domingo, 23 de março de 2014

3454) Distrito Vermelho (23.3.2014)



Dioclécio (nome de fantasia para efeito do presente texto) me confidenciou isto durante um litro de Ballantine’s e um pato-ao-maracujá, no terraço do “Silverado”, uma palhoça à beira-mar onde um publicitário bem sucedido pode beber a sós com um escritor desempregado. O comercial deles concorria a um prêmio, na Europa. A agência bancou a ida dele e da esposa ao festival. Dois dias antes, a caçula dele teve uma pneumonia. A esposa, heroicamente, ofereceu-se para ficar, e ele iria buscar o prêmio dele.  Lá vai Dioclécio, sozinho, fora do Brasil pela primeira vez, para Amsterdam.

“Bebi menos e extrapolei menos do que planejei no voo de ida,” explicou ele. Para a maioria dos homens casados, a mera sensação de não estar sendo vigiado produz uma resposta eufórica de tal magnitude que se basta a si mesma.  As esposas deveriam relaxar e ver a novela. O máximo que 53,7% deles ousarão é ficar bêbados a sós num quarto de hotel.

Na primeira brecha lá vai Dioclécio para o Red Light District. “Fui ver as atrações típicas,” defendeu-se ele, “vi até o Museu Van Gogh!...”  Era uma madrugada de inverno dezembral, mortífero, matador. “Foi engraçado,” disse ele, “vi que ela era brasileira porque dançava legal, e tinha uma camisa da Seleção Brasileira na vitrine. Achei que lá dentro podia evitar o frio, que era de deixar o rosto da gente dormente, paralisado, meu Deus, que coisa.”

Um minuto depois Dioclécio estava dentro da cabine e tentava explicar à mulher que na verdade não pretendia manter relações com ela, ooops, mas sendo assim, ok, calma, tudo bem, claro, na boa, mas agora, agora que podemos respirar, será que ela sabe o quanto está sendo explorada? E ela lhe diz: “Conterrâneo, bem se vê que você nunca teve que dar pra não passar fome. Isso aqui é bom demais. Garantia estatal, fiscalização sanitária, pagamento garantido, e, vou te contar, aqui aparecem mais nerds deslumbrados do que serial-killers com problemas. Nunca trabalhei tanto, daqui a pouco vou ter que botar meia-sola, porque a demanda é impressionante. Volte pro Brasil e dê lembrança à ordem e ao progresso.”

Vejam como é bom frequentar o Primeiro Mundo! Dioclécio pegou o prêmio e voltou para casa, um novo homem, para viver uma nova vida. “É engraçado,” disse-me ele, “resolvi largar meu emprego justamente na hora em que aquela garota me deu de bandeja a melhor das desculpas para ele...”  Comprou um lugar na Serra, perto de uma cachoeira, começou a fabricar pão, a dar aulas de violão, e a família me parece muito feliz desde então; inclusive nunca mais a menina teve pneumonia.  Então de alguma maneira deve ter sido uma mudança positiva.


sábado, 22 de março de 2014

3453) A Ameaça Estranha (22.3.2014)



O universo da pulp fiction (policial, ficção científica, terror, fantasia, faroeste, guerra, aventura marítima, aventura com automóveis, romance de amor...) é vasto.  Tão vasto que nele floresceu uma planta exótica, como a orquídea-vampira imaginada por H. G. Wells: a história de “weird menace”, que poderíamos traduzir pobremente como “ameaça estranha”. É um subgênero limítrofe entre o policial e o terror, porque envolve uma história de crime, só que desencadeada por pessoas (e transcorrida em ambientes) que vêm diretamente do romance gótico ou daqueles seriados dos anos 1930 cheios de vilões exóticos, grotescos, mais próximos dos quadrinhos de super-heróis do que da literatura.

