sexta-feira, 12 de setembro de 2014

3602) Matemática e corpo (12.9.2014)




Se existe alguma coisa que justifica o surgimento do ser humano neste planeta é ele ter concebido a matemática, e digo aqui a matemática no seu sentido mais amplo, que inclui a geometria, a aritmética, a música, a zorra toda. Não quero dizer que ela seja mais importante do que tudo, e na verdade acho que está muito longe disso. A coisa mais importante da vida é a felicidade do corpo, o em-paz do corpo, o na-ponta-dos-cascos do corpo, o turbinas-a-toda-potência do corpo, a alegria-de-viver do corpo, o vou-tomar-todas-porque-sou-indestrutível do corpo.  O corpo, a gente joga a toalha: o corpo é a base do real. A matemática é simplesmente o vislumbre da perfeição.

A matemática nos sugere o possível mundo Trans-Humano do futuro, em que todos seremos mente pura, gravada em elétrons e silício, livres das dores, das carências e da decadência do corpo. Não sei o que sente o corpo alheio, mas os prazeres e os achaques do meu me bastam. Tenho dias sempre movimentados.  O corpo ocupa cada um de nós 24 horas por dia. É único e não se conecta em rede.  Talvez por isso nunca consegui ver o arco-íris que tantos outros viam, a estrela cadente que tantos apontavam, o fantasma que todo juravam trêmulos que estava ali, diante de nós. Pobre de mim, que vejo uma ciclóide e não vejo um fantasma.

Quando conseguirmos transformar em .gifs animados tudo que sabemos sobre o espaço e suas dimensões. Quando conseguirmos codificar isso numa tecnologia que qualquer raça, por mais física e quimicamente diferente de nós, consiga reproduzir e utilizar. Quando, enfim, pudermos revelar a uma raça alienígena qualquer o que descobrimos sobre a matemática pura do Universo, somente então teremos justificado nossa presença na Terra.  Talvez nossa aritmética e nossa geometria (nossos lados digital e analógico) não sejam perceptíveis por todas as espécies inteligentes que há. Faz sentido.  Mas também faz sentido supor que exista alguma semelhante à nossa, ou pelo menos capaz de ver como vemos e raciocinar como raciocinamos, pouco importa sua aparência anatômica ou sua composição química.

Imagino um mundo distante, um mundo submarino com uma civilização compartilhada entre cetáceos e cefalópodes, e onde um dia cheguem, sabe-se lá como, demonstrações cabais da existência de que existia, num passado remoto, um raciocínio abstrato em termos visuais, no terceiro planeta em volta de uma estrela periférica. Eles olharão aquilo e comentarão: “Vejam só, eram mamíferos antropóides de superfície, respiravam oxigênio, e mesmo assim conheciam o Yamigang do Kambalaôr.” (É assim que chamam o “Teorema de Pitágoras” na cultura deles.)


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

3601) Guy de Maupassant (11.9.2014)



Nossa formação literária se deve muito aos livros que nos caem nas mãos por acaso, no momento certo. Quem quiser diga que o maior contista do mundo é Tchecov ou Hemingway ou qualquer outro: para mim é Guy de Maupassant, que conheci aos dez anos através da antologia Histórias Eternas (Cultrix, 1959), cheia de contos realistas, fantásticos, satíricos, românticos, tenebrosos, sentimentais, maliciosos, cruéis.  Suas histórias mais famosas são Bola de Sebo (que inspirou desde a canção “Jenny e os Piratas” de Brecht até o filme No Tempo das Diligências de John Ford), “O Horla” (uma das mais arrepiantes histórias de monstros invisíveis) e o romance Bel-Ami (sobre o jornalismo e a vida mundana de Paris).

A mãe de Maupassant era amiga de infância de Flaubert. Os dois se adoravam, e o jovem escritor foi apadrinhado com entusiasmo pelo autor de Salambô.  Com o mestre, GdM aprendeu a ser o que Jessier Quirino chama “um prestador de atenção”. Tem uma finura notável para sugerir, com poucos elementos, tipos humanos vívidos: uma rápida descrição visual, um diálogo, um adjetivo, e a pessoa está inteira e plausível diante de nós. Sua narrativa é ágil e jornalística (diferente do estilo pintura-a-óleo-em-grandes-dimensões do seu mestre). Maupassant é o mestre do parágrafo curto. Em duas ou três linhas ele tanto resume uma ação inesperada e complexa quanto o transcurso de dezenas de anos com tudo que trouxeram dentro de si.

