quinta-feira, 16 de abril de 2015

3790) Eduardo Galeano (17.4.2015)



A morte de um grande escritor, como a de qualquer pessoa muito conhecida, enche a imprensa de maledicências e benedicências. Sempre tem alguém que aproveita o silêncio definitivo do outro para chamá-lo de imbecil ou de santo. Eduardo Galeano foi um grande escritor que, por ser de esquerda, jamais será lido pela metade da humanidade cuja religião política lhe assevera que o esquerdismo é tão contagioso quando o homossexualismo ou o alcoolismo: basta chegar perto daquilo e o “caba” já está contaminado pro resto da vida.

Alguns obituários destacam o fato de que Galeano teria “renegado” seu livro mais famoso, As Veias Abertas da América Latina (1971), talvez a maior denúncia da exploração do nosso continente pelos variados colonialismos. Galeano publicou esse livro extraordinário aos 31 anos, embebido daquele entusiasmo salvacionista que nos ajuda a enfrentar as desilusões da juventude. Queixou-se, depois de velho, da prosa tediosa, dos seus poucos conhecimentos de economia política na época. Seu livro cede com frequência ao “melodrama da vitimização”, recurso retórico que a esquerda usa há um milhão de anos. Mas não importa. É o calidoscópio dos milhares de fatos surreais e cruéis que torna o livro um monumento de quase-ficção, como Os Sertões ou Casa Grande & Senzala.

Talvez pela consciência dos seus excessos de entusiasmo, Galeano nunca parou de evoluir. Textos como Vagamundo (1973) e A Canção de Nossa Gente (1975), que li na mesma época, são literariamente brilhantes, muito superiores às Veias Abertas, enquanto que o massacre político, econômico e cultural do continente foi retomado, com mais maturidade, na enorme pesquisa histórica que resultou na trilogia Memória do Fogo (Os nascimentos, 1982; Os rostos e as máscaras, 1984; O século do vento, 1986). 

Borges disse que um escritor é sempre julgado pelo seu credo político, e por isto todo mundo via em Kipling o romancista do imperialismo britânico, e não um dos maiores escritores de seu tempo. Galeano produziu uma obra vasta que acabei perdendo de vista; o último que li foi As Palavras Andantes, ilustrado pelas xilogravuras do nosso J. Borges. Seus escritos sobre futebol têm uma paixão e uma lucidez que sempre invejei; logo o futebol, cuja força gravitacional, tal como a da política, parece empurrar todo mundo na direção da fúria alucinada. A paixão em Galeano (paixão amorosa, paixão política, paixão literária, paixão futebolística) foi, para usar a velha metáfora, um corcel ágil e impetuoso, sempre mantido sob controle por um cavaleiro que sabia para onde estava indo: para o horizonte da utopia.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

3789) Crítico ou resenhador (16.4.2015)



(o crítico John Clute)

Antonio Cândido já elogiou com admiração o resenhador de livros, o crítico do varejo semanal, que escreve sobre o que vem parar em cima da sua mesa na redação. Dizia ele: “Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud.” 

Deve ser mais cômodo trabalhar com os clássicos, ou com textos em domínio público, do que com autores de carne e osso, cheios de opiniões, mas a questão nem é essa. A crítica e a teoria se desvalorizam quando passam longe da literatura. A crônica jornalística impõe a quem a escreve o contato com o inesperado. Escrever sobre um dado que gira e que não se definiu ainda, e que às vezes cabe a nós traçar o seu primeiro perfil.

O crítico John Clute diz: “Acho que a tentativa de captar e definir o que existe de ‘historiável’ em um texto novo, que é o que se espera dos resenhadores, é absolutamente inerente a qualquer compreensão de um texto qualquer. E acho que a crítica acadêmica, que tende a abstrair, em proporções industriais, temas a partir dos textos (numa espécie de mineração), tende a tropeçar logo na primeira barreira: a tarefa de descrever como um conto se livra contando do seu fardo. Porque se você não conseguir transmitir essa parte essencial, esse ‘como’, você só pode discutir em cima de uma generalização fatalmente vazia, desgarrada.” 