As revistas mais famosas especializadas (mas não exclusivamente) em histórias de weird menace foram Dime Mystery, Horror Stories, Terror Tales, Uncanny Tales... Era um mercado fértil, onde algumas revistas surgiam, ficavam no mercado alguns meses e sumiam para sempre.  A história básica do gênero envolve o herói, a mulher e o vilão, que é sempre excêntrico.  Pode ser um supercriminoso como tinham sido Fantomas e Fu Manchu, ou um cientista louco, um monstro de algum tipo. O vilão se apossa da mulher, às vezes do casal, a quem submete a sevícias, ameaças, etc.  E o herói, quase sempre um sujeito comum, precisa invadir o castelo ou a mansão sombria, acessar o porão ou o laboratório, matar as feras ou os zumbis que protegem o espaço, driblar as máquinas e as armadilhas espalhadas por toda parte, matar o vilão e resgatar a mocinha.

Algumas revistas de weird menace custam caríssimo hoje (vão de cem a mil dólares) no mercado de sebos nos EUA. Capas e ilustrações mostram, de modo reiterado, mocinhas seminuas (roupas rasgadas, pernas e seios à mostra) sendo submetidas a torturas, amarração, maus tratos, e sendo manipulada por monstros, mortos-vivos, etc.  São um capítulo importante na construção do imaginário sado-masoquista norte-americano, em que o sexo está associado a imagens de violência, sujeição, ameaça de tortura, deformações físicas, criaturas bizarras. O melhor estudo que conheço é The Shudder Pulps de Robert Kenneth Jones (Fax Collector’s Edition, 1975), que vale inclusive pela fartura de ilustrações em p&b, e tem capítulos com títulos saborosos como “The Defective Detective”, “From the Esoteric to the Erotic”, “Foul Fiends and Fair Maidens” e “Gothicism’s Last Gasp”. E de fato ela representou a última (até agora) encarnação da literatura gótica tipo terror + erotismo, como The Monk (1796) de M. G. Lewis ou o Manuscrito de Saragoça (1815) de Jan Potocki.


sexta-feira, 21 de março de 2014

3452) Rivaldo (21.3.2014)




Aposentou-se um dos melhores jogadores brasileiros dos últimos vinte anos.  Rivaldo está com 41, provavelmente não tem problemas financeiros, e se eu tivesse feito dez por cento do que ele fez já estava aposentado há muito mais tempo.  Rivaldo é um dos jogadores menos carismáticos que já ganharam finais de Copa ou foram eleitos o melhor do mundo.  Ele é aquele cara caladão, arredio, que não gosta de muito gracejo nem de muita conversa fiada.  Meio sertanejo nesse modo que parece carrancudo mas na verdade é só cauteloso, principalmente num meio em que os jogadores são obrigados a agir como garotos-propaganda de si mesmos, do time, da seleção, de um monte de produtos que os financiam. Rivaldo deve ter feito lá seus comerciais; todo mundo fez; mas não é propriamente aquele cara que um empresário perca o sono querendo associar a ele a sua marca.

Diz-se que Rivaldo não gostava de pagode, não bebia, não era de muita conversa, embora fosse correto e atencioso com os colegas. Jogadores assim se impõem quando há respeito técnico (em geral, quando um cara é craque todo mundo percebe) e um equilíbrio de convivências. Jogador extrovertido e risonho vai pro Cazaquistão sem falar nem inglês e se dá bem, fica amigo de todo mundo.  Já o carrancudo cria clima até na casa onde mora.

O futebol de Rivaldo tinha aqueles passes de cinquenta metros de Zezinho Ibiapino, de Gérson, de Falcão, uma matada de bola perfeita, um chute seco da entrada da área que ele botava onde queria. Ficou meio marcado na Seleção por algumas derrotas, ainda na fase olímpica, mas o que ganhou depois apagou tudo.  

Muitos jornalistas concordam que o maior jogador da Copa de 2002 não foi o craque oficial (Oliver Kahn) nem o artilheiro (Ronaldo), e sim o nosso macambúzio armador, que fez com frieza e talento alguns gols decisivos e facilitou gols alheios. Na final contra a Alemanha, machucado, teve parceria nos dois gols de Ronaldo. O que fez no Barcelona está preservado em DVDs e YouTubes.  Gosto de lembrar uma vitória por 3x2 no Nou Camp cheio, com três gols dele, o último no último minuto, de bicicleta. O mundo veio abaixo. Pensam que aquele barulho começou com Messi?