Ficou rico publicando contos em jornais (e depois compilando-os em livros), façanha assombrosa em qualquer época. Na antologia citada, diz Ondina Ferreira no prefácio: “Foi um trabalhador infatigável: produzia num ritmo de febre. Em dez anos, espaço de tempo em que Flaubert redigia dois livros, publicou vinte e sete.”  Uma máquina-escritora comparável a Robert Silverberg, a Lester Dent, a Edgar Wallace. Certamente um autor lido e meditado por Machado de Assis, com quem só não é comparado porque tinha um temperamento diametralmente oposto.

A biografia Maupassant: A Lion in the Path (1949) de Francis Steegmuller, traz fatos curiosos como as amizades conflituosas de GdM com autores como Émile Zola, Henry James, Turgueniev. Episódios pitorescos sobre a intensa vida boêmia do autor nos bordéis de Paris e depois nas alcovas elegantes, disputado pelas mulheres devido ao seu (digamos) dom de resposta instantânea e de permanecer impávido durante horas a fio, em benefício da parceira. A sífilis que o levou à desorientação mental e ao hospício, onde morreu aos 43 anos. Foi o maior contista do seu século, e ainda é capaz de disputar em pé de igualdade com qualquer outro dos dois séculos seguintes.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

3600) Filosofias populares (10.9.2014)



Serei eu o último cara que lembra dessas coisas? Não, porque a maioria dos que conheço são até mais novos do que eu.  Havia uma cachaça chamada Praianinha que tinha um ótimo jingle. Vejam o que é nossa civilização – eu não tinha idade para tomar cachaça, mas já era exposto a ouvir jingles.  Uma pequena obra-prima que vou transcrever: “Se meu time ganhar / Praianinha vou tomar, para comemorar; / mas se meu time perder / Praianinha vou beber, para esquecer... / Praianinha na tristeza, Praianinha na alegria / Praianinha toda hora, Praianinha todo dia... (E se meu time ganhar...)”

Em matéria de equilíbrio dá um Descartes, e em matéria de saber viver dá dez Omar Khayam.  Feliz é o povo que tem suas praianinhas, de todas as naturezas, para atiçar o prazer e amortizar a dor.  (Admito que a leitura conspiratório-marxista, de que o slogan evidencia a onipresença da subliminaridade comercial, nos momentos em que o consumidor está mais emotivo e fragilizado, tem lá seus argumentos.)  Não me surpreenderia que um jingle assim fosse de Rosil Cavalcanti, de Luiz Queiroga, de Lamartine Babo (a música é meio um sambinha), de Luiz Bandeira.

Beber para lembrar, beber para ajudar a perder... A bebida e a comida podem até ser qualquer uma, porque a fantasia de quem precisa beber e precisa comer é infinita. Baudelaire chamou as drogas de paraísos artificiais, mas hoje elas são muito mais “analgésicos hilariantes”. Elas apagam de mentira a dor, e nos obrigam a sorrir. Assim é a cerveja, para dar só um exemplo, e que Deus abençoe, em sua infinita capacidade diplomática, quem a traz até a nossa porta.

Praianinha deveria ter saído em duas embalagens. A da derrota, “batizada” com um estimulante. A da vitória, com um relaxativo. A sabedoria não está só na simetria, mas no equilíbrio dinâmico. Quando algo chega ao seu extremo, a tendência é voltar.  Lei da Natureza, ou sabedoria chinesa?  Tanto faz, assim como tanto faz saber quem foi o primeiro enunciador da frase “dois mais dois são quatro”.  Faz diferença o autor?  Basta ser verdade.