Alguns ficcionistas produzem textos críticos muito lúcidos e demonstram conhecer o gênero com que trabalham. Stephen King, Lovecraft, Henry James etc têm inclusive talento para a descrição sintética, resumindo em poucas linhas o sentido ou o impacto de um livro. Autores comentando livros alheios costumam ter uma abordagem mais pragmática, indo direto ao ponto, falando não como autores, mas como leitores.

Dizem que Pauline Kael, a grande crítica de cinema novaiorquina, escrevia aqueles seus comentários agudos e personalistas tendo visto o filme apenas uma vez. Via hoje, escrevia amanhã; os artigos estão preservados nos seus livros. O crítico vive, como diz Clute, como o canário na mina de carvão das coisas novas.  Para acusar de imediato qualquer mudança nas condições normais de temperatura e pressão, ou qualquer outro indicador que faça o ponteiro do novo pular.




terça-feira, 14 de abril de 2015

3788) 10 terapias (15.4.2015)



(ilustração: Igor Morski)


Matilde Varandello, 34 anos, estilista, de Londrina: recorta e prega em álbuns tamanho grande as matérias e as fotos que mais gosta a respeito de suas cantoras preferidas, cuja última listagem alinhou 73 nomes.

Argeu Valadares, 43 anos, comerciante, baiano: pega a vara e vai pescar.  Com isca ou sem isca, não se abala e vai pescar. Tenha ou não tenha peixe, tenha ou não tenha mar, daqui a um milhão de anos a Humanidade já se extinguiu mas Argeu Valadares vai pescar. (E a Humanidade que se extinga.)

Jamima Durães, 32 anos, psicóloga, São Paulo, dialoga com os bancos de metrô. Reproduziu as plantas baixas dos trens, deu um nome a cada vagão e a cada banco, e, quando senta em qualquer um deles profere uma prece ligada àquele banco específico.

Mário Alenquer Fortunato, 58 anos, contabilista, Rio. Sabe de cor um disco inteiro de uma cantora americana, arranjos, letras, tudo, e qualquer problema que desabe sobre ele o obriga a cantar o disco faixa por faixa, a plenos pulmões quando em casa, em voz bem baixinha quando nos cubículos do escritório.

Hermán Montero, 56 anos, jornalista aposentado venezuelano. Recorta palavras aleatórias das manchetes dos jornais e monta com elas poemas surrealistas em forma de notícias bizarras.

Paulo César Costa Carvalho, 43 anos, representante de vendas, Junco do Seridó. Onde quer que haja um intervalo, puxa do bolso do paletó uma revistinha com problemas de Sudoku, que ele resolve e depois não consegue lembrar como resolveu, de tão distraído que fica.

Vanilda Borges Lima, 44 anos, professora, capixaba, costuma ter uns apertos no peito contra os quais reage preparando um chá de camomila de três saquinhos para meia chaleira dágua, depois polvilhar com canela e uma gotinha de mel, é tomar três e capotar até a chegada da diarista.

Nelson Barbosa Olivetto, 61 anos, fotógrafo aposentado, todas as vezes que está numa fila muito longa dedica-se a lembrar a letra de “Construção” de Chico Buarque, e depois a repete mentalmente de trás para diante.

Léia Donato Filgueiras de Sousa, 27 anos, está construindo um palácio da memória, embora não lhe dê este nome; e lembra com nitidez cada coisa que botou em cada recanto ou parede de cada aposento da casa que ela imaginou para si.

D. Salvina, 81 anos, dona de casa, Santa Luzia. Às vezes quando passa a noite inteira sem sono levanta sem acordar o velho, vai para a cozinha, traz uma cadeira pra junto da pia, abre a torneira só um pouquinho para poder ouvir cada uma das gotas que tombam tinindo no fundo oblíquo de uma panela emborcada, e é assim que o velho a encontra com o sol já alto, ela por fim dormindo em paz.




segunda-feira, 13 de abril de 2015

3787) Best-sellers (14.4.2015)



Poucos termos do mercado editorial são usados de maneira tão frouxa quanto este. “Best seller” significa, ao pé da letra, “o que vende melhor”. É uma indicação puramente numérica, quantitativa, que diz respeito a quantos exemplares um livro vendeu durante um certo período. “Best seller” não é sinônimo de livro de auto ajuda, nem de thriller de ação, nem de história apimentada sobre a vida sexual de gente rica, nem de romance de fantasia heróica.  Qualquer um desses pode eventualmente aparecer nas listas de best-sellers, mas ser de algum desses gêneros não é garantia de que o livro vai vender. (Muita gente acha que quem vende é o gênero, aí produz um livro meia-bomba, num gênero que conhece mal, achando que o gênero vai vender o livro sozinho. Se vendesse todo mundo era rico.)

Nenhuma editora e nenhum autor sabem o que faz um livro vender muitos exemplares; se soubessem, usariam essa fórmula o tempo inteiro, com o mesmo efeito que tem a macumba do campeonato baiano. Todos acham que sabem, aplicam a fórmula, geralmente dão com os burros nágua, e na semana que vem tentam de novo. O mercado editorial cria seus sucessos na base da tentativa-e-erro, e é bom que seja assim. No dia em que conseguiram produzir uma fórmula pra valer, acabou-se a literatura.

Acho fantasia pura essas listas de best-sellers que aparecem nas revistas e nos jornais. Nem preciso aventar hipóteses de jabá e payola, para dizer que aquele título está vendendo muito, e mediante isto fazer as vendas decolarem. (Na música, tem todos aqueles prêmios que são entregues a quem vende mais numa série de faixas de mercado. Com o passar do tempo, os brindes deixam de ser um prêmio pelo bom desempenho e tornam-se uma maneira de chamar a atenção sobre o artista e puxar as vendas até alcançar o número necessário.)

E fiquei por aqui, remexendo na memória e pensando em best-sellers antigos. Posso estar enganado num ou noutro título, mas, pelo que me lembro, todos estes livros apareceram durante algumas semanas seguidas nos primeiros lugares das listas brasileiras de best-sellers. Pode-se não gostar deste ou daquele, mas ninguém dirá que são livros “picaretas”, voltados ao consumo fácil. Entre os best-sellers que recordo terem vendido muito no Brasil, estão A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera, Dicionário Khazar de Milorad Pavic, A Vida Modo de Usar de Georges Perec, O Nome da Rosa de Umberto Eco, A Grande Arte de Rubem Fonseca, Galvez, Imperador do Acre de Márcio Souza, Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, Poesia de Paulo Leminski...  Todos são best-sellers; todos, em algum momento, venderam muito, para muitos leitores.




domingo, 12 de abril de 2015

3786) O fim do livro (12.4.2015)



Toda essa luta para evitar o fim do livro não vai adiantar muita coisa se as livrarias florescerem e se multiplicarem vendendo apenas o tipo de livro que a gente encontra nas livrarias de aeroporto.  Os best-sellers inevitáveis do ano, as biografias de celebridades, os livros de conselhos para vendedores, livros para administradores de empresa, livros religiosos, livros de cozinha, de viagens... Não é impossível imaginar uma Distopia onde o livro vá de vento em popa e a literatura esteja extinta. Na verdade, há motivos para supor que é isto o que está em processo de criação, nas estratégias empresariais, em mais países do que me atrevo a imaginar.

Criou-se uma falsa oposição entre, digamos, O Cão dos Baskervilles de papel e O Cão dos Baskervilles eletrônico, quando na verdade deveríamos ser gratos por termos pelo menos duas formas totalmente diferentes de registro para preservar o texto de O Cão dos Baskervilles, que ao fim e ao cabo é o que realmente importa. Os suportes tecnológicos acabam sempre sendo superados por algo mais novo. O texto literário é alegria pra sempre.

A luta pelo livro é importante por tudo quanto o livro de papel representa de prático (portabilidade, autonomia, etc.) e simbólico, em nossa cultura. De nada vai nos adiantar, contudo, focar a luta apenas no livro, como se o fato de as pessoas passarem a comprar mais livros de papel fosse resolver o problema. Comprar que livros, cara pálida? Como Parecer Menos Rico e Viver em Paz? Os Onze Conselhos do Vendedor Bem SucedidoAs Memórias de Kim Kardashian?  Ou obras de literatura? A literatura é mais importante do que o livro. E basta ver como ela tem pouco espaço em nossos cadernos culturais, geralmente voltados para a psicanálise, a história, as ciências sociais, etc.  A literatura (o romance, o conto, a poesia) acaba sendo, ironicamente, a prima pobre das publicações literárias.

Em momentos de especulações mais “dark”, nada nos impede inclusive de imaginar que aquela Distopia antiliterária citada acima seja o produto, construído a longo prazo mas de efeito relativamente rápido, de um lento processo de empobrecimento compulsório da imaginação e da linguagem, de tal sorte que os últimos escritores descerão para a tumba e livros novos continuarão a aparecer, não se sabe como. A essa altura alguém terá produzido o texto que escreve a si mesmo, o programa que se autoinventa à medida que avança. Os livros serão escritos por uma Antártida de logaritmos, capazes de reproduzir, imitar ou recombinar qualquer estilo a que sua franquia tenha acesso no contrato. Os livros se autoescreverão, e o homem será somente leitor.



sexta-feira, 10 de abril de 2015

3785) "A Hora do Lobo" (11.4.2015)



Estou coordenando, para o cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Amanhã, após a sessão, haverá debate comigo e com o prof. Sérgio Almeida.)

A Hora do Lobo (“Vargtimmen”, 1968) deve ter sido o primeiro filme de Bergman que eu assisti. Me marcou mais do que seus numerosos filmes sobre crises amorosas (Cenas de um Casamento, A Hora do Amor, A Paixão de Ana, etc.)  O diretor sueco pode ser considerado um diretor de filmes conjugais, mas para mim é um diretor de filmes fantásticos, ou de clima fantástico, mesmo quando não acontece nada literalmente impossível. O Rosto (“Ansiktet”, 1958) mostra um grupo de artistas ambulantes que realizam números mediúnicos e de magia. O Sétimo Selo (1957) é o famoso filme do cavaleiro medieval que joga xadrez com a Morte. Morangos Silvestres (1957) não é propriamente fantástico mas sua maneira de justapor um personagem no presente vendo uma cena do seu passado criou um estilo único de quebra temporal.

O fantástico em A Hora do Lobo tem algo de gótico, de fatalista. Neste filme, um artista (Max von Sydow) atormentado por visões ameaçadoras resolve se afastar do mundo e vai viver com a mulher (Liv Ullmann) numa ilha pouco habitada, imaginando com isto se livrar dos fantasmas que o perseguem. A convivência com as outras pessoas da ilha acaba fazendo recrudescer suas alucinações, que a esposa, solidariamente, começa a compartilhar. A aridez da ilha deserta, na fotografia em preto-e-branco de Sven Nykvist, ganha a aparência daqueles pesadelos superficialmente realistas, onde apenas os fatos são bizarros, mas as imagens são de uma nitidez dolorosa.

Neste filme há uma cena memorável pela maneira como faz sentir a passagem do tempo. Max von Sydow, durante uma madrugada de insônia, pega o relógio e começa a marcar a passagem de um minuto.  Nunca cronometrei, mas acredito que se passe de fato um minuto, tornado concreto, sensível. E li que Bergman teria feito uma referência a uma cena de Bande à Part de Godard (1964), em que os personagens se propõem a fazer um minuto de silêncio, mas interrompem-se antes disso. Os Beatles contaram um minuto inteiro, com um desenho por segundo (e indo até o “sixty-four”) no Submarino Amarelo de George Dunning (1968).  Há muitas maneiras de fazer caber em um minuto histórias inteiras, pequenas epifanias, tragédias de bolso.  Quem sabe o personagem de Bergman sente um certo alívio quando se passa um minuto e nada acontece.




quinta-feira, 9 de abril de 2015

3784) Dupla identidade (10.4.2015)



Oscar Wilde, o rei do paradoxo, dizia: “Se quiser conhecer a verdadeira personalidade de alguém, dê-lhe uma máscara”. Faz sentido. Quando estamos mostrando nossa própria cara, estamos mostrando uma imagem presa a convenções e regras sociais, familiares, morais, etc.  

Cada um de nós é um personagem na convivência social com família, amigos, colegas de trabalho. Sabemos que qualquer passo em falso vai manchar a reputação dessa pessoa que somos, desse papel que é o único que temos. Nosso rosto e nossa imagem pública são esculpidas pelo Superego, pelas exigências que nos massacram de cima para baixo e de fora para dentro.

Quando botamos a máscara, a coisa muda de figura. No carnaval, machões se vestem de mulher, homens pacatos empunham armas de brinquedo e promovem massacres fictícios, mulheres recatadas viram odaliscas se oferecendo (de mentirinha) a qualquer um. 

Botam pra fora o que de fato são (ou uma parte importante e reprimida do que são) e vivem o alívio de uma fantasia permissiva e consolatória.

Freud comentou que a literatura popular, com seus heróis indestrutíveis e sempre triunfantes, é “a literatura do Ego”, destinada a celebrar e gratificar essa imagem idealizada de nós mesmos. Quando colocamos uma máscara, essa máscara vira “o Eu que gostaríamos de ser”; quando criamos um herói, acontece o mesmo. 

Histórias de heróis com dupla identidade são um clichê da literatura popular: Superman, Batman, o Zorro, o Sombra, o Homem Aranha e incontáveis outros têm uma identidade pública, pacata, civil, e uma identidade secreta e famosa, o herói que a cidade inteira teme e reverencia sem saber que se trata daquele mesmo indivíduo banal que todos cumprimentam sem saber que dentro dele se esconde o herói.

A saga do Super-Homem pode muito bem ser vista como um delírio de Clark Kent: um repórter desajeitado, grandalhão, de óculos, tímido, incapaz de arranjar uma namorada. 

Por um processo de compensação, Kent começou, a certa altura da vida, a desenvolver uma fantasia de que era na verdade um extraterrestre dotado de superpoderes. Todas aquelas aventuras são imaginárias, são um processo de autoindenização psicológica onde ele cura as feridas produzidas pelo trabalho e sabe-se lá pelo que mais. 

Na sua rotina de redação, Clark Kent embarca waltermittyanamente em devaneios e delírios onde salva vezes sem conta a cidade de Metrópolis e o planeta Terra. O Super-Homem é a máscara que ele usa para “ser ele mesmo”, ser o que ele de fato gostaria de ser. A máscara é o que o Eu gostaria de ver no espelho, mas precisa de uma máscara para isso.  Ninguém contou ainda a verdadeira história de Clark Kent.








3783) Conrad Veidt (9.4.2015)



Ele foi um dos atores mais característicos do Expressionismo Alemão dos anos 1920-30, com seu rosto longo, feições salientes, olhar magnético. O crítico David Thomson o descreveu como “o mais sensível e mais romanticamente belo dos atores expressionistas alemães”, e elogiou sua capacidade de encarnar na tela “o esteta ou artista atormentado por forças obscuras e levado à violência”.  Seu primeiro grande papel foi o do sonâmbulo Cesare em O Gabinete do dr. Caligari (1919) de Robert Wiene: o homem alto, pálido, vestido de preto, que adormecido cruza os telhados levando nos braços a mocinha desmaiada. Cesare virou o modelo de inúmeros outros heróis “dark” do filme de terror, e muitos Dráculas, Frankensteins e Múmias guardam elementos de sua aparência ou de seus movimentos sonambúlicos. Críticos como Kracauer e Eisner viram nele uma alegoria do povo alemão, inconsciente de si mesmo, teleguiado pelo poder da mente de um gênio do Mal.

Em 1926 ele fez o protagonista de O Estudante de Praga de Henrik Galeen, o mesmo Estudante que Vendeu a Alma ao Diabo do folheto de João Martins de Athayde. Outro papel marcante foi o de O Homem que Ri (Paul Leni, 1927), baseado em um romance homônimo de Victor Hugo (1869), onde Veidt faz o nobre francês cujo rosto é desfigurado por uma ordem vingativa do rei. O personagem, com o rosto retalhado e recosturado num esgar que parece uma risada, é considerado a primeira inspiração para o Coringa, adversário de Batman, interpretado depois no cinema por Jack Nicholson, Heath Ledger e outros.

Veidt ainda faria um personagem com ramificações memoráveis no cinema: o grão-vizir Jafar em O Ladrão de Baghdad (1940) de Michael Powell e Alexander Korda. Com bigodes orientais e um fulgor malévolo nos olhos, o seu Jafar serviu de inspiração para o vilão homônimo do desenho Aladim da Disney.  Sua última aparição importante na tela foi como o oficial nazista que inferniza a vida de Rick Blaine em Casablanca (1942) de Michael Curtiz.

Anti-nazista a vida inteira, Veidt tinha um contrato em Hollywood estabelecendo que só faria papéis de alemães se o personagem fosse um vilão. Seu rosto era como o de Greta Garbo: tinha uma expressão que nada revelava do que lhe ia por dentro, mas que aceitava qualquer projeção subjetiva de platéia. Nunca chegou à fama de Vincent Price, Peter Lorre ou Christopher Lee, mas foi uma presença marcante da história do cinema de terror.  Tornou-se a matriz de vilões tão diferenciados que muitas pessoas assistiram Caligari, O Homem Que Ri, Thief of Baghdad, Casablanca, etc., e nunca perceberam que se tratava do mesmo ator por trás daqueles papéis.



terça-feira, 7 de abril de 2015

3782) Definhamento (8.4.2015)



“Thinning” (“definhamento”) é o termo usado pelo crítico John Clute para exprimir o que ele considera um conceito essencial de grande parte da literatura de Fantasia. 

Para Clute (numa argumentação muito mais esmiuçada e cheia de fractais do que sou capaz de reproduzir aqui) a estrutura da história de fantasia básica é a existência de um estado inicial de equilíbrio, depois uma crise que pode ser de definhamento ou de outra vicissitude, e por fim uma arrancada final e uma redenção, mesmo que a um preço alto. 

No caso do horror, é um definhamento sem ruptura, uma queda sem volta nas mãos de forças que podem tudo. O horror é uma fantasia sem luz no fim do túnel.

Na Encyclopedia of Fantasy, Clute diz que muitas fantasias são “fábulas de recuperação”, ou de “restauração”.  O definhamento surge naquelas histórias dos reinos onde não chove mais, onde a rainha não pode ter filhos, onde o rei perdeu a força e a razão, onde algo precioso foi tomado de forma brutal, onde uma maldição recente ou milenar faz a terra regredir a diferentes tipos de entropia, etc.  

A entropia aqui é por minha conta, porque nada impede que uma história de fantasia também ilustre um processo científicamente explicável; não deixa de ser fantasia por isto.  Muitas histórias de fantasia mostram um reino enfraquecido à espera da chegada (ou do retorno) de um herói, ou de um visitante de fora que traga um sopro de energia a um povo que perdeu a vitalidade.

O definhamento não pode ser devido apenas a derrotas militares ou confrontos mal sucedidos com potestades cósmicas.  Pode ser o envelhecimento natural de uma terra, de um povo, que começa a se ver cada vez menos no mundo que criou. A perda dos poderes mágicos de uma civilização pagã, que lentamente dá lugar a uma visão-do-mundo dominante. Os gregos, os romanos, os árabes, a Europa ocidental, todos tiveram seu momento. 

