segunda-feira, 12 de outubro de 2015

3943) Vila Nova (13.10.2015)



O ano era 1976, e o Treze tinha um ataque que incluía João Paulo, Soares e Gil Baiano. Que outra coisa importante aconteceu no Brasil ou no mundo nesse ano? Eu, por mim, respirava futebol, cinema e cantoria de viola, em doses equivalentes e maciças. Ano de Congresso dos Violeiros, de muitas cantorias em bairros remotos de Campina, de muita conversa em torno de verso e em torno de livro. 

Foi por volta dessa época que Ivanildo Vila Nova me visitou no apartamento onde eu morava, perto da Rodoviária velha. Ele estava chegando de uma viagem à Bahia, e perguntou se eu conhecia um cantor chamado Elomar Figueira de Melo. Falei que não, e ele cantarolou trechos de “lá na casa do Carneiros / onde os violeiros / vão cantar louvando você...” e do “já que tu vai lá pra feira / traga de lá para mim...”  Foi a primeira vez que escutei os versos do Bardo de Conquista. E Ivanildo completou: “Não tem palavras que descreva esse homem, o jeito verdadeiro dele. E quando pega o violão e canta as coisas dele, então... É um apocalíptico”. Isso colou e virou um parâmetro. Tempos depois, quando mostrei a Ivanildo a versão acústica, original, de Bob Dylan cantando “It’s alright, Ma”, ele apontou na mesma hora e disse: “Apocalíptico também.”

Como se diria numa saudação oriental: “O poeta remoto e antediluviano que escuta em mim reconhece, saúda e homenageia o poeta antediluviano e remoto que fala através de ti.”  A poesia, cantada ou escrita, tem a sorte de parecer com a música. Pra quem quiser buscar a complexidade o céu é o limite, mas ao mesmo tempo tem uma área acessível à simples aplicação da técnica. É relativamente fácil fazer um bom verso. O que não é fácil é produzir versos de qualidade consistente, não importam as fases da inspiração e as marés da profissão, ao longo de muito tempo.

Ivanildo Vila Nova está fazendo 70 anos. Tem mais que o dobro do que tinha quando o conheci. Tem havido homenagens não somente ao grande repentista que é, mas também ao líder combativo, sem papas na língua, reivindicador, que trabalhou muito para que tanto a sociedade quanto o cantador vissem com olhos melhores o próprio cantador. Amigo exigente com todos e consigo mesmo. E o verso, como se sabe, uma navalha.

Naquele dia em que cantarolou Elomar, Ivanildo disse: “Esse livro é pra você. Me deram na viagem, eu achei muito maluco e concluí que o destinatário ideal era você.”  E pôs na minha mão a primeira edição do “Catatau” de Paulo Leminski, a mesma que conservo ainda hoje, quase aos pedaços mas completa. Portanto, se tantas outras coisas eu não devesse ao meu mestre Ivanildo eu já deveria Leminski e Elomar, pra começo de conversa.



sábado, 10 de outubro de 2015

3942) Frankenstein pirateado (11.10.2015)




(ilustração: Bleu Turrell)


Um dos pontos de discórdia irremediável entre a Religião e a Ciência é a questão da criação. A religião afirma que Deus é o responsável por tudo que se cria no mundo, e a ciência afirma que o homem não somente pode, como também deve criar coisas novas. 

A religião quer manter sua jurisdição sobre tudo que acontece, inclusive sobre as escrituras sagradas. Para os cristãos, a Bíblia não foi escrita pelos escribas, profetas e evangelistas, e sim pelo Espírito Santo. Para os muçulmanos, o Corão não é um objeto, é um dos atributos de Deus, assim como a sua onisciência e sua misericórdia.

Quando no romance de Mary Shelley o doutor Frankenstein criou a vida em laboratório, estava incorrendo no maior dos sacrilégios, o de assumir para si um direito que era apenas de Deus. 

Somente Deus podia criar a vida; ao criá-la, Frankenstein estava pirateando a criação “na garagem de casa”, gerando um produto para o qual a Divindade tinha monopólio de fabricação.