Para os escritores a bebida foi a pólvora do escândalo (Edgar Poe), foi o anestesiamento compulsório (Raymond Chandler), o combustível da fogueira (Bukowski, Faulkner, Dylan Thomas, Lima Barreto), uma maneira agradável de se impedir de pensar. Não bebiam porque eram infelizes. Se se fizer uma lista, alguns dos mais felizes eram os que bebiam mais. A bebida (e olha, estamos aqui nivelando o vinho, o uísque, a vodka, o chope e a cana de cabeça) desabrocha de maneira diferente em cada pessoa. Algumas vezes de maneira trágica, claro, mas qual é a vida que não roça na tragédia de vez em quando?


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

3599) O personagem quis (9.9.2014)



É um dos clichês mais batidos da literatura. Todo escritor diz isso; é um aspecto óbvio da escrita da ficção. O interessante é que todos resolvam explicar sempre do mesmo jeito. 

George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, diz assim: 

“Pode parecer estranho para quem não escreve, mas, quando você embarca num projeto literário assim, os personagens ganham vida própria. Você se vê chegando a um ponto em que alguma coisa estava prevista para acontecer, mas o personagem não quer fazer aquilo, ele tem uma idéia melhor.” 

Quase todo clichê parte de uma verdade básica.  Se não fosse fundamentado numa verdade, teria secado e caído do galho sem ter tido tempo de se transformar em clichê. Mas para entender a explicação, a gente tem que bancar o que Nelson Rodrigues chamava “o idiota da objetividade”, e dizer: Que diabo é isso de “o personagem quis”?  O personagem não existe, meu camarada. Só quem existe aí é você.

A verdade é que o personagem é criado por camadas diferentes da mente do autor. No início ele é apenas um rosto, um nome, uma função. O autor pensa nele, inicialmente, como alguém que vai aparecer na história e executar algumas ações. É a fase de esboço, que geralmente é feita de maneira analítica, distanciada, em que o autor bola a estratégia da história como um enxadrista.  Os personagens ainda não são pessoas, e só se distinguem uns dos outros pelas suas funções, como as peças do xadrez.

Na hora de escrever, entra em atividade outro setor da mente. O autor não vê mais o personagem de fora. Tem que “entrar” no personagem, imaginar as emoções dele, os pensamentos, as motivações, os desconfortos e sensações físicas dele (cansaço, um ferimento, fome, saciedade, atração sexual, etc.).  

E quando ele encarna no personagem essa totalidade humana, projetada de dentro de si mesmo, ele é forçado a levar em conta, de maneira coerente, inúmeros aspectos humanos em que não tinha pensado de início. Quando ele diz “o personagem quis agir assim”, está dizendo: “Somente quando eu comecei a trazer o personagem para uma ação real eu percebi que se ele fosse uma pessoa, sujeita a todas aquelas circunstâncias físicas e mentais, ele agiria diferente do que eu imaginei de início”.

Martin é consciente disso, e diz: 

“Você tem que obedecer ao personagem, em última análise, senão perde o senso de realidade, e o leitor perceptivo vai ver que seus personagens são apenas marionetes manipulados por cordões”.  

O primeiro esboço do personagem é feito pela mente analítica, mas quem redige as cenas, frase por frase, diálogo por diálogo, é a alma-camaleão do autor, psicografando a totalidade daquela pessoa fictícia.


domingo, 7 de setembro de 2014

3598) Noites caririzeiras (7.9.2014)



Vocês não sabem o que são certas noites no sertão, no cariri.  A noite mais estrelada da minha vida eu vi há quase trinta anos, na região dos Cariris Velhos. Éramos dois (um câmera e um fotógrafo de still) trabalhando com dois agrônomos, documentando uma região que andava subjúdice. Dormíamos na fazenda de Dom Joaquim, um velho bigodudo com ingenuidades de grandeza.  Muito sol, muito trabalho, e de noite era banho, jantar e desabar logo cedo na cama. Dividíamos dois quartos de hóspedes, com luz elétrica, chuveiro, mosquiteiro (“precisa, aqui tem muito barbeiro!” disse a moça sorridente que nos entregou toalhas e lençóis).