Rivaldo é como aqueles cantadores velhos que, quando o vento do mundo ficou mais frio, não fazem festa nem fazem despedida.  Sabem que o momento torrencial já passou e que não precisam se espremer até a última gota.  Quando sentem que não estão mais à altura da grande arte, quando sentem que a arte deles já está indo embora e eles ficando para trás, não avisam a ninguém, não querem homenagem, não querem incomodar ninguém. Quando chega o ano que vem, eles simplesmente não viajam mais.


quinta-feira, 20 de março de 2014

3451) "Trapaça" (20.3.2014)



(Amy Adams, Jennifer Lawrence, Amy Adams)

American Hustle (David O. Russell, 2013) é um desses filmes de golpe-sobre-golpe, em que dois ou mais grupos de criminosos (policiais, espertalhões, mafiosos, etc.) se misturam e cada pessoa começa a representar um papel duplo, e às vezes triplo, para que a cilada tenha sucesso, uma cilada que o espectador está e não está sempre a um passo de compreender por completo.  Feliz o filme que deixa nesse espectador a sensação de que o conseguiu.

Um golpista que deixa tão evidente sua tentativa de disfarçar a careca e a barriga que todo mundo se esquece de verificar seus dados. Uma inglesa que só falta dizer que é de London, Texas.  Um agente federal cheirado de pó até a raiz dos cabelos, trincado como uma explosão num cofre-forte, bolando esquemas rocambolescos para enjaular políticos corruptos usando vigaristas-em-xeque como isca. Uma loura burra que, a golpes de lourice e esperteza consegue acabar o mundo e melhorar de vida.

A história é em cima dos dois casais principais; entre os coadjuvantes estão Robert DeNiro e Jeremy Renner (de The Hurt Locker). Existem alguns filmes de golpe (de assalto a banco, p. ex.) onde o enredo é complicado como um mecanismo de relógio, e os personagens ficam parecendo robôs que entram, batem as horas e se afastam. Este aqui pertence talvez a um subgênero onde a história inteira (o golpe, a verossimilhança que o conto-do-vigário precisa ter aos olhos da vítima) depende de um mundo de pequenos detalhes, mas os personagens, em vez de recitarem os papéis direitinho, extrapolam, têm crises, arrependem-se, mudam de idéia ou têm uma idéia melhor em cima da hora, e isso joga o roteiro para o alto, em parafuso.

Outra coisa. O filme se passa em 1978, tem ambientação e figurinos ótimos de época, trilha sonora inevitavelmente pra-quebrar-tudo. Os seios das atrizes principais, Amy Adams e Jennifer Lawrence, são a cara daquele tempo pré-silicone, pré-Photoshop.  Mulheres daquela faixa não usavam soutien, tinham os peitos caídos, mostravam-nos sem mimimi e achavam-se lindíssimas. As duas fazem isso com brilhantismo. No mundo de hoje, regido por “personal musculators”,  peito caído é pior que passaporte vencido. Vivam os anos 1970, em que o culto ao corpo ainda não tinha arrastado todas as mulheres do mundo para uma Esparta regida por publicitários e fotoshopeiros. Neste filme, os figurinos das duas atrizes foram (aos meus olhos leigos, porém atentos) uma viagem em flash-back por aquela época, que cortejou o artificialismo mas teve uma surpreendente vitalidade. Um tempo em que as mulheres se expressavam mais dançando do que posando para retratos.



quarta-feira, 19 de março de 2014

3450) Senhores e escravos (19.3.2014)




(Frederick Douglass, 1818-1885)


Maîtres et Esclaves foi o título dado em francês ao nosso Casa Grande & Senzala (1933)  de Gilberto Freyre.  Um livro clássico e polêmico desde o início, remexendo nas camadas inconscientes e coletivas da civilização do açúcar, e reorientando discussões sobre escravidão e raça.  

Já li Freyre escondido de alguns amigos, para os quais ele era um burguês que negava a existência de racismo no Brasil.  Freyre era um burguês, sim, mas, como ele mesmo observa em O Camarada Whitman (1948), “burguês não no seu sentido marxista mas no francês, no flaubertiano, em que se contrapõem não burguês e proletário, mas burguês e artista”.  É medida do seu talento e de sua complexidade ter sido burguês e artista com intensidade igual.