Há um texto de Martinès de Pasqually (1727-1774) que toca nessa questão, em seu Tratado da Reintegração. Diz ele: 

“Para procriar a sua semelhança corporal, tu não tens recurso a outros princípios senão aqueles das essências espirituosas que te são inerentes; e se quiseres, por iniciativa tua, empregar princípios opostos a tua substância de ação e de operação espiritual divina e temporal, disto não resultará a reprodução, ou, se isto acontecer, ela terá ocorrido sem participação divina, e será colocada entre as fileiras dos brutos; será mesmo considerada como um ser sobrenatural, e causará repugnância a todos os habitantes da natureza temporal.”

De acordo com esta ótica, a monstruosidade da criação de Frankenstein não reside no corpo bizarro, mas na ausência de alma, pois não foi criado pela Divindade. 

É curioso que esse debate se dê nos mesmos termos com que hoje em dia discutimos propriedade industrial, pirataria, etc.  O monstro de Frankenstein é um produto sem alma, ou seja, sem o código-de-barras ou o ISBN ou o selo-do-IPI ou qualquer outra formalidade atestando que aquele produto foi feito por quem tem a autorização exclusiva de fabricação.

Frankenstein retrata a Revolução Industrial e a ascensão dos estados laicos, onde não cabe mais à igreja determinar o que pode ou não ser feito. Seu clima tenebroso e pessimista tem a ver com os medos de uma época ainda tateando os limites do sacrilégio e da própria liberdade. 

O monstro de Frankenstein é o precursor do uísque fabricado na banheira durante a Lei Seca, do livro impresso e vendido sem autorização da editora, do CD ou DVD da gravadora ripado dentro de casa, da bolsa Vuitton comprada na Rua da Carioca.



sexta-feira, 9 de outubro de 2015

3941) O assalto na van (10.10.2015)



Na barreira policial deu logo problema. Todo mundo estava com a papelada em dia, o carro estava regularizado, mas o equipamento de gravação macro exigia um documento que não tínhamos. Viraram-se todos para mim, mas eu disse: “Vocês me deram a lista do que era para providenciar, e eu providenciei. Ninguém me pediu para trazer isso aí.”  Eu tinha pedido que não me botassem nem como tesoureiro nem como “roadie” do grupo, quanto ao mais toparia até ser o janitor. Me botaram como o burocrata tecno.

Por fim fomos conferenciar, voltamos com os bolsos mais leves e a cancela se abriu. Pegamos o primeiro trecho, a via costeira que ia dar nos primeiros subúrbios de Vequiné. Ciço Fotógrafo disse que tudo que tinha trazido estava no seguro. A parte de iluminação, lâmpadas, rebatedores, e tudo o mais, a gente tinha pegado emprestados. Essa parte não estava.

Adiante, uma policial, num sotaque quase ininteligível, disse com abundância de gestos que parássemos para a revista. Descemos todos, acendemos um aliviante, ela fumou também, mexeram em tudo e não acharam nada. Ela nos preveniu que ali perto da fronteira estava havendo assaltos. Grupos de homens entravam como passageiros nas vans públicas, como se não se conhecessem, e a certa altura do trajeto rendiam todo mundo. Ela falou que às vezes bastava a uma van quase cheia dar carona a um jovem e inofensivo casal para ir parar no meio do mato.

Não foi um casal que pediu carona, foram dois homens, o mais velho e de chapéu mole tratando o outro como se fossem parentes, o outro carrancudo e iracundo, sem dizer uma palavra. Iam pegar um voo, a carona com que contavam tinham falhado, estavam ali há horas. Perguntei pela bagagem, disseram que estavam só com as mochilas, era um passeio.