No meio de uma noite qualquer, acordei de repente. Vozes lá fora, no pátio. Abri a banda-de-cima da porta.  Os agrônomos, chamados Velasco e Zé Guedes, estavam fumando e conversando, de bermuda, embaixo da cintilação de luzes mais espantosa, maior e mais nítida que eu, pobre urbanóide habitante da placenta fluorescente, poderia imaginar que existisse. Saímos, eu e Anacleto, o still, fomos fumar com eles.  Velasco apontou o céu: “Teve um brilho ali. Por isso que eu levantei. Como um avião passando baixo com alguma coisa acesa, mas sem som.”  Zé Guedes confirmou.

Eu sei que parece idiota, mas ficamos fumando, contando as histórias mais malucas, e eu olhando aquele céu de fogo pontilhista, a arte de coruscar no meio do nada.  Parece piada se eu disser que houve um brilho do lado de lá da colina depois do curral, e que quatro homens juntos, mesmo morrendo de medo, como era pelo menos o meu caso, sentem-se na obrigação moral de ir-ver-o-que-é?  É quase um juramento à bandeira, um rito de passagem; e fomos.  A única coisa eu lembro do que aconteceu em seguida é esta frase que repito há anos: “Foi como se um tsunami de luz nos envolvesse”.

Despertei três dias depois num hospital do Exército. Inteiro e desorientado. Zé Guedes e Anacleto já tinham tido alta. Saí dali a dois dias, depois de exaustivos depoimentos. Quando a poeira sentou chamei Anacleto e fomos falar com Zé Guedes.  Marcamos num self-service.  Pedimos chope, sentamos. Ele disse: “Alguém perguntou a vocês sobre Velasco?”.  “Não”, disse eu, que já tinha discutido isso com Anacleto. “Pra todos os efeitos, só estávamos lá nós três.”  “Estão me dizendo isso direto, e eu digo para meu chefe, caramba, era Velasco, cara, ele é mais velho do que eu, trabalha aqui há mais tempo do que eu!  Eu já vi você conversando com ele, como você vem me dizer que o camarada não existe, e que eu fui sozinho naquela viagem ao Cariris Velhos?”  Houve um silêncio, Anacleto deu um gole e disse: “Fácil demais você deletar uma pessoa no Brasil”.


sábado, 6 de setembro de 2014

3597) A palavra bola (6.9.2014)



Quando escuto futebol pelo rádio, fico imaginando um estrangeiro ouvindo uma transmissão de futebol aqui no Brasil. Me refiro a um estrangeiro que sabe português, que estudou, que desembarcou aqui botando português pelo ladrão e doido para testar sua pronúncia e seu entendimento. 

O futebol irradiado é uma narrativa que depende de algo externo a si mesma. O narrador não pode narrar algo que não está acontecendo ou não chegou a acontecer, embora o folclore radialístico esteja cheio de episódios mirabolantes vividos pelos grandes locutores e comentaristas dos tempos heróicos.

Fiquei pensando em quantos contextos a palavra “bola” pode aparecer na transmissão de um jogo. E não incluo expressões de fora do futebol, como “dar bola”, “bolar um plano”, etc.  A bola é o substantivo bola, que deve ter um termo equivalente quase inevitável em muitas línguas, ou pelo menos nas que se parecem com a nossa, mas bola também significa passe, jogada. “Olha que bola que Fulano lançou... deixou Sicrano na cara do gol”: a palavra se refere ao lançamento em si.  Bola deixa de ser representada por um ponto, passa a ser uma linha, o trajeto percorrido desde o pé do lançador até o pé do artilheiro. E pode ser também a conclusão da jogada: “como é que você me perde uma bola daquela, rapaz?”. O mesmo sentido está na expressão “a bola do jogo”, uma jogada, geralmente perto do fim, cujo desfecho fará pender a vitória para um lado ou para o outro. 

A palavra também indica a posse, a iniciativa da jogada: “O juiz dá arremesso lateral, Flamengo bola.”  Quando dizemos que Fulano está “batendo a maior bola” quer dizer que está jogando bem, está numa grande fase.  A expressão “Fulano não tem bola pra isso” tem equivalentes em outras profissões, mas no futebol todo mundo geralmente sabe quem é realmente bom em cada departamento. Quem tem bola (quem tem vitórias, títulos, números para apresentar) tem sua voz ouvida. O mundo futeboleiro sabe preservar essa meritocracia do talento puro, onde quem é bom é bom mesmo.