Freyre descascou muitas camadas emocionais dos séculos de contato íntimo entre famílias brancas e escravos pretos. Citei dias atrás Joaquim Nabuco, em Minha Formação (1900), falando dos laços de afeto entre senhores e escravos. Naquele livro, Nabuco anota em seu diário, em 1877, durante sua estadia nos EUA: 

“19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por Frederick Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar a vida de aventuras que o levou até a ser ‘marshall’ em Washington e o grande orador da abolição que foi. ‘Vim antes de tudo,’ disse Douglass, ‘ver meu velho senhor, de quem estive separado quarenta e um anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida’”.

Nabuco diz que essa cena o comove mais do que A Cabana do Pai Tomás. A reconciliação entre o ex-escravo e o ex-dono, que ele não via desde os dezoito anos, se deu após a Guerra da Secessão e a emancipação dos escravos, quando Douglass já era escritor e orador famoso, e já tinha até se candidatado a vice-presidente dos EUA.  

E olha que, segundo os registros, o Capitão Thomas Auld, nos velhos tempos, entregou Douglass a um feitor tido como “amansador de escravos”, para meter a chibata no rapaz e fazê-lo desistir de ler e de discutir idéias. (Não conseguiu, claro.)

O episódio, que Nabuco considera “uma das mais profundas e penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão”, se deu no contexto de uma nação ensanguentada e partida ao meio por uma Guerra Civil que deixou quase 700 mil mortos. 

Parece que naquele momento valeu mais a pena, para ambos, deixar que as feridas cicatrizassem, e tentar reunir cidadãos de boa vontade para renegociar o futuro. 

A escravidão foi um crime que só deixou três respostas possíveis: a vingança, o perdão e a justiça.  Difícil é definir a natureza e a medida de cada uma.






terça-feira, 18 de março de 2014

3449) Bernard e Jean-Claude (18.3.2014)




Bernard Madoff é o cidadão responsável pela maior “pirâmide” financeira já desmascarada nos EUA, onde essa maneira de lesar os incautos se chama “Ponzi scheme”.  Madoff pegou bilhões de dólares de milhares de pessoas e de empresas, falou que estava aplicando e que iria pagar belos dividendos.  Quando alguém cobrava, ele tirava do “bolo” para pagar aquele cliente. O “pobrema” é que em casos assim o bolo vai ficando cada vez menor, e se uma certa quantidade de gente cobrar o seu ao mesmo tempo, a banca vai quebrar. A de Madoff quebrou em 2009. Ele fez desaparecer 65 bilhões em economias alheias, faliu milhares de clientes, e está cumprindo 150 anos de prisão sob o número 61727-054 numa cadeia na Carolina do Norte.

Madoff parece com um daqueles implacáveis “tycoons” em quem Philip Marlowe vive a tropeçar na Califórnia, mas muito mais parecido com ele é um personagem real, um francês chamado Jean-Claude Romand, que durante anos foi diante da família um médico que trabalhava na Organização Mundial de Saúde e todo dia deixava sua casa na França e cruzava a fronteira suíça. Romand vivia, na verdade, gastando as economias de seus amigos e parentes. A polícia descobriu que ele não era sequer médico, nem trabalhava em Genebra: ficava zanzando, passeando, lendo revistas médicas. As pessoas que lhe entregavam dinheiro começaram a querer o seu. Ele começou a ficar sem. E, no seu caso, desencadeou uma chacina familiar que ficou na história; há um livro e um filme, chamados O Adversário.  (Aqui, textos meus a respeito: http://tinyurl.com/mqahfyy, http://tinyurl.com/lfwqbzy)

Alguns bancos já faliram com meu dinheiro dentro, mas, felizmente, sempre deram um jeito de serem devorados por uma baleia confortável, e, quando precisei, meus caraminguás estavam intactos, felizes, abanando os andrajos na minha direção. Dois personagens: fico olhando o esquema faraônico de um e a tragédia shakespeariana do outro.  O fato de Romand ter podido ocultar seus trambiques da esposa, dos filhos, das autoridades, mostra que era um sujeito capaz de passar uma imagem de confiança, de serenidade. Ele não devia ser (a não ser na reta final da catástrofe) um sujeito que gaguejava, que caía em contradição. Madoff passou décadas enfrentando o mercado financeiro mais lupino do mundo, além da imprensa e dos advogados de Manhattan. Como durou tantos anos? A resposta: eram homens que infundiam confiança. Indivíduos acima de qualquer suspeita.

E na verdade tanto Bernard quanto Jean-Claude não são ninguém.  São apenas dois casos trágicos em que o Espírito do Nosso Tempo habitou um indivíduo inteiro de uma só vez, e o fez arder até o fim.


domingo, 16 de março de 2014

3448) Uns títulos (16.3.2014)



Quando Raymond Chandler lançou o romance The Little Sister em 1946 um amigo questionou alguma coisa a respeito do título, e ele respondeu, por carta: “Meu título pode não ser muito bom. É somente o melhor a que eu pude chegar sem forçar muito. Minhas idéias a respeito de títulos são meio peculiares.  Eles nunca devem ser provocativos de maneira óbvia, nem falar de assassinato. Devem ser bastante indiretos e neutros, mas o formato das palavras deve ser pouco usual. Não consegui isso, neste caso.  No entanto, como já disse um grande dono de editora, título bom é o título de um livro de sucesso.  Assim de improviso ninguém seria capaz de dizer que The Thin Man (O Homem Magro, de Dashiell Hammett) é um grande título.  O Falcão Maltês é, sim, porque tem rima e tem ritmo, e obriga a mente a fazer perguntas”.

Veja-se como ele se preocupa com a busca de uma certa sonoridade, refletida nessa rima interna “al-al” (“Maltese falcon”) no livro de Hammett.  O que Chandler não comenta, e até hoje nunca o vi tocar nesse assunto, é a curiosa simetria de alguns dos seus títulos, os que eu chamo “das dimensões”: The Big Sleep, The High Window, The Little Sister, The Long Goodbye.  Grande, alto, pequeno, longo. Ele usou isto quase com certo abandono, mas deixou claro que não era uma fórmula obrigatória, encaixando Farewell, my Lovely, The Lady in the Lake e Playback

Fórmula fixa mas rica em combinações: resquício da pulp fiction.  Os romances de Perry Mason, que ele tanto elogiava, tinham fórmula fixa: O Caso do X...... X...... (palavras com a mesma inicial).  Ellery Queen tinha sua famosa série de romances “nacionais”: O Mistério do Ataúde Grego, do Sapato Holandês, do Chapéu Romano, da Cruz Egípcia....  Cornell Woolrich tem dez ou doze livros com a palavra “dark” ou “black” no título. A fórmula testada quatro vezes por Chandler é mais sutil.  Ela se assemelha à da série de romances de John MacDonald em que cada título sugere uma cor.

The Lady in the Lake é um livro quase todo fora de Los Angeles, mas L. A. está toda no título.  É interessante que quando ele começou a escrever The Long Goodbye queria usar o título Verão em Idle Valley.  Parece um título de matéria-paga em revista náutica, mas Chandler provavelmente queria usar esse ambiente para contrastar com uma história sórdida e cruel.  Já o título de um dos seus contos, “No Crime in the Mountains” (“Nada de crime nas montanhas”), tem ritmo, quase rima, e soa parecido com uma multidão de outros, além de fazer a cabeça pensar: sim, mas se não houve crime, então o que é que há?  A tradução tenta manter a cadência interna típica do verso. Só que trocando as cinco sílabas do original por oito nossas.


sábado, 15 de março de 2014

3447) Pênalti perdido (15.3.2014)




Eu estava sentado com Zé Maguinho no Bar da Tripa. Eram treze horas pingantes de sol na moleira do tempo.  Na mesa à nossa frente a rapaziada veio depositando o isopor em forma de bala de canhão, as duas tigelinhas fumegantes de fava com charque, o limão recém-cortado, a pimenta boquinha, a pimenta lavareda, a farofa torrada, e as duas lapadas de Matuta que erguemos um para o outro com solenidade, fizemos tim, e vupt. 

O Brasil não sabe, mas Zé Maguinho é o maior craque surgido em Campina Grande depois dos abalos sísmicos da tal Copa de 2014, por uma série de razões, dali em diante os campeonatos regionais voltaram a ser os centros da atenção e da felicidade geral, pois quando um cara nasce pra ser torcedor nunca lhe falta alguém por quem torcer. Zé Maguinho, armador estilo clássico, foi tricampeão 2016-17-18 pelo Treze. Alto, magro, estilo de guerreiro zulu, lá no São José ele lembrava o saudoso Assis, e em Zé Pinheiro o saudoso Araponga. E dito isto, está dito o mais importante.

A gente tinha estudado juntos no Estadual, foi companheiro de farra, acompanhei a glória do tri e depois vibrei com a ida dele para o futebol russo, o mais rico do mundo. Agora ele estava de férias na Serra, e tínhamos marcado naquele bar, onde ninguém viria tietá-lo. A certa altura, perguntei pelos pênaltis. Comigo ele comentaria aquilo de peito aberto, o que não fez na imprensa internacional. 

Zé Maguinho tinha perdido dois pênaltis cruciais, jogando pelo “Racha-zaque”, como ele chamava o time dele. Batedor oficial do time, no jogo de ida da final perdeu um, no último minuto, com placar 0x0. “O time saiu de campo morto, mas foi leal comigo,” disse ele.  Na final, no domingo seguinte, um pênalte no começo do segundo tempo... e ele perde de novo. “Peguei muito embaixo”, foi só o que disse. O time jogava pela vitória. E antes do jogo acabar, novo pênalti. Zé Maguinho ofereceu a vez. Alguém bateu e fez o gol do título.

“Foi esse o que eu perdi de fato,” disse ele. “Sabe por que? Porque eu desisti de tentar. Li isso num livro: só se perde quando não se tenta.  Mas isso foi meses depois desse jogo.”  Brindamos e viramos outra lapada, que desceu cauterizando tudo. Zé Maguinho, irresponsável, maconheiro, raparigueiro, cuja única leitura era legenda de filme pornô, subiu pelas asas do futebol até um mundo de aeroportos e livros de auto ajuda.  E agora, diante de mim, produzia sua primeira interpretação filosófica do que lhe acontecera.   E era um cara de muita sorte, a quem a torcida local era grata, porque lá, por um pênalti só, já vi muito futuro craque ser amarrado e arrastado por uma Ferrari do estádio aos subúrbios, onde se larga o que restou dele.


sexta-feira, 14 de março de 2014

3446) Os dois escorpiões (14.3.2014)




(Josef Stálin, Bernard Madoff)

O Comunismo era um escorpião feito de ferro, cimento, vapor, eletricidade, com duzentos milhões de células humanas. Karl Marx dizia que o comunismo só poderia ser estabelecido num país plenamente desenvolvido e industrializado, como a Inglaterra ou a Alemanha de seu tempo.  Por uma dessas ironias da História, Lênin tentou implantá-lo na Rússia, o país mais vasto do mundo, e um dos mais atrasados, embora tivesse uma elite refinada, cavalheiresca e culta. Confirmando a advertência de Marx, não deu certo. Lênin morreu no meio do caminho e foi substituído por Stálin, um dos exemplos mais rematados de gangster que a história já conheceu.  Questionar o comunismo alegando Stálin é como questionar o Islã alegando Saddam Hussein. Se Marx tivesse visto a Revolução Russa teria ficado furioso com as liberdades filosóficas e partidárias tomadas por Lênin. Se visse Stálin, daria um tiro nos miolos.  Lênin tinha muitos defeitos (inclusive caretice poética e cinematográfica) mas era um pensador de verdade e um ativista de verdade, numa só pessoa.  Já Stálin era um Al Capone  canastrão, cercado de ghost-writers.  Como todo gangster bem sucedido, tinha faro de fera e olho de rapina quando se tratava de guerras ou de intrigas palacianas.  O Stalinismo começou a afundar com sua morte, mas só terminou quando caiu o Muro de Berlim.  O Comunismo (sua versão soviética) suicidou-se ritualmente por excesso de concentração, de centralização, de fechamento e colapso em black-hole.