Sentaram junto de Anselmo do som, que em minutos extraiu a ficha de cada um. Poderiam ser pai e filho, mas na verdade eram irmãos a longa distância, com uma geração inteira a separá-los. Sócios numa pequena firma de engenharia. O velho era rico e sovina, o jovem era indolente e perdulário. Olhamos mas não pareciam estar armados. Não reagiram quando puxamos as nossas armas. Não disseram nada quando os levamos para o mato. Pareciam não estar acreditando, pareciam já ter se resignado a perder o voo mas se desinteressado de todo o resto. O velho trazia metais preciosos e neutros nas vestes, trançados ao algodão. O terno dele devia valer uma fortuna. O outro não sabia de nada, e ao ouvir nosso técnico explicar tudo seus olhos pareceram saltar das órbitas. Fizemos um curta usando os dois, ensacamos os corpos, jogamos no mangue e o terno rendeu duas semanas de férias para a equipe.



quinta-feira, 8 de outubro de 2015

3940) "Você vem muito aqui?" (9.10.2015)



(Cranach: Adão e Eva)

Deve ser o mais antigo começo de cantada registrado pela História. Eu imagino o Jardim do Éden, a árvore do Bem e do Mal e à sua sombra Eva encostada no tronco, olhando a paisagem, enrolando o cabelo no dedinho. Adão se aproxima, cheio de pose, com aquele andar de urubu baleado, uma lata de cerveja na mão, encosta junto dela e manda: “Oi!... Você vem muito aqui?...” e ela: “Não... Primeira vez.”

Todo mundo, homem ou mulher, precisa puxar conversa com uma pessoa interessante de quem se aproxima numa boate, bar, etc. A garota é bonitinha, tem um jeito esperto, parece animada e a fim de entabular conversa. Alguma frase tem que ser a primeira. Podemos comentar a animação da pista de dança, o clip do telão, a temperatura da lata de cerveja... Não importa o quê: alguma coisa tem que ser dita.

O impagável Zé Trindade das antigas chanchadas recomendava: “O negócio é perguntar pela Maria! Todo mundo conhece uma Maria.” De fato, basta isto para engatar um diálogo. Se a garota estiver mesmo a fim de papo com você ela aceita até que você pergunte por Wislawa Szymborska. Mas não adianta: a primeira coisa que vem à mente é o mais confortável dos clichês masculinos. Encostamos na parede ao lado dela, desfechamos o olhar 43 e o sorriso 57 e perguntamos: “Você vem muito aqui?”

Até Bob Dylan reconheceu esse arquétipo, em sua canção que diz: “What’s a sweetheart like you doing in a dump like this?”.  Mas existem pulsões inconscientes por trás desta fórmula mágica. Às vezes o cara vem na boate de vez em quando e nunca a viu lá. Se ela disser, p. ex., que é de fora da cidade, isso já altera o delineamento estratégico de ação. Se ela disser que vai ali toda semana, idem, só que ao invés de comentar o local para ela, basta pedir que ela o comente para ele, o resto é consequência.

Ele pode também estar pensando se nas vindas futuras ao local vai encontrá-la de novo ou se aquela será sua única chance. Pode estar (ele) indo ali pela primeira vez, e quer ser ciceroneado por uma frequentadora experiente (“aquela porta ali dá prum jardinzinho tranquilo, menos barulhento...”). Estas alternativas se superpõem e se misturam na cabeça dele ao fazer a pergunta, e tudo vai depender da resposta dela. Numa enquete informal com amigos, registrei duas respostas mortais. Na primeira a garota olhou o infeliz de cima a baixo e disse: “Venho toda noite, sou a mulher do dono.”  Outra deu uma gargalhada e mandou: “Ultimamente eles estão me barrando na porta, mas hoje eu pulei o muro”. É, amigos, a caçada noturna é cheia de ameaças, e não se sabe de onde vem o maior perigo, se dos outros caçadores à solta ou da própria caça.




quarta-feira, 7 de outubro de 2015

3939) O Duplo (8.10.2015)



(o ator Richard Mansfield como "Jekyll e Hyde")

O duplo é uma figura familiar a quem se interessa pela narrativa fantástica. Ele é chamado de “double”, de “Doppelganger”; é o reflexo no espelho, é o Outro... O conceito é rico, e por isso mesmo acaba acumulando variantes, nem todas com o mesmo DNA ou seguindo a mesma lógica. Nem todo conjunto de dois personagens muito próximos ou muito parecidos tem a mesma dinâmica, a mesma hierarquia de relacionamento. São dois. Mas são dois que obedecem a diferentes sintaxes de dramaturgia (não sei se o termo é absurdo, mas vá lá). O retrato de Dorian Gray é um duplo dele, mas em circunstâncias muito diferentes, por exemplo, do modo como a imagem do Estudante de Praga, também um “Duplo”, que sai do espelho para cometer crimes em nome dele.