Algumas expressões tiram um fino uma na outra. Um jornal pode dizer, por exemplo: “O juiz do jogo passado comeu uma bola para derrotar o Santos, porque Pelé está comendo a bola e era preciso parar o Santos de qualquer jeito.”  A propina e o desempenho são sugeridas com as mesmas palavras, e talvez o único diferencial seja esse tratamento de “uma bola”, uma coisa qualquer, largada, que a desvaloriza, enquanto que quando dizemos “a bola”, é ela mesma primeira e única.  O nosso hipotético estrangeiro teria que captar todas estas nuances da palavra, apenas vendo seu uso.


3596) Neil Gaiman e a escrita (5.9.2014)





Me perguntaram numa entrevista dias atrás se eu achava Neil Gaiman o melhor escritor da fantasia urbana (ou do “macabro insólito”, não lembro bem que rótulo foi usado).  

Falei que ele era excelente – mas não existe “o melhor”, isso é um conceito esportivo, hierárquico, aritmético, que tem tudo a ver com o esporte mas nada tem com a arte, pois esta se baseia em impressões pessoais e coletivas que mudam o tempo inteiro, e se assemelha mais ao mercado de ações, onde o valor é expresso em quantidades numéricas (dinheiro) mas é medido em fantasias subjetivas grupais (avaliações do mercado).  

Quando terminei de explicar, a repórter estava olhando para o microfone como se ele tivesse acabado de brotar ali na mão dela, e nunca me fez a segunda pergunta.

Resposta: sim, Neil Gaiman é um bom autor (seu eventual parceiro Gene Wolfe é melhor ainda) mas a razão de citá-lo é que eu o sigo no Twitter (@neilhimself), então estou mais exposto a irrelevâncias como ficar sabendo da agenda de noites de autógrafos dele por países inacessíveis, mas também a bate-papos ocasionais. 

Não só ele, sigo algumas dezenas de autores, mas ele é um dos que mais postam, juntamente com Jonathan Carroll e William Gibson. (Mas em surtos. Às vezes somem por semanas a fio.)

Vantagens da cultura digital, substituindo os hollywoodianos “escritórios de divulgação”, que ficavam liberando diariamente factóides sobre os astros seus patrões. Hoje o patrão precisa matar hora numa conexão atrasada e fica trocando idéias com anônimos que lhe perguntam sobre seus livros.  

Perguntado, Gaiman diz que seu filme favorito seria um desses: “If, The Manuscript of Saragossa, e All That Jazz”.  Nunca vi O Manuscrito de Saragoça, adaptação de Wojcieh Jersy Has para o polêmico, misterioso, multiforme e necronômico livro de Jan Potocki (se alguém souber um link pro filme, favor informar.)

Os outros títulos citados por Gaiman eu já vi. 

If, filme inglês de Lindsay Anderson, é sobre a revolta dos estudantes de uma daquelas terríveis escolas-internatos para adolescentes britânicos, um capítulo à parte na história do sadomasoquismo ocidental.  Vi esse filme depois de ter visto Zéro de Conduite de Jean Vigo, um filme parecidíssimo e diferente. 

All that Jazz é aquele filme sobre o diretor de um musical (Roy Scheider) que está pra morrer do coração mas mete o pé na jaca e pipoca o motor e dirige um espetáculo complicado em todos os sentidos. 