Clute cita como exemplos de “thinning” a exaustão final dos poços de magia em The Farthest Shore de Ursula LeGuin (1972) e o retorno de Frodo a um Condado que não é mais o mesmo no final de O Senhor dos Anéis. (Aqui o verbete sobre “Thinning”: http://tinyurl.com/pq78ukq).

Nem toda fantasia tem que apresentar alguma forma de definhamento, imagino eu, é apenas algo muito típico, tal como a “jornada do herói” tão citada pelos roteiristas.  É uma história possível e uma estrutura mítica profunda. Elementos dramatúrgicos que correspondem a algum modo de sentir ou de devanear que não tem lugar nem época. Podem não ser ingredientes “sine qua non”, mas aparecem com tal frequência e peso que somos obrigados a levá-los em conta quando tentamos entender o espírito do gênero.





segunda-feira, 6 de abril de 2015

3781) "Guardiões da Galáxia" (7.4.2015)



Advertência necessária: gosto de quadrinhos mas não distingo sequer entre a Marvel e a DC Comics, que no mundo das HQs são como a Microsoft e a Apple. 

Não presto atenção às guerras editoriais e corporativas, e quando ouço as palavras “Batman”, “Superman”, “Homem Aranha”, o que me vem à mente não é a fisionomia atual do herói, é uma compostagem de tudo que li e vi sobre eles nos últimos cinquenta anos.

Guardiões da Galáxia (2014) de James Gunn é um filme que resulta disso, de uma compostagem de tipos e situações conhecidos, rearranjados como os pedregulhos de um calidoscópio, de forma a produzir uma falsa impressão de ordem. 

A ficção científica é nesse universo apenas um eco distante, uma espécie de ruído de fundo. O cinema de heróis é um almoxarifado cenográfico onde se vão buscar personagens já prontos, dos quais basta trocar o nome, o ator e a roupa, e aí estão de novo Han Solo e Chewbacca e Indiana Jones e Hulk e outros, sem necessidade de pagar direitos. 

É um filme de ação interplanetária para o público infanto-juvenil – qualquer filme que tenha um guaxinim-falante pilotando uma espaçonave é infanto-juvenil, e ponto final. Sua relação com a FC é a mesma de certas histórias de Carl Barks estreladas pelo Pato Donald e seus sobrinhos.

Assistir esses filmes de ação ininterrupta (que eu, pelo menos, assisto com prazer) é como assistir as “Videocassetadas do Faustão”: ficamos olhando porque a fórmula nos garante que de dez em dez segundos alguma coisa movimentada vai acontecer. Essa promessa é cumprida em Guardiões da Galáxia, que é uma mistura de gincana, trem-fantasma, desfile no sambódromo, Keystone Cops e (como se tornou obrigatório na FC pós-George Lucas) duelos de aviõezinhos da I Guerra Mundial.

Entender a história não é possível, nem necessário, porque todas essas histórias giram em torno de um objeto fácil de reconhecer (neste caso “o Orbe”, uma esfera de metal com propriedades borgianas) que pode ser tomado, furtado, escondido, roubado, prestidigitado de mil maneiras. (Queria ver um filme desses cujo McGuffin fosse do tamanho de uma pirâmide.) 

É sempre arriscado emitir opiniões desdenhosas sobre franquias que têm fãs, porque todo fã é um talibãzinho em defesa dos produtos que adquire. Na verdade não sou fã de ninguém, sou fã das mitologias do nosso tempo, que botam no bolso as mitologias gregas ou nórdicas, pelo menos nos quesitos som, fúria e valores-de-produção. Assim como os gregos criaram o Monte Olimpo à sua imagem e semelhança, criamos nós Gotham City, Metropolis e essas galáxias tão parecidas com o mundo corporativo, manipulativo, cruel e bem assalariado que as imaginou.