orwell chegou a criar alguns termos que são usados hoje em qualquer contexto, como Novilíngua (Newspeak) etc. Sua visão do futuro, apesar de muito pessoal, parece uma tentativa de sintetizar precursores variados como Metropolis (1926) de Fritz Lang, Nós (1921) de Yevgeni Zamyátin, sem falar nas ditaduras judiciárias de Kafka (O Processo (1925), Na Colônia Penal (1919) etc).

No livro de Orwell o protagonista, Winston Smith, passa dias inteiros reescrevendo notícias da imprensa dando uma versão diferente de cada fato do passado, no mesmo número de linhas, para que novas páginas do jornal sejam reimpressas.

Nas fotos clássicas dos politburos stalinistas, um trio de líderes vira um quarteto, ou o contrário. A parede nem se altera. Na política, pelo mundo afora, uma chapa eleita numa entidade qualquer manda eliminar um indesejável dos arquivos, da fototeca, de tudo. De pincéis habilidosos a manipuladores digitais, hoje (a partir de hoje) é possível fabricar do nada uma prova incontestável de alguma coisa.

No mundo do Grande Irmão existe (tendo como combustível emocional o uso de jargão, de rituais de ódio coletivo a poder de slogans) a reescritura constante do Passado. Nas casas, nas escolas e no trabalho a mensagem é uma só. E se alguém tivesse motivação suficiente para recorrer a arquivos e bibliotecas, só encontraria confirmações variadas da versão oficial.

José Saramago brincou um pouco com essa noção de interferência em coisas já acontecidas com seu personagem historiador em História do Cerco de Lisboa (1989), que insere um não antes da narração de um fato num livro e muda a História. Tal como os viajantes no Tempo de Isaac Asimov em O Fim da Eternidade (1955), eternamente saltando de século em século para preservar a linha temporal para a qual trabalham, impedindo que o passado, sempre instável, possa lhes fugir ao controle.

Esses crono-agentes têm às vezes a missão de voltar a um século qualquer para entrar num avião, abrir o compartimento de bagagem em cima de uma poltrona, e empurrar uma pasta para  longe do alcance de alguém. Quando a pessoa procurar a pasta ali, não a encontrará, e vai imaginar que já a guardou em segurança. Com isto, inverte-se o resultado de uma importante reunião.

O minimalismo dessa coreografia (viajar séculos para empurrar um objeto quarenta centímetros para além de onde estava) confirma uma porção de teorias do Tempo que concordam todas com o chamado efeito “som de trovão”, devido ao conto de Ray Bradbury: a morte de uma borboleta pode reverter o resultado de uma eleição presidencial.

Um dos aspectos da guerra pelo Poder é a guerra pela narrativa da guerra. A guerra pelo futuro Saber, pelo futuro da informação. Na frase famosa de Orwell: “Aquele que controla o passado controla o futuro. E aquele que controla o presente controla o passado”.

Essa guerra ganhou agora uma dimensão maior no contexto vídeo-digital-eletrônico: um contexto fluido, impalpável, imaterial, muito parecido ao das culturas orais pré-alfabeto, pré-escrita. 

O tempo agora é de registros pós-papel, pós-Gutenberg, pós-documento com firma reconhecida.

Todo grupo centralizador, autoritário, quando se apossa do Poder dá início a uma completa desconstrução do Passado e reconstrução para confirmar sua narrativa das coisas.

Essa batalha nunca será dada como “ganha e perdida”, para usar a frase da bruxa do Macbeth. Essa batalha existirá enquanto existirem política humana, linguagem humana e memória humana.









quinta-feira, 25 de agosto de 2016

4150) Geneton (25.8.2016)



Um mês  atrás compartilhei no Facebook um pedido de doação de sangue para o jornalista Geneton Moraes Neto, que estava hospitalizado. Acendi a luz amarela de alerta, mas não houve novidade nos dias seguintes e acabei esquecendo. Não tínhamos contato direto (mais por culpa minha, que hoje sou um anacoreta com direito a redes sociais). Eu o via por acaso – fosse num corredor da Globo (nas vezes em que trabalhei lá), num lançamento de livro, ou algo assim. Nosso último papo tinha sido antes da sessão de lançamento do filme Brincante de Walter Carvalho e Antonio Nóbrega, aqui no Rio.