O que têm esses dois filmes a ver com a obra de Gaiman, de Sandman a O Livro do Cemitério? Aparentemente nada, e possivelmente alguma coisa, que não está óbvia nos livros mas que pode ser mais bem iluminada em retrospecto.




quinta-feira, 4 de setembro de 2014

3595) Hoaxes literários (4.9.2014)



Um “hoax” (ou “uma hoax”, nunca se sabe, com esses nomes neutros do inglês) é uma farsa, uma falsificação montada de propósito para parecer verdadeira. Na literatura, geralmente consiste na atribuição de um texto a alguém que não o escreveu. Pode ser um personagem famoso, como no caso dos diários falsos de Hitler comprados e publicados pela revista alemã “Stern” nos anos 1980. E pode ser uma pessoa desconhecida (ou supostamente existente) cujos escritos teriam suficiente interesse literário ou humano para justificar a publicação, como no caso do fictício viciado em drogas J. T. Leroy (ver aqui: http://tinyurl.com/qdugcw9).  Esta página do saite Abebooks lista (e oferece à venda por preços módicos) hoaxes literários de todo tipo, inclusive alguns clássicos como “As Canções de Bilitis”, de Pierre Louys, atribuídas a uma poetisa grega (aqui: http://tinyurl.com/pu5ty5b).  

A literatura, contudo, sempre recorreu ao hoax, mesmo que de modo mais aberto, mais franco. A literatura do século 19 está cheia de obras cuja autoria é atribuída, pelo verdadeiro autor, a um personagem. Em geral são “manuscritos” que o autor do livro diz ter herdado, ou descoberto, ou recebido anonimamente pelo correio. É um recurso tão habitual que Umberto Eco, que o utiliza em “O Nome da Rosa”, intitula o capítulo de abertura do livro assim: “Um manuscrito, naturalmente”. Qualquer leitor já sabe.

Os heterônimos de Fernando Pessoa poderiam ter funcionado como “hoaxes”, nas mãos de alguém mais pragmático. Borges e Bioy Casares poderiam se quisessem fingir que H. Bustos Domecq era uma pessoa real, e teriam uma boa chance de serem acreditados. Há autores que ainda dizem: “Encontrei um manuscrito misterioso de autor desconhecido contando a seguinte e extraordinária história”. Outros já dizem assim: “Conheço um autor chamado Fulano, que vive assim e assado, e eis as coisas extraordinárias que ele escreve.”

O autor inventado faz parte da literatura. Não basta inventar os personagens, é preciso inventar também a cabeça maluca que os inventou. A criação fica terceirizada. Não, não sou eu que penso nessas fantasias doentias e mórbidas: quem gosta disso é meu personagem, o autor deste manuscrito. Claro que eu não tenho nada a ver com isto, estou apenas passando adiante o texto, seguindo as instruções que recebi. Claro que não tenho a menor intenção de dizer que este livro foi escrito há 200 anos por uma poesia do País de Gales. Não, foi escrito por mim. A poetisa do País de Gales, que escreveu os versos que o livro contém, é que foi inventada por mim. É tão fácil inventar um “hoax”. Por que não fazer dele uma parte assumida da invenção literária?


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

3594) Film noir (3.9.2014)


Mulligan é um motorista de ônibus, perdidamente apaixonado por sua amante, Norma, que faz dele gato e sapato e o endoidece a ponto de crime.  Mulligan foge da cidade e se refugia na casa de seu tio-avô em Minesotta, num pé de montanha coberto de neve onde só se fala em indústria madeireira, televisão e folclore. Vai trabalhar no posto de gasolina do casal Stanley e Wilza Carvalhal, um casal anglo-português que há muitos anos se estabelecera ali. Mulligan vira testemunha das brigas constantes do casal. Começa a namorar com Sula, uma portorriquenha que foi o mais próximo que ele encontrou de um ser humano por ali. No dia em que o velho Stanley tem um enfarte no meio de um caso mais áspero de discutir-a-relação, a mulher se apavora, pega o carro e sai sem rumo. Mulligan abre a registradora, embolsa tudo, o equivalente a três meses de salário, e foge tranquilo, visto que a morte do velho foi natural.

Bares de Saint Louis, numa certa época, depois de uma certa hora da noite... Bares são bons lugares para que aconteçam coincidências. “Não é possível, você! o que você está fazendo aqui?” – achamos isso difícil quando na verdade é quase obrigatório. Até as pedras se encontram. Quem frequenta bar sabe onde encontrar quem bar frequenta. Mulligan, oito anos mais velho e algumas classes sociais mais acima, encontra com Wilza. Que aliás era de origem uma loura-platinada brasileira, que o velho Stanley conhecera num cassino vegetariano no Estoril. Ele está numa convenção, ela veio entrevistar um possível cliente. Os dois decidem tomar um uísque para lembrar os velhos tempos e comomorar os novos, visto que ambos se sentem agradavelmente surpresos com o tom geral de juventude alegre e sadia, e com problema de classe social resolvido, que fantasiam ver um no outro.

