sábado, 13 de dezembro de 2014

3683) A mensagem do morto (13.12.2014)



Defendo a teoria de que todo subgênero literário corresponde a uma necessidade profunda da psique humana. Livros sobre crimes decifrados e criminosos entregues à polícia confirmam nossos propósitos justiceiros, por mais superfaturados que sejam.  Livros sobre viagens espaciais exploram nossa curiosidade e nosso senso de aventura.  Livros sobre homens e mulheres vestidos de couro que fazem sexo usando algemas e outros adereços correspondem às fixações eróticas de um certo número de homens e mulheres. E la nave va.

Há um subgênero do policial que, se não foi inventado por Ellery Queen, coube a este transformá-lo numa pequena proeza de engenhosidade.  São as histórias de mensagens de moribundos.  Digamos que houve um crime numa mansão.  A polícia chama Ellery Queen (que é filho de um inspetor de polícia de Nova York) pra dar uma olhada.  O sujeito foi envenenado ou apunhalado, mas demorou alguns minutos para morrer, ainda lúcido. Ele queria dizer quem o matou.  Mas se escrevesse “FULANO ME MATOU”, corria o risco do Fulano voltar à cena do crime e destruir a mensagem.  O que faz ele?  Improvisa, em seus últimos estertores, uma mensagem cifrada cujo sentido o assassino, mesmo que veja, não perceberá de imediato que o denuncia, e deixará passar, pois está com pressa.  A vítima tem a esperança de que a polícia, com mais tempo e calma para matutar naquilo, descubra a solução, perceba quem foi a pessoa denunciada em código.

Ellery Queen explorou isso em inúmeros romances e contos. São letras aleatórias rabiscadas num papel. Uma página específica de um livro, arrancada no último instante.  Um objeto que a vítima claramente se arrastou para alcançar e segurar, indicando algo. Um gesto desesperado com os dedos da mão. “O que ele quis dizer com isto, Mr. Queen?”, é a pergunta, e Ellery começa a fazer todas as associações de idéias possíveis entre a mensagem misteriosa e as pessoas suspeitas.

Um dos encantos da literatura detetivesca, o mais celebrado talvez, é a lógica e a imaginação com que Sherlock Holmes ou Hercule Poirot chegam à solução do mistério.  O encanto do subgênero das mensagens de moribundos é esse diálogo à distância entre a inteligência da vítima e a inteligência do detetive, passando por cima da inteligência do criminoso.  Nos últimos estertores de sua vida, uma pessoa consegue produzir esse gesto criptografado, instantâneo, que o criminoso desdenha ou nem percebe, e que o detetive, com a paciência de um charadista, irá decodificando aos poucos, limando hipótese por hipótese, até perceber a verdade e com isso fazer justiça àquele último impulso criativo de uma mente humana que não existe mais.





sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

3682) O plágio provençal (12.12.2014)




Diz Ezra Pound, no ABC da literatura, que “há uma tradição segundo a qual em Provença era considerado plágio tomar a forma de um outro, tal como agora se considera plágio tomar-lhe o seu assunto ou o seu projeto.”  Como tantas coisas antigas, isto nos parece um contrassenso.  Formas poéticas são parte do banco de dados da nossa cultura, são de todo mundo. A quadra, o hai-kai, o soneto, a sextilha... É do conteúdo dos poemas que esperamos originalidade.  As formas fixas existem como recipientes. Copos de diferentes formatos; a expectativa é quanto à bebida que vai ser saboreada.

Pelo que diz Pound sobre essa época de ouro da poesia (houve muitas épocas assim, pelo mundo afora), os provençais eram engenheiros do verso, eram construtores de formas, desenhistas de estruturas.  Criavam novas formas de estrofe, novas organizações das rimas, novas cadências da métrica.  Raramente se pode dizer com certeza científica que o poeta-tal inventou a forma-tal, mas os grandes praticantes acabam recebendo alguns direitos de paternidade.  O soneto italiano (com dois quartetos e dois tercetos) será sempre associado a Petrarca; o hai-kai japonês, a Bashô. 