Na noveleta famosa de R. L. Stevenson, a relação entre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde não exprime o conceito do “duplo” no sentido de uma “aparente duplicação de um indivíduo, com variados graus de semelhança”. É uma relação de Criador e Criatura (que aliás não existe nos exemplos acima). O dr. Jekyll cria cientificamente o seu opositor. Sua narrativa tem o DNA da história do Dr. Frankenstein e o monstro que ele faz surgir em seu laboratório.

O erro mais frequente nas interpretações desse livro é opor um Jekyll bom a um Hyde mau. Ouve-se às vezes por aí algo na linha de “Fulano de Tal exibe a bondade e a pureza de um dr. Jekyll, mas dentro dele se esconde um Mr. Hyde.”  Bondade e pureza não se aplicariam nem a Jekyll nem a Victor Frankenstein. Talvez arrogância, hubris, descaso com precauções. No caso de Stevenson, ele indica Hyde como um inimigo de Jekyll, mas parece sugerir que ele é uma droga, um vício secreto com que o doutor se diverte mas quando menos espera tudo está a ponto de se tornar público.

O médico ilibado e o sadista de rua não são reflexos ou réplicas um do outro no sentido em que o são, p. ex., os sósias e xarás do conto “William Wilson” de Edgar Poe. Aí, sim, existe um espelhamento distorcido. Cada um é espelho do outro, com diferenças essenciais. A leitura moralista diria que um era a má consciência do outro. Mais interessante é notar que dois sósias, de nome igual, estudando no mesmo colégio têm que se autodestruir, como duas partículas subatômicas contrárias.

A ficção científica pegou esse conceito do Duplo e propôs o Múltiplo. E daí pôs em movimento caravanas de clones, de vítimas de duplicadores moleculares, de viajantes no Tempo arrastados num remanso onde acabam se chocando com versões alternativas de si mesmos. O William Wilson justiceiro podia ser uma versão eu-sou-você-amanhã do WW “frívolo peralta”.  Cada Duplo se rege por leis diferentes.



terça-feira, 6 de outubro de 2015

3938) Espontaneidade aparente (7.10.2015)




(o datiloscrito de On the Road

Uma vez perguntaram ao contista Luiz Vilela se a naturalidade dos diálogos em seus livros vinha de um gravador ligado embaixo das mesas de bar. Ele explicou que parecer espontâneo dá muito trabalho. O bom escritor deve ter ótima memória, por certo, mas não é só isso. Deve saber recriar o modo como as pessoas falam (e não me refiro a regionalismos ou gírias): diálogos entrecortados que voltam atrás, que deixam frases incompletas, que se repetem... E por cima dessa base que poderíamos chamar de jornalística ou documental o autor projeta os efeitos propriamente literários, os subentendidos, os equívocos, a tensão e as emoções dos falantes, as elipses.

Quem já tenha precisado transcrever entrevistas gravadas acaba percebendo o quanto o nosso discurso oral é acidentado, cheio de falsos começos, de lacunas, de coisas ditas pela metade porque são completadas por um gesto, uma expressão facial, um simples olhar.  A imprensa reconhece isto, e hoje em dia usa-se muito a inserção de ressalvas tipo “risos”, “longa pausa”, “com veemência”, etc. para dar conta desse lado visual da oralidade, que as palavras nunca cobrem por inteiro.