Já o nosso confortável Capitalismo está morrendo por excesso de Liberdade, ou melhor, pela enorme plasticidade com que esta importante palavrinha se encaixa em qualquer discurso. A atual mega-crise financeira cujo abalo mais forte foi em 2008 parece ser uma combinação de filosofias de lucro a qualquer custo e lealdades a qualquer preço.  Não o espectro comunista, mas o fantasma da liberdade: “o mercado tem que ser livre”.  Ou seja, eu devo ser livre para mudar as regras do jogo que meu time está disputando.  Houve um desmonte programado de fiscalizações, atividades de agências reguladoras, trocas de poder, vitórias pirotécnicas de um grupo de investidores sobre outros. Na América, a terra natal do dinheiro eletrônico, isso virou um jogo, onde até mesmo os bilhões ficam em segundo plano. Mais importante do que ser rico é ter desempenho nesse complicado RPG, um game que esses grandes investidores praticam a sério. A URSS morreu de concentração centrípeta, os EUA vão morrer de espiral centrífuga.  O Capitalismo é um escorpião feito de néon, silício, LCD, vapor browniano e filamento incandescente de carvão.





quinta-feira, 13 de março de 2014

3445) Nota Onze (13.3.2014)



Li uma historieta certa vez em que um aluno, depois de fazer uma excelente prova subjetiva (com pequenas dissertações respondendo cada pergunta) queixou-se ao professor de ter ficado com a nota 9,5.  O professor respondeu: “Nove e meio significa que você acertou tudo. Pra tirar 10, você vai ter que me ensinar algo que eu não sabia.”  Eu diria que cada professor, por mais incompreendida que seja sua matéria (pense Física, pense Matemática) encontra de vez em quando um aluno que se destaca de todos os outros. No meio de quarenta da turma ou de quinhentos do colégio, ele chama a atenção pelo seu brilho numa matéria.  Em papo de sala dos professores, já vi um colega mostrando aos outros uma prova e dizendo: “Essa garota fez uma prova tão boa que eu tive vontade de dar onze. Um 10 me pareceu uma nota chocha.”

Você só se destaca naquilo onde você excede, e mais, naquilo que você excede por conta própria, por exuberância sua, e não por cobranças vindas de fora.  O aluno que faz uma prova impecável, toda respondida bem direitinho, leva para casa um 10 e acha que abalou.  Nem sempre.  Às vezes uma prova nota 10 nos deixa a sensação de que aquele aluno aprendeu apenas o necessário para acertar tudo, mas se a prova tivesse uma pergunta a mais ele talvez não soubesse respondê-la.

O ideal seria que todos os alunos tivessem um bom nível de entendimento e de aplicação, fizessem provas satisfatórias, etc. Nunca vai acontecer, principalmente num meio social irregular como o nosso.  E é bom que não aconteça. Prefiro os desníveis da vida real do que uma grande proficiência coletiva mas de forma robotizada, impessoal, onde todo mundo é aluno modelo mas é incapaz de ir além do que está sendo ensinado. O objetivo do ensino é jogar os alunos numa situação em que eles esqueçam “o que cai na prova” e aprendam mais do que seria necessário: só então vão surgir os que excedem.

O professor sabe reconhecer, entre os bons alunos (nem falo no restante), qual é aquele que está simplesmente na busca aplicada por uma boa nota, e aquele que está absorvendo o assunto da matéria por interesse próprio, por entusiasmo próprio. É esse que eu chamo de “Aluno Nota Onze”, porque muitas vezes ele, na excitação de pesquisar por conta própria, acaba trazendo aspectos da matéria que o professor não tinha abordado, trazendo problemas novos, propondo soluções diferentes. E não é raro esse papo de “o aluno ensinar algo ao professor”. Eu já ensinei coisas que professores meus conheciam menos do que eu; e quando professor fui ensinado por alunos que dedicavam àquele assunto mais tempo e mais energia do que eu.  É assim mesmo. É a respiração normal do ensino.