sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

3410) A Lolita de Dorothy (31.1.2014)




Falei há pouco tempo aqui (http://bit.ly/1bzHeCW) sobre um suposto plágio que Dorothy Parker teria cometido sobre a Lolita de Nabokov. Diz-se que ela teve acesso ao manuscrito, antes do livro ser publicado, e publicou na revista The New Yorker seu conto “Lolita”, onde ela fala de uma mãe viúva, uma filha desajeitada e um bom partido que se oferece como possível maridão.  

Li o conto; mais do que um plágio (como plagiar em dez páginas um romance de trezentas?) é um desses furtos casuais que os escritores fazem tantas vezes. “Gostei desta situação, esqueçam o resto, vou usar somente isto.”

O conto (aqui, no Scribd: http://bit.ly/1elNtLc) é sobre uma mulher prestes a perder o prazo de validade, e sua filha canhestra e antissocial. Aparece na cidade um tal John Marble, desassossegando os corações. A cidade inteira cai aos seus pés. John Marble escolhe quem? A desajeitada, angulosa e tímida Lolita, para desespero das rivais e mortificação ainda maior de sua mãe, que também estava no páreo.  

Diferentemente de Nabokov (que fala de homens o tempo inteiro), Dorothy fala somente das mulheres, numa história onde o homem é mero adereço, mero “prop” de estúdio, um dummy, um dildo, um dublê, uma função proppiana.  O contrário da história de Nabokov, que é uma explosão de testosterona míope, uma história trágica da derrota recíproca de dois machos em luta, enquanto a ninfeta é mero catalisador, desencadeia as catástrofes e as atravessa incólume sem nem se dar conta delas.

Charlotte Haze, a mãe da Lolita nabokoviana, se lesse aquele livro (se fosse capaz de ler aquele livro) nem saberia que era um daqueles personagens. Quando muito ficaria surpresa com a coincidência de nomes próprios e de alguns fatos externos.  Mrs. Ewing, a mãe-viúva da Lolita de Dorothy, vê a filha sem graça ser pedida pelo homem-sensação e consegue, como tantas heroínas femininas, destilar sua revolta com o destino, ser mãe-modelo, casá-la com John Marbles e ficar olhando as nuvens.

A única imprudência de Dorothy Parker foi dar à sua garota o mesmo nome da garota que vira no original datilografado de Nabokov.  Custava nada ter chamado a menina de Peggy Sue?  Seria menos literária por isso?  O caso todo é típico dos pedidos de empréstimo que autores fazem a idéias alheias, tipos alheios, estilos alheios, temas alheios, situações alheias.  Todo mundo faz isso.  O desafio é mostrar que o elemento pedido emprestado rendeu muito melhor no nosso texto do que no alheio. Ou pelo menos não ficou a lhe dever.  Talvez ela tenha deixado o nome “Lolita” como derradeira pista do que aconteceu, porque sem esse nome talvez nenhum de nós percebesse.








quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

3409) Não vai doer (30.1.2014)




Não sei se a parteira disse isto quando me puxou pelos pés (pois rezam as crônicas de família que eu nasci com os pés à frente, e talvez se deva ao esforço final para extrair minha cabeça a curiosa conformação craniana que ainda hoje conservo, e que minha mãe descrevia como “o casco de um cavalo” em relevo, como se um alazão tivesse dado um coice de dentro para fora da minha moleira, ou, como disse meu pai, “ele tem um burro no lugar que seria do juízo”), mas como havia ela de não dizer isto, quando é a primeira coisa que se deve dizer aos filhos nossos e alheios? Não vai doer, não doerá nem agora nem nunca, pode ir em frente de olhos fechados e peito aberto. Abra as narinas, os pulmões, o ar não vai doer, a luz também não; isso que você acaba de sentir é uma lâmina de fogo. Aprenda a andar, a falar, a ouvir, porque nada disso vai doer.

Não ligue para os joelhos ralados, o tornozelo torcido, a unha levantada, a mão desmentida, o cotovelo esfolado, o olho roxo, o lábio partido, a pele escoriada. A infância é indolor, basta entender que ela é rápida, mesmo que dure uma eternidade e meia. Nada na infância dói, nada doeu, tá vendo só, um sopro e a dor passa, um sopro e a vida passa, basta soprar que tudo vai embora, tudo se acaba antes de doer, chega-se a um limbo onde não há o que doa, e cada pessoa terá que fazer essa escolha entre a dor e o nada, entre o tudo e o nada, entre o ser e o nada, entre o ser e o não-ser, entre a dor do prazer e o nada-haver.

Difícil equacionar essas generalizações para um menino olhando o primeiro patinete, a primeira bola Drible, a primeira hora-do-recreio em território inimigo. A primeira bebedeira em campo minado. A primeira moça, o terrível primeiro não, o não-menos-terrível primeiro sim, a primeira impersonação das paixões alheias no seu real. Não vai doer, bradam os estatutos do adolescentes e a Constituição de 1988. Não vai doer, diz, quando o vulto se inclina de instrumento em punho, a voz arfante do torturador. Não dói, dizem as promessas sorridentes da ciência que recebe chapa branca e tarja preta. Não vai doer no seu bolso, prometem as euforias da Bolsa. Não vai doer, você é de metal, diz o iceberg ao Titanic.