E o inevitável acontece. Por aquela mulher bronzeada e de cabelos de agave Mulligan larga Sula e as três crianças, rouba um banco, indispõe-se com a ramificação mafiosa a que viera a pertencer, vê todas as suas posses e as suas contas bancárias colocadas automaticamente sob bloqueio eletrônico, vê-se acossado por insistentes celulares que tocam em todos os espaços disponíveis, rouba um carro, explode um hidrante, abalroa carroças do leite e táxis lerdos. Uma verdadeira caçada humana se desencadeia, com ele ao volante e Wilza cobrindo-o de socos, dizendo que ele é um estúpido e acaba de botar tudo a perder. Ele não sabe mais contra quem está combatendo, e se tivesse três braços poderia pilotar o carro, mantê-la sob controle, fuzilar com a submetralhadora os inimigos à direita e à esquerda, para que os carros convergissem todos numa só explosão.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

3593) "Grande Hotel Budapeste" (2.9.2014)



Wes Anderson usou as locações reais da cidade de Gorlitz (Alemanha) para realizar seu O Grande Hotel Budapeste (2014), em cartaz por aí. Mesmo assim, nas horas em que foi preciso, por exemplo, mostrar o abismo dos Alpes, o que entra na imagem é um painel pintado, tão antirrealista que parece uma página de livro infantil. Felizmente, este filme não pretende “passar uma sensação de realidade”.  Em termos de enredo e personagens achei-o menos denso e palpável do que Hugo Cabret de Scorsese (ambientado na mesma época) e mais coerente e focado do que o Dr. Parnassus de Terry Gilliam.  Este último é um ponto de referência interessante sobre Anderson. Há muito da imaginação visual torrencial de Gilliam. E algo daquelas suas histórias onde os personagens precisam cumprir uma missão, e escolhem o percurso mais cênico e movimentado, não necessariamente o mais rápido e mais discreto.

Não vi os outros filmes de Wes Anderson, então vou falar apenas deste. É uma dessas aventuras meio sofisticadas, com direção de arte primorosa, um roteiro vertiginoso e bem encaixado, para quem não for muito exigente. E sempre com um tom de comédia, aquela leveza que nos faz apenas lamentar com um oh a morte de um coadjuvante, e nada mais. Monsieur Gustave (Ralph Fiennes) é um gerente de hotel cheio de requintes e de recursos. Sua convivência com pessoas idosas de clãs multimilionários o envolve num caso de possível assassinato, desaparecimento de uma valiosa obra de arte, testamentos conflitantes, etc.  Melodrama puro, diluído naquela leveza de espírito de Amélie Poulain.

O universo é o que em literatura se convencionou chamar de “ruritânio”. A Ruritânia é um país europeu cheio de castelos, arquiduques, bosque, campos nevados. Sugerido em O Prisioneiro de Zenda (1894) de Anthony Fox, esse país imaginário tornou-se uma espécie de cenário de aluguel para histórias que não precisem da tecnologia de comunicação de hoje. Tecnologias com algo de moderno e algo de antiquado, ultimamente meio adotado pelos steampunk, onde convivem a espada e o revólver, o telefone e o cavalo.

Existe um charme na Europa entre 1870 e 1930, e as histórias ruritânias (mesmo quando a nação fictícia se chama “Zubrowka”, como neste filme) recuperam um pouco desse passado em que podemos fantasiar sem remorsos a vida dos muito ricos, suas estações de banho, seus hotéis de luxo, seus expressos do Oriente. A Europa de cem anos atrás nos parece tão charmosa, tão fotogênica. Comédias leves como esta nos fazem esquecer que ela está cheia de aposentos não abertos há anos, com coisas indescritas jazendo nas camas.