Para os poetas da Provença, uma estrutura de metros e rimas a ser fielmente obedecida era o maior desafio que podiam conceber.  Graças a Augusto de Campos, principalmente, temos conhecimento de poemas como “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel, uma canção de amor que tem como ponto de partida o trocadilho entre o nome da amada, Laura, e a expressão “l’aura”, a aurora. 

É interessante comparar esses conceitos de propriedade com o da cantoria de viola nordestina, porque José Alves Sobrinho, em seu Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, diz: “Silvino Pirauá Lima criou a sextilha e introduziu o martelo agalopado na cantoria. Nicandro Nunes da Costa criou o mote de um pé só; Manoel Raimundo de Barros criou a regra de um mote de 3 versos; Romano do Teixeira criou o mourão de 5 pés; Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador criou a estrofe de 7 pés e o mourão de 7 pés; José Pretinho do Crato, criou o galope a beira mar; Antonio Ugolino Nunes da Costa criou a oitava antiga; Vicente Granjeiro Landim introduziu a oitava em quadrão; (...)”  E por aí vai Zé Sobrinho, numa enumeração que quase não acaba mais. 

Esses poetas sertanejos brincavam com as formas de estrofe, os metros, as rimas.  Não chegavam à sofisticação estrutural de Arnaut Daniel, e não guardavam para si direitos autorais sobre as formas, as quais ainda hoje são livremente propagadas. O desafio é somente o de usar a nova forma tão bem, ou melhor, que o seu criador.




quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

3681) Curso de sonambulismo (11.12.2014)




“Acordei misturado às noções que a noite fabrica” (p. 265).  Jurandir, narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva / Alfaguara, 2014) é um tipo particular de narrador literário não-confiável.  Não é o narrador que mente, é o que não sabe. Não é o que quer esconder de nós o seu passado, é o que deu um jeito de escondê-lo de si mesmo.  Preso a uma existência humilhada, Jurandir tem um defeito físico que ele deu um jeito de, em certos momentos, usar como pretexto para um ritual de prazer.  Sem sonhos de grandeza, ele arruma um jeito de se alegrar com as pequenas coisas, a sensação de conforto de uma rotina que ele é capaz de repetir, um fio de futuro em que pode confiar.

Me pareceu, também, a voz de um ex-drogado (ele toma remédios, quando interno na clínica), alguém que obedece ordens com docilidade, sem discutir, sem precisar entender, mas que de repente tem uns assomos de onisciência e faz a última coisa que se esperaria dele.  Jurandir recorda metodicamente os mesmos fatos, procurando alguma coisa que existia neles e não existe mais.  O sexo com a esposa e com a namorada lhe traz um pouco disto; o amor físico é “o canal rumo a um tempo em que somos apenas o que somos, sem arrazoados nem idéias que nos estraguem a hora.  É só assim que esquecemos do passado.” (p. 243).  

Nesses momentos ele lembra Milgrim, o ex-drogado usado por William Gibson em Território de Espiões (2007) e Zero History (2010), o homem com um buraco na memória (“Meus últimos dez anos estão em modo não-linear, ainda estou tentando organizar isso tudo”).  O mundo de Milgrim é o aqui-e-agora. “Qual fora a última vez em que estivera em Paris? Era como se nunca tivesse ido lá.  Alguém tinha ido, alguém com vinte-e-poucos anos.  (...) Um Eu mais novo, hipotético. Antes que as coisas tivessem começado a não correr bem, depois a piorar, depois piorar ainda mais, até que a essa altura ele deu um jeito de se ausentar a maior parte do tempo.  Tanto quanto era possível.”

Jurandir, ao contrário, remexe o tempo todo no passado, essa coleção de ruínas que nos visitam de vez em quando.  Ele descreve em câmera-lenta, degustando detalhes, o acidente com carrinho de rolimã que o deixou manco desde a infância; mas o acidente que vitimou seu único filho tem que ser remontado pelo leitor a partir de meia dúzia de referências passageiras, espalhadas ao longo do livro.  Jurandir é meio míope quanto a si mesmo; até acha as coisas, mas somos nós que dizemos o que ele tem na mão. Como um sonâmbulo, ele anda em cima do muro sem cair, fala sem escutar, emenda os cacos da vida apenas colocando-os lado a lado.





3680) "O sonâmbulo amador" (10.12.2014)


Garcia Márquez dizia que a coisa mais importante de um romance é a voz que conta a história. Ela tem que dar desde o início a impressão de que por trás da voz tem uma pessoa, e por trás da pessoa tem uma história inteira.  Alguns narradores já no comecinho nos tranquilizam, nos fazem ligar o piloto automático: ele vai entregar tudo de bandeja e só nos resta curtir.  Outros no primeiro virar de página já nos deixaram de orelha em pé, é uma narração cheia de cacos, contradições, lacunas.

O narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva/Alfaguara, 2014) é Jurandir, um cara às vésperas da aposentadoria, trabalhando num cotonifício perto do Recife. É casado, mantém um namoro ata-e-desata com uma colega de trabalho, foi encarregado de defender a empresa no caso de um acidente em que um operário se queimou.  Esta é a situação inicial, mas logo Jurandir entra numa despirocação inexplicável que acaba levando-o a uma clínica psiquiátrica.

Jurandir narra as coisas com clareza, com método (é o típico funcionário caprichoso, consciencioso, que se esforça para fazer tudo direito), mas seu discurso é cheio de buracos, de non-sequiturs onde ele pula para coisas que não têm nada a ver, como quem muda um canal na televisão. Ler sua história é como ver uma cena através de um vidro muito transparente mas com manchas opacas espalhadas na superfície. 

É a voz monocórdia do Meursault de Camus (O Estrangeiro), alguém brechtiano, distanciado, (descre)vendo coisas sem entendê-las por completo, e nos forçando a amarrar os nós nós mesmos. Contar é ajustar contas, é abrir diante de si mesmo e do mundo o massudo e amassado caderno das nossas dívidas. Em São Bernardo, Graciliano castiga o maucaratismo de Paulo Honório forçando-o a descrever a si mesmo quando resolve narrar suas memórias.  Jurandir não é mau caráter mas a verdade é que bastaram duas ou três pequenas catástrofes pra descompensar sua vida.

Nos momentos em que Jurandir conta seus sonhos (um leitmotiv recorrente ao longo do livro inteiro) percebemos que a própria vida dele em vigília está sendo contada com os cortes, as omissões, os “a cena muda” repentinos que acontecem num sonho ou num filme mudo.  Ele insiste que seremos capazes de entender seu drama. “Muitos de vocês já passaram por coisa parecida, não tenho dúvida” (p. 36).  Narrando esses episódios oníricos, ele se aproxima às vezes da voz distanciada dos narradores de José Agrippino de Paula em Lugar Público (1965), a voz robótica de um sujeito desperto porém sedado, alguém capaz de descrever com indiferença, ao telefone, o incêndio que acontece naquele instante no quarto onde se encontra.




3679) O pai caçula (9.12.2014)

Participei de algumas mesas de debates sobre Ariano Suassuna, e nelas se tocou num assunto que me deixou intrigado.  Como qualquer pessoa deve perceber, essas palestras são como cantoria de viola, metade é balaio pronto, a outra é improvisação.  E quando vêm perguntas da platéia isso faz chispar às vezes uma faísca.  Surge num instante uma resposta boa, mas que não foi preparada, não foi dissecada em tudo quanto contém, foi apenas uma rápida associação de idéias, em função de um exemplo, ou algo casual, e a gente diz aquilo à medida que continua pensando.  Exatamente o que faz um cantador repentista, só que ele improvisa em verso, e eu improviso em prosa.