Não dói. A civilização tem seus distritos industriais fabricando anestesias, senão ninguém dormiria devido aos uivos. É preciso dizer que não dói, quando sabemos que vai doer mesmo que não doa. É como a árvore que desaba mas não soa, ninguém há para ver, ninguém para lhe escutar, e somente onde não há ninguém onde doer também não há – o que temer. É só querer acreditar, é só decidir, porque ou não-vai-doer ou não há.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

3408) Auerbach em Istambul (29.1.2014)



Mimesis de Eric Auerbach (a edição brasileira é da Perspectiva, São Paulo, tradução de George Bernard Sperber) é um clássico dos estudos literários. Sua leitura equivale a um curso de literatura completo.  

Foi escrito quando o autor, durante a II Guerra, estava refugiado em Istambul. Já o comentei aqui (http://bit.ly/L9LZwE); é uma leitura atenta e detalhada de textos clássicos (Montaigne, Shakespeare, Homero, a Bíblia, Virginia Woolf, etc.) onde Auerbach vai de frase em frase desmontando e revelando as intenções, as técnicas e os efeitos obtidos pelo autor, além do “espírito da época”, o caldo cultural em que cada um estava mergulhado.

Um artigo de Kaya Genç na L. A. Review of Books (http://bit.ly/1aAC5Qz) mostra que Auerbach teve acesso à biblioteca de um mosteiro, em Istambul, graças a uma carta de recomendação do Cardeal Angelo Roncalli, o futuro Papa João XXIII. E ela comenta que os artigos acadêmicos publicados em turco por Auerbach no pré-guerra precisam ser retraduzidos hoje, porque o turco dos anos 1930 é ilegível para a população moderna. (E a gente preocupado com o português!)

A façanha intelectual de Auerbach foi produzir uma obra erudita, de literatura comparada e análise textual minuciosa, num livro de 500 páginas sem notas de rodapé, sem bibliografia. Ele próprio admitiu, no Epílogo, que se tivesse podido pesquisar à vontade todas as referências necessárias, talvez nunca tivesse chegado a escrever o livro.

Vejo amigos e colegas arrancando os cabelos porque a bendita Tese ou a famosa Dissertação estão empancadas enquanto eles “releem Barthes completo”, ou sei lá quem.  Nada contra ler Barthes; mas a produção intelectual acadêmica é de um imenso defensivismo, auto-protecionismo. O autor está se calçando de argumentos alheios para se defender, preemptivamente, das críticas dos seus pares: “faltou isso, ignorou aquilo...”  E as notas avalizadoras estão para o texto como os volantes estão para um time de futebol.

Eu sempre digo (a eles e a mim): dê uma de Auerbach em Istambul. Não precisa fazer uma varredura (ainda mais agora, de Google em punho!) em tudo que se publicou sobre o tema. Escreva com o que você sabe, escreva com o que você é.  Melhor do que se proteger contra as críticas é entrar de idéias novas em punho e fazer os críticos recuarem, e são eles que ficarão na defensiva. Uma afirmação intelectual sem fundamento é condenável; pelos mesmos motivos é condenável o acúmulo indefinido de fundamentos sem a coragem de fazer afirmações.  Teorizar é afirmar. Se o que você acha que conhece é insuficiente para embasar suas afirmações, não seja acadêmico.  Venha ser ficcionista.







terça-feira, 28 de janeiro de 2014

3407) Lima Barreto: o Motim (28.1.2014)



“O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava cercado por um grande magote de populares, à frente do qual, se movia um bando multicor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade.  Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da força e da fraqueza do populacho naquela ingênua arma. E por todo o caminho, este cenário se repetia.”

Não são as manifestações de 2013 no Rio e nas capitais; é o Rio de Janeiro, sim, mas o de um século atrás, o Rio da Revolta da Vacina de 1904, que Lima Barreto transformou na “Revolta do Calçado” no romance de 1909 Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Existe, na sucessão das gerações humanas, uma certa recorrência de padrões, uma certa semelhança de procedimentos, talvez porque só quando estamos envolvidos numa ação intensamente coletiva (um jogo de futebol, um show de rock, uma manifestação de rua) sejamos capazes de, sintonizados com a multidão, acessar uma memória coletiva que existe em todos e só emerge numa multidão de verdade.

“Da sacada do jornal,” diz Isaías Caminha, “eu pude ver os amotinados.” (Não, ele não fará menção à máscara de Guy Fawkes nem aos Black Blocs. Mas vejam que olho futurista o do escritor.)  “Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros, o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.”