Tudo isso é um retrabalhamento do que no ponto de partida era espontâneo, mas tosco. O espontâneo-mesmo geralmente é fraturado, semi-coerente, porque em geral as pessoas estão improvisando, ou estão tensas, com pressa, esquecidas, etc.  A frase a que chamamos de “espontânea” é geralmente coloquial, tem bom ritmo, cai bem no ouvido, parece verdadeira (porque corresponde a um ideal subconsciente nosso a respeito de como uma frase deveria ser). Isso é resultado de muito corte e costura, mesmo que no fim, como no caso de Luiz Vilela e de tantos outros, o tecido resultante pareça liso, como a “túnica inconsútil” de Jesus.

Já vi na Web fotos do imenso rolo de papel onde Jack Kerouac datilografou a primeiríssima versão de On the Road.  Há edições desse texto original, pré-revisão, edição voltada justamente para mostrar a gênese e as variantes do texto clássico. Aposto sem ver que este é mais espontâneo e mais incoerente do que o texto definitivo. Toda (tudo bem, nem toda) espontaneidade em arte é na verdade uma imitação polida, refinada. Num certo sentido, as frases límpidas de Vilela talvez deem tanto trabalho quanto as frases coruscantes de Guimarães Rosa, só que as duas vão em direções opostas. Do mesmo modo, é possível achar que para Rosa aquela fala que ele está inventando, mesmo com tanto esforço físico e psíquico, tinha a espontaneidade desabrida de quem se envolve, delira, vibra e se diverte quando sente que descobriu a relação ideal entre emoção e mente, cavalo e cavaleiro.




segunda-feira, 5 de outubro de 2015

3937) Dicionário Aldebarã XI (6.10.2015)




(ilustração: "Orchestre de Mystère", Alexander Jansson)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Umbriown”: a irresistível sonolência que se apodera de uma pessoa quando está tentando sem sucesso fazer uma criança dormir. 

“Hairátis”: trepadeiras com folhas minúsculas de colorações variadas, que são induzidas a crescer em volta de janelas ou colunas, formando desenhos tradicionais que devem ser seguidos à risca. 

“Anústios”: os pequenos e contidos sinais de interesse recíproco que duas pessoas se endereçam, num contexto social em que essa atração não pode ser claramente expressa. 

“Fessiun”: nuvem de onde cai chuva forte, vista à distância no horizonte. 

“Veniur”: setor do departamento de recolha do lixo onde são recuperados e arquivados todos os documentos, cartas, manuscritos, etc. encontrados no lixo das cidades, e que ficam à disposição para serem resgatados em caso de arrependimento.

“Farguile”: a sensação difusa de expectativa que experimentamos diante de uma carta que acaba de chegar, um toque na campainha, um pacote trazido por alguém. 

“Barléns”: pedaços intactos de paredes que, nas demolições de casas, são preservados porque neles foi gravada uma imagem, ou foi pichada uma frase considerada importante. 

“Seppini”: alçapões no piso dos aposentos dando diretamente para caixotes de lixo no porão, para facilitar a limpeza da casa. 

“Dorreon”: fatias de frutas impregnadas de um molho azedo especial, muito apreciadas como tiragosto para acompanhar certos tipos de vinho.

“Antissas”: lâminas de metal imantadas, compridas, retangulares, que se costuma enfiar nas frestas e embaixo dos móveis para atrair e recolher moedas perdidas. 

“Glissenso”: o encontro casual entre duas pessoas num momento em que cada uma tinha certeza absoluta de que a outra estava num lugar completamente diferente. 

“Heriunds”: tabuletas para escrita, pregadas junto à porta das residências, para que as visitas deixem recados quando não encontram ninguém em casa. 

“Cavel”: o último bar ou restaurante que se encontra aberto durante a madrugada, quando tudo indicava que isto seria impossível. 

“Darnilan”: interjeições formadas por sílabas sem sentido, pronunciadas em ambientes ou ocasiões onde seria ofensivo dizer algo mais forte.  

“Margnim”: superstição segundo a qual, em certas circunstâncias astronômicas, tudo que começa mal acaba bem, e tudo que começa bem acaba mal.





sábado, 3 de outubro de 2015

3936) De sapato não sobra (4.10.2015)




(O Bandido da Luz Vermelha)


Não foram poucos os sertanistas, nos antigos tempos das “entradas e bandeiras”, que se largaram descalços para desbravar os cerrados, as florestas e os sertões. 