Conheço uma rapaziada no Rio de Janeiro que é fã de Ariano mas de Ariano só conhece o Auto da Compadecida filmado por Guel Arraes.  Essas pessoas viram a minissérie ou o filme, talvez leram o livro, provavelmente acabarão vendo-a um dia no teatro (levarão os filhos, quando os tiverem), mas sempre associaram João Grilo, Chicó e companhia àquele ancião de cabelos brancos e ralos, ternos brancos ou rubronegros, voz rouca, costas encurvadas. 

Quem escreveu a Compadecida, no entanto, foi um rapaz de 28 anos, como lembrou Carlos Newton Jr. num debate recente.  Em 1958, quando começou a escrever o Romance da Pedra do Reino (1971), Ariano já estava ganhando dinheiro com as montagens de suas peças.  A primeira vez que o vi falando ao vivo foi quando ele fez a Aula Magna da UFPB no Teatro Municipal de Campina Grande, em 1972.  Ariano, de terno, falava em pé, andando de um lado para o outro, inquieto.  Tinha uma energia incontível.  Estava com 45 anos.  Já vi na Internet alguns vídeos dele nessa época: cabelo bem preto, cortado curto, descuidado, terno escuro, gravata, a voz rápida, cortante.  O filme de Vladimir Carvalho O Homem de Areia tem um pequeno trecho de diálogo com Ariano mais ou menos por essa época.

Por que lembrei disso?  Talvez porque o próprio Ariano percebeu um dia que já era mais velho do que seu pai João, que morreu assassinado aos 44 anos.  Ariano escreveu um texto onde lembra o conceito de “pai caçula”, termo sugerido por Albert Camus, que parece ter vivido uma situação parecida.  O pai morre jovem, e resta jovem para sempre.  O filho paga a vida envelhecendo.  E no fim, é sempre um ancião avaliando à sua maneira os arroubos de um jovem.  Assim ele escreveu, no poema “Dístico”, dedicado ao pai: “Se morreu moço e em sangue, teve tempo / de governar seus pastos e rebanhos, / e a feiosa velhice / jamais o degradou. // Glória, portanto, à Morte e a suas garras, / pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio, / do Desprezo o salvou (...)”.





domingo, 7 de dezembro de 2014

3678) Traduzindo começos (7.12.2014)


Em seu livro de memórias If This Be Treason, Gregory Rabassa comenta suas grandes traduções da ficção latino-americana. Um dos primeiros romances que traduziu foi Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, e ele dedica longos parágrafos a comentários. A expressão “cem anos”, por exemplo, pode ser traduzida como “a hundred years” ou “one hundred years”, e ele diz que optou pela última, para destacar o aspecto quantitativo (“one”), pois se trata de uma conta nítida, fechada, “como numa profecia, algo definido, uma contagem regressiva, não é uma centenas de anos qualquer”.

O livro tem um dos começos mais famosos da literatura recente: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre le llevó a conocer el hielo”.  Em inglês ficou: “Many years later, as he faced the firing squad, Colonel Aureliano Buendía was to remember that distant afternoon when his father took him to discover ice.”

Rabassa comenta todas as opções desse pequeno trecho. Lembra que pelotão de fuzilamento é “firing party” na Inglaterra e “firing squad” nos EUA.  Discute se é melhor traduzir “había de” por “would” ou por “was to” (opta por esta).  O verbo recordar pode ser “remember” ou “recall”: ele opta por “remember”, “porque dá a impressão de uma ´recordação mais profunda”.

A “tarde remota” virou “distant afternoon”. Por que?  Rabassa considera que para o leitor inglês a palavra “remote” está muito associada a controle remoto, robôs, etc., e que gostava do adjetivo “distante” (um adjetivo relativo a espaço) quando aplicado ao tempo.  Para ele, um problema delicado era o fato do Coronel, menino, ter sido levado para “conocer” o gelo.  Rabassa traduziu o verbo por “discover”, descobrir.  Por que?  Rabassa lembra que se trata de um primeiro encontro, de um aprendizado; em inglês, usar "to know” daria a sensação de que o menino disse: “How do you do, ice?”, mas que quando a gente sabe algo pela primeira vez está “descobrindo” esse algo.

Duas linhas de texto a traduzir podem produzir sem esforço duas páginas de teorizações.  Muitas são intuitivas, feitas ao correr da escrita, ao ritmo da digitação, quase nem chegam a ser verbalizadas intimamente pelo tradutor. Vai ser isso, não aquilo, assim fica melhor, troca essa pela outra, ajusta o ritmo, a sonoridade, a próxima, por favor!  São processos que já foram teorizados por antecipação, ou talvez na primeira-vez-de-todas em que um problema semelhante se apresentou. O tradutor lê, deixa-se impregnar, concentrado, do que a frase original lhe trouxe, digita a sua.  E vai em frente, que a esteira tá rolando.

sábado, 6 de dezembro de 2014

3677) "Interestelar" - III (6.12.2014)



O filme de Christopher Nolan retoma o conflito entre duas mentalidades bem norte-americanas: os Fazendeiros e os Astronautas.  As duas são tratadas como missões quase heróicas, mas incompatíveis.  Os ruralistas e os high-tech. Eu diria quase “os Republicanos e os Democratas”, se não soubesse que isto é algo bem mais complexo.  Em todo caso, são os conservadores do que já existe e os descobridores de novas situações. E, nesse mundo específico, foram os hightech que destruíram o planeta; e foram incapazes de corrigir os erros que cometeram.  E os fazendeiros estão, com todo sacrifício, mantendo viva a última geração sobre a Terra.

Os Astronautas são os aventureiros, os desbravadores, os pioneiros, os argonautas, todos os que se lançam no desconhecido, sem medo, pela inquietação aventureira e pela sedução de mistérios em grande escala, mistérios sobre a natureza do mundo, que somente a navegação poderá esclarecer.  São como os navegadores portugueses e espanhóis que nos descobriram.  Há um diálogo no filme em que um dos astronautas olha para fora e se refere à parede de metal da espaçonave, e para além dela milhões de milhas de espaço vazio.  Reflete um texto do francês Jean de Léry (em sua História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, 1578) onde ele fala da coragem dos navegadores, e diz mais ou menos que “eu estava num porão, protegido por uma parede de madeira com algumas polegadas de espessura, e além dela somente a noite, o oceano, e os vagalhões da tempestade”.  Ser um aventureiro é sentir-se seguro numa situação assim.

Fazendeiro do Ar, título famoso de Carlos Drummond, descreveria bem o protagonista Cooper (Matthew McConaughey), um ex-piloto que mal cabe em si no papel de fazendeiro. Vive plantando milho e ensinando física à filha, doido para voar novamente.  É o típico herói popular norte-americano, que avalia com o mesmo olhar frio uma tempestade de poeira, um tsunami num planeta desconhecido ou a curvatura do espaço em volta de um buraco-negro.  A pequenez imperturbável do ser humano diante de um Universo que ele ousa habitar sem compreender de todo.

E o filme ainda ousa fechar-se num “loop” de causalidade, formando um paradoxo temporal positivo (uma viagem no espaçotempo que só se torna possível porque aconteceu e criou as condições para acabar acontecendo), uma reiteração de que a viagem não foi perdida, a aventura não foi em vão.  O filme parece dizer que é o amor pelos nossos filhos que transcende o tempo e o espaço.  É também o amor pelos livros que líamos e os filmes que víamos quando tínhamos a idade deles. Os nossos sonhos de juventude, os únicos que continuam jovens para sempre.




sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

3676) A maldição da trilogia (5.12.2014)



Há um mecanismo na mente humana que eu denomino Síndrome do Solitário Exemplo.  E defino assim: quando temos uma única experiência de algo, somos incapazes de perceber (e isto é mais do que compreensível) o que existe ali de necessário e o que existe de contingente. Em outras palavras: o que faz parte da própria essência daquilo, e o que não passa de um detalhe colateral, irrelevante, que tem importância naquele exemplo isolado mas não pertence à categoria como um todo.

Sou meio ruim de abstrações filosóficas e o jeito é correr para o abrigo do exemplo mais próximo.  Você desce num aeroporto na Turquia, país que visita pela primeira vez, e o taxista é barbudo, tem um terço católico pendurado no retrovisor, e usa óculos escuros.  Sua primeira conclusão é estender as características do Solitário Exemplo à categoria em geral e pensar que todos os turcos (ou todos os taxistas turcos) têm barba, terço e rayban. Quantas vezes ouvimos de um recém-chegado, desembarcados há meia hora, como “os cariocas” ou “os paraibanos” são gentis/grosseiros/prestativos/distraídos/faladores/...

Na literatura de Fantasia Heróica aconteceu algo parecido.  Muitos jovens leram O Senhor dos Anéis e botaram na cabeça a noção de que qualquer texto que se escreva em Fantasia Heróica tem que constar obrigatoriamente de três volumes.  Aí, o autor de 20 anos diz: “Estou com uma idéia ótima para a minha primeira trilogia”.

Sem querer entrar nos méritos estéticos ou estruturais do equívoco, me basta o argumento biográfico.  Tolkien detestava o conceito de trilogia.  Na cabeça dele, estava escrevendo um romance, a ser publicado como romance.  Seus editores tinham tido uma bela vendagem com O Hobbit e tiveram paciência bastante para passar meses argumentando.  Tolkien não era um escritor profissional.  Era um filólogo, um acadêmico, e livros com 1.500 páginas faziam parte de seu repertório de consulta habitual.  Ele mal lia a literatura de seu tempo, era carrança e ranzinza, e foi um trabalho para a editora Allen & Unwin convencê-lo a desmembrar o livro em três, mesmo tendo este uma estrutura que favorecia essa subdivisão.

Chegaram a um acordo: o livro seria apresentado como trilogia, mas a publicação seria em rápida sequência, num espaço de menos de dois anos.  Quando o leitor terminava um, o próximo já estava nas vitrines.  Mas... o carimbo tolkieniano foi forte.  O conceito de trilogia se impôs na Fantasia Heróica de um modo que nunca tinha se imposto na FC, apesar de exemplos como a Trilogia da Fundação de Asimov.  E se hoje você publica um livro no gênero, os fãs ficam perguntando “quando é que saem os outros dois”.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

3675) "Interestelar" - II (4.12.2014)



A produção visual e os roteiros de filmes de FC norte-americanos estão ficando tão parecidos que a gente começa a ver influência ou citação onde existe apenas a hegemonia de um estúdio ou o monopólio de um modo de fazer as coisas, atendendo a sucessivos clientes.  Em muitos momentos de Interestelar (2014) de Christopher Nolan, em cartaz por aí, eu achei que estava vendo uma sequela ou uma refilmagem de Prometeus de Ridley Scott.  Cascatas glaciais, aventura em planeta hostil que resulta em morte e fuga apressada para a nave-mãe, andróides ou computadores que imitam seres humanos, uma missão cuja verdadeira natureza só é sabida quando não tem mais volta, e por aí vai.  O que é uma injustiça, pois o filme vai bem além daquele.

Primeiro porque a Terra de Nolan é muito mais interessante. Uma Terra esfomeada, que parece viver exclusivamente de milho. Parece a Terra de Filhos da Esperança (Children of Man), de Alfonso Cuarón.  Nolan, com certo pudor, nem mostra o mundo terrível que deve ser aquele, mas nos dá um vislumbre assustador, numa diretora de escola, crente convicta de que a descida do homem na Lua foi forjada pela televisão.

O fantasma que assola no início a casa do piloto Cooper fornece um nó narrativo bem amarrado, que lembra o da “Continuidade dos Parques” de Julio Cortázar ou o de O Vagabundo das Estrelas (Sylbad) de Stefan Wul.  Imagino que alguns críticos irão torcer o nariz pelo fato de Nolan repetir seu efeito especial de A Origem, o dos quarteirões de Paris que se erguem e se dobram sobre si mesmos.  Ele o faz, mas com uma razão diegética bem humorada: o ambiente na face interior do cilindro da Estação, com gravidade induzida por rotação, é exatamente assim.  O labirinto pentadimensional onde Cooper se acha vagando, perto do final, é de uma realização visual fascinante.  Implausível?  Claro que é, não imagino nenhum ambiente pentadimensional que não o seja.