Geneton, como tantos de nós, era um Mágico de Oz comandado de dentro por um cineclubista. No caso dele, um cara moreno, barbudo e enfezado, que fazia uns filmes despirocantes no Recife, no meio de uma turma que incluía Jomard Muniz de Britto, Paulo Cunha, Amin Stepple – este último de Campina Grande, amigo meu de geração, que me apresentou aos demais. Quando Amin e Geneton surgiam caminhando lado a lado na calçada me lembravam Dom Quixote e Sancho Pança, um longilíneo e encurvado, o outro atarracado e hirsuto.

O superoitista virou jornalista. Acompanhei muitas das grandes entrevistas que ele fez para a TV Globo, e ver Geneton entrevistar era um pouco como ver alguém montar num boi brabo. Ao vê-lo formular certas perguntas a um ex-presidente ou a um general, minhas mãos se cobriam de suor frio. Eram perguntas que eu tinha vontade de fazer, mas morreria e não faria mesmo que por trás de mim, me bancando, estivessem não apenas a Rede Globo, mas o Pentágono, a KGB e os duzentos jagunços de Augusto Santa Cruz.

Perguntar é a arma do repórter (o que GMN foi na medula, ao fim e ao cabo; o que se orgulhava de ser), mas uma arma de alto risco, cuja bala pode inclusive inverter a direção depois de disparada. O entrevistado pode até ter um acesso apoplético (como o general Newton Cruz esteve a ponto de ter diante das câmeras) e não responder. Mas a pergunta pressupõe que existe uma resposta, que existe a questão; que existe, na multidão silenciosa que o repórter representa, a necessidade de ficar sabendo.

E não me refiro às perguntas sensacionalistas dos escândalos miúdos, das pegadinhas onde são feitas perguntas infantilóides, canalhamente indiscretas, perguntas que não passam de fofocas ou maledicências encomendadas.

São perguntas como (me deem licença para um exemplo provinciano) o jornalista Chico Maria fazia no seu programa “Confidencial” da TV Borborema de Campina Grande, olhando nos olhos do ex-prefeito Plínio Lemos e perguntando: “Por que o senhor mandou matar o vereador Félix Araújo?”, ou para Luís Carlos Prestes, e dizer: “Por que o senhor apertou a mão de Getúlio Vargas, que entregou sua esposa Olga Benário aos nazistas?”. (Ver aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/06/1123-confidencial-20102006.html).

É a pergunta feita de pessoa para pessoa – o respondedor carregando consigo o peso do passado, e o perguntador trazendo o peso do presente. A pergunta (agora num exemplo em escala nacional) da escola de Joel Silveira, mestre de Geneton, repórter batedor de perna na calçada, questionador, atrabiliário, pavio curto, cuja frase era uma guilhotina.

E, curiosamente, no trato pessoal Geneton desmentia a imagem de enfezado que passava num primeiro contato, porque era meio retraído e sempre afável, discreto como um verdadeiro cineclubista, um “prestador de atenção” na expressão de Jessier Quirino. Tinha o humor escarninho do recifense, mas nunca se alterava.  Entrevistando, era incisivo sem ser hostil, mesmo quando a gente sabia que ele não gostava do entrevistado.

O lado cinéfilo era o outro prato da balança que o fazia escapar das tentações do “furo de reportagem” como valor absoluto. O amor à Arte equilibrava nele o amor à Verdade. Feliz de quem (principalmente quem tem talento e/ou poder) consegue equilibrar Arte e Verdade, essas duas coisas aparentemente próximas, e na prática incomensuravelmente distantes, e em última análise apenas duas faces de uma coisa maior que ninguém enxerga.

Dos trabalhos de Geneton nos últimos anos vi apenas seu documentário sobre o tropicalismo, Canções do Exílio (comentei aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2011/02/2481-labareda-que-lambeu-tudo.html), e sua longa entrevista com Geraldo Vandré (aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/10/2364-entrevista-de-vandre-4102010.html).

Pesco aqui um trecho de um longo post de Sérgio Rodrigues no Facebook, citando Geneton: “Não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado.“ Vale para a literatura, vale para tudo.