Botas eram artigo de luxo, e sapatos eram para ser usados na cidade, em ocasiões sociais. 

Sérgio Buarque cita documentos dizendo que eles “a pé e descalços marchavam por terras, montes e vales, trezentas e quatrocentas léguas, como se passeassem nas ruas de Madri”.  Sapato era para os fracos.

“Quem [es]tiver de sapato não sobra!” é o berro reiterativo do anão no Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968). 

Ele quer dizer que quando soar a trombeta do Apocalipse, ou o apito liberando o Arrastão, vai para o paredão quem usar esses sapatos protetores dos pezinhos de quem nunca pegou no pesado. O Armagedon será seletivo. Figurino vai ter peso na lei da sobrevivência.

O Brasil cresceu descalço. Os caminhantes traziam as botas às costas, pendentes de uma vara, e só as calçavam ao entrar na cidade, depois de lavar os pés. Daí a existência de tantos pontos de entrada com nome de “Lavapés” ou semelhante. 

Esse hábito condicionou até (segundo Sérgio Buarque, Caminhos e Fronteiras, 1957) a fabricação de estribos de metal, que eram feitos de molde a encaixar os dedos dos pés do cavaleiro ou cavaleira.

Em Isaías Caminha (1909) Lima Barreto conta as manifestações que incendiaram o Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina em 1904. Para efeito ficcional, ele a transformou no romance na Revolta do Calçado: 

“Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita.” (Cap. X). 

Mais adiante (cap. XII) um jornalista comenta: 

“As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde... Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor!”.

Lembro do velho cinema poeira do bairro popular de Zé Pinheiro, o Cine Arte. Nos anos 1960 o Cineclube de Campina Grande (leia-se Luís Custódio) tentou implantar ali uma sessão de Cinema de Arte, pois o cinema só passava filmes de Maciste e Golias. 

Exibimos O Picolino, musical com Fred Astaire. Na entrada do cinema lia-se numa placa enorme: “Proibido Entrar Descalço”.  Quando temos dúvida sobre a classe social a que pertence um brasileiro, ainda é costume baixar os olhos para os seus pés.



sexta-feira, 2 de outubro de 2015

3935) A última imagem (3.10.2015)




Existe um certo fetiche fotográfico de possuir (ou ter clicado) “as últimas fotos de Fulano de Tal” ou “a única foto conhecida de tal ou tal coisa”. Durante algum tempo a imprensa mostrou a última foto de John Lennon, autografando um disco para o fã que o mataria horas depois. Não sei se foi confirmada a autoria de outra, esta mais terrível, e se legítima provavelmente é a última: uma foto que vi na Manchete ou Fatos & Fotos, o corpo nu do Beatle na pedra do necrotério, o cabelo caído de lado, o perfil visível. Lennon foi um dos sujeitos mais fotografados do seu tempo. Até na pedra.

Não me ocorre agora o nome do fotógrafo que fez a única foto em que John Kennedy e Marilyn Monroe aparecem juntos. Esta foto em preto e branco foi capa de um livro brasileiro recente. Parece um conto de Edward D. Hoch: o presidente-casanova baixa a ordem de que ele e a sereia vulcânica de Hollywood não podem ser vistos nem fotografados juntos. Isso vira uma “missão impossível”, espicaça o orgulho dos fotógrafos; e um cara esperto consegue o flagrante.

As duas fotos conhecidas de Robert Johnson são duas raridades, e acho que não se sabe quem foram seus autores. Há pouco tempo houve uma celeuma interminável pelo possível aparecimento de uma hipotética terceira foto, mas parece que se mostrou ser um rebate falso.

Por foto rara não me refiro a fotos célebres que passam por “flagrante miraculoso de um momento de ação intensa e dramática”, como os soldados soviéticos encenando o hasteamento da bandeira da foice e do martelo nas ruínas do Reichstag, que, um dia depois, foi refeito para poder ser registrado pela câmera. A foto tem valor? Claro, mas não por ser um flagrante, tem valor porque faz parte de uma encenação maior, onde a foto é somente o McGuffin de todo o resto. A grande foto rara deveria ser, idealmente, uma foto casual feita por um anônimo, e não por um artista famoso ou um paparazzo que está no Guiness.

Pensei em Kennedy agora. Eu estava jogando bola no Alto Branco quando o rádio bradou que ele morreu. O crime mais mal-contado do século 20 foi filmado e fotografado por todos os ângulos, naquele incipiente começo dos anos 1960, onde tudo era caro e a cada foto batida a gente sentia o bolso ficar mais leve. E mesmo assim havia gente clicando tudo, bem ou mal esse material virou o que restou da História.

Nunca se fotografou tanto, chega parece que uma Inteligência Artificial mandou todo mundo fornecer e circular a maior quantidade de informação possível a respeito de si mesmos. Para que as futuras réplicas fiquem bem feitas, e cheguem até a pensar que são reais, tal como nós.



3934) A Vida e os Tempos de Nenê Cabe Tudo (2.10.2015)



(foto: Johan Strindberg)

Cap. 1 – De como Nenê Cabe-Tudo ganhou esse nome (pois fora batizado Ediclécio Nogueira Mendes) por causa da kombi-furgão que ele usava para fazer mudanças todo dia, o dia todo, sempre nos limites do bairro de Santa Rosa, desde que um cálculo de logística e de combustível o convenceu a dar prioridade a um grande número de viagens curtas.

Cap. 2 – De como no dia que nos compete Nenê estava entregando um carregamento de isopores na Várzea Preta, na rua da birosca de Antõe Diomede, lá no fim, num galpão de carga e descarga do lado de lá da igreja do Grão Senhor.

Cap. 3 – De como esses isopores não eram as caixas vazias que ele visualizou quanto o seu contato fez a proposta por telefone, mas a voz foi falando logo em valores, e ele achou que por aquele preço levaria os isopores mesmo que estivessem carregados de lingotes de ouro, o que não era certamente o caso, era algo lacrado e mais leve.

Cap. 4 – De como seguiram-se, em rápida sucessão, um frete tranquilo num fim da tarde preparando o terreno para um merecido lanche regado a cerva, um veículo desgovernado acertando-o onde ele menos esperava, isopores felizmente intactos espalhando-se em volta da kombi virada, o desembarque de alguns policiais perplexos logo sucedidos por uma equipe de caras com roupas comuns mas que pareciam voar todos pelas mesmas coordenadas, e uma sala de interrogatório.

Cap. 5 – De como Nenê não teve remédio senão entregar alguns clientes, tanto os donos do galpão quanto os remetentes das caixas, o que lamentou muito, mas vão-se os anéis ficam os dedos, e antes que a investigação acabasse ele já tinha aceitado uma proposta para fazer um curso de inglês em Durban, numa mistura de bolsa de estudos e delação premiada. 

Cap. 6 – De como em Durban pairou com força sobre Nenê uma nuvem depressiva, lúgubre, prejudicando-lhe até a saúde, e da qual ele só se livrou tornando-se empresário de um grupo de dezoito coristas de folias parisienses de pernas nuas, casou com uma, teve xamego com meia dúzia, associou-se a uma frota de navios de cruzeiro, ficou milionário, e finalmente solteiro de novo.

Cap. 7 – De como Nenê entrou para um mosteiro no fim daquele inverno, o primeiro dos cinco que passaria ali, em silêncio quase absoluto, numa vida de intensa imersão em si próprio, repassando tudo, principalmente os erros, mas os acertos também, embora isso seja apenas conjetura ociosa, pois ao sair do mosteiro, e desde então, ele nada comentou com ninguém.

Cap. 8 – De como ele tirou a barba, voltou a crescer o cabelo, comprou a Antõe Diomede uma casinha no Santa Rosa, financiou a compra de uma van e olha ele aí de novo.