A Origem (Inception) era um filme de FC diferente porque pressupunha a possibilidade de invadir as mentes de outras pessoas e sonharem todos o mesmo sonho, admitindo distorções do espaçotempo a torto e a direito.  É um argumento mais original do que este aqui, embora Interestelar proponha um paradoxo temporal resolvido de uma maneira dramaturgicamente elegante, com um postulado gravitacional que, do ponto de vista científico, pode ser tão (in)questionável como qualquer outro.  O loop temporal que o argumento propõe fica ainda mais elegante quando superposto à gradual diferenciação de idade entre a filha, que envelhece na Terra, e o pai, numa missão em que uma hora de seu tempo físico correspondia a sete anos na Terra.





3674) Detetives do Sobrenatural (3.12.2014)



(ilustração: Romero Cavalcanti)

Corro o risco de estar cansando os leitores que me leem mais regularmente, mas vou comentar de novo minha antologia “Detetives do Sobrenatural”, que acabou de sair pela Casa da Palavra.  A melhor coisa de ser antologista é o dever moral de ler dezenas de volumes de contos alheios, e não tem coisa melhor do que isto, quando a gente tem plenos poderes para escolher o que publicar.  E em alguns casos nem precisa procurar muito, porque na primeira tomada de nota sobre o assunto já aparecem 15 ou 20 histórias já lidas, como opções mais imediatas.

Os Detetives do Oculto, como também são chamados, pisam um terreno minado, porque muitos deles não se limitam a fazer deducções numa poltrona: visitam ambientes “carregados”, encenam rituais, entram em combate direto com forças titânicas, ou satânicas, de ordem supra-material.  O gênero usa até com certa contenção o “mumbo-jumbo” teórico (com palavras tipo “plasma”, “etéreo”, etc.) além de conceitos bastante vitorianos como o duplo, o espelho, o simulacro, o mundo supramaterial... Eles examinam casas onde há fenômenos poltergeist, aparições de fantasmas, ataques de seres estranhos, eventos insólitos e inexplicáveis.

Têm um pouco de Sherlock Holmes, como é o caso (na minha antologia) de Bell (de Meade & Eustace), o Flaxman Low dos Heron, o Carnacki de Hodgson – o mais high-tech de todos, enfrentando horrores pré-lovecraftianos.  Eu chamaria a atenção para dois desses “sleuths”. Um deles é o Tio Abner, de Melville Davisson Post (autor de contos policiais de época, num meio rural austero e tenso).  No conto que escolhi, Abner enfrenta poderes do outro mundo, mas seu confronto é regido pela sua capacidade de ler pistas, de perceber intenções, de dar atenção a detalhezinhos que ninguém percebe.  Um varão tonitruante e contido do Velho Testamento, vestindo roupa de cowboy, com uma mão no revólver e a outra sobre a Bíblia.

O outro é o mais famoso detetive-do-oculto-cantador-de-viola que eu já vi: John the Balladeer, o violeiro errante de Manly Wade Wellman, informadíssimo e fluente em lendas e folclore e cultura de almanaques, sempre tirando da cartola de repentista (e da viola com cordas mágicas de prata) a canção certa para qualquer momento. Digo que ele é o mais famoso porque Wellmann tem também o John Thunstone, de perfil muito semelhante.  Mas os três livros que li com “Silver” John, the Balladeer, são uma espécie de romances regionalistas, com pequenos plots policiais ou de guerra entre poderes ocultos.  Na montanha, na floresta, no vale, no rio, nas estradas dos montes Apalaches, John vive esbarrando a toda hora em inimigos à sua altura.