E ele explica: “O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes, não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.”  Em 1909 não havia redes sociais, celulares, TV ao vivo, Rádio AM.  A tecnologia está sendo absorvida pelo modo-de-ser da multidão, e não o contrário.


domingo, 26 de janeiro de 2014

3406) Ler por prazer (26.1.2014)



Eu geralmente leio por prazer, o prazer antecipado de quem compra um livro já prevendo que vai gostar (pelo autor, pelo tema, etc.). Quando essa expectativa não se confirma, largo o livro e pego outro. Se não estou gostando, não forço. Isto não se aplica, é claro, às leituras de trabalho. Se quero um conto de Fulano numa antologia minha, geralmente leio um livro inteiro dele, 15 ou 20 contos, para escolher o mais adequado. Nem todos são bons, mas meu interesse ali é conhecer melhor Fulano, “sentir a mão” dele como escritor, avaliar suas qualidades e suas limitações.

Jorge Luís Borges tem um texto famoso sobre o prazer de ler, repetido em numerosas coletâneas.  Diz ele: “Fui professor de literatura inglesa por vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paraíso Perdido – para mim não é maçante – ou o Quixote – que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês.”

É engraçado, porque eu digo o contrário. Borges não falava no contexto brasileiro de hoje. Talvez seus alunos fossem obrigados a ler Sêneca e Ovídio no original, sem poder criticá-los.  Hoje, porém, a situação é outra. Os jovens são desestimulados ao esforço intelectual e empurrados para um entretenimento sem fim.  Deveria aparecer um Borges que lhes dissesse: “Galera, vocês estão fazendo poupança com dinheirinho de Banco Imobiliário. Quando precisarem, nada terão. Esse entretenimento passa sem deixar marcas, a não ser a resposta automática diante de clichês e de situações já conhecidas... E esse cansaço-prévio mental diante do novo, do diferente, do difícil.”

Não há resultado sem esforço, e a inteligência não brota espontaneamente, tem que ser cultivada pelo uso. Borges se preocupava com aqueles jovens argentinos que queriam, por exemplo, fazer teatro, mas seus professores os obrigavam a aprender grego para ler Ésquilo no original, senão não entenderiam o texto. Hoje, jovens montam Brecht ou Shakespeare sem os ler, leem adaptados para a linguagem moderna, uma diluição, uma versão resumida e mutilada “para ficar ao alcance de vocês”.  Fazem o teatro descer até o jovem, e com isso o jovem nunca subirá até o teatro. Sem esforço não há resultado. O prazer de ler não é uma adrenalina instantânea, é uma conquista, uma vitória pessoal de cada leitor sobre a própria insegurança e a própria preguiça.


sábado, 25 de janeiro de 2014

3405) Traduzindo Kafka (25.1.2014)



A nova tradução de A Metamorfose de Franz Kafka para o inglês já vem cercada daquelas discussões de minúcias que muitos leitores desdenham, mas quem traduz é capaz de passar ali a noite inteira. Isso se torna ainda mais interessante quando o original vem numa língua que a gente não conhece, como é o caso, pois Kafka, apesar de tcheco, escreveu sua obra literária em alemão.

A dificuldade tradutória já começa no título: Die Verwandlung, em alemão, não sugere uma mudança natural de estado como acontece com o termo inglês (e português) “metamorfose”. Não é algo espontâneo e/ou inevitável. É uma mudança inesperada.  A tradução de Susan Bernofsky é discutida nestes termos numa resenha de Rebecca Schuman na revista Slate (aqui: http://slate.me/1kqDJIq), onde a jornalista afirma que “Bernofsky chega tantalizantemente próxima de fazer o que nenhum tradutor conseguiu até hoje: obter uma tradução aproximada da 19a. palavra do texto, ‘Ungeziefer’.” 

O x do problema está nesse bendito Ungeziefer.  Kafka começa assim: “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.” 

“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto." 

Na tradução inglesa de David Wyllie, isto vira: “One morning, when Gregor Samsa woke from troubled dreams, he found himself transformed in his bed into a horrible vermin.”  

E a tradução de Bernofsky, agora, diz: “When Gregor Samsa woke one morning from troubled dreams, he found himself transformed right there in his bed into some sort of monstrous insect.”

Para a tradutora, a expressão “uma espécie de” (some sort of), ausente no original, sinaliza a falta de especificidade, proposital, de Kafka. Samsa não vira barata, como se diz por aí. Kafka não usou as palavras alemãs para inseto, percevejo, besouro ou barata (Insekt, Wanze, Käfer, Kakerlak).  “Ungeziefer” designa em Médio Alto Alemão, “criatura imprópria para sacrifício”, criatura impura, repulsiva, não-bem-vinda numa casa. Modernamente acabou sendo identificada com pragas domésticas, insetos de muitas pernas. É um termo não-específico, daí Bernofsky usar “uma espécie de”, que não aparece no original. (E que vem num contraste com o categórico “right there in his bed”, “bem ali na sua cama”).

Isto é apenas um exemplo de palavra em sua tradução popular e tradução literária.  No popular, “barata” é o bastante para dar uma idéia da história.  Para chegar, contudo, à fidelidade literária com o que disse o autor, é preciso às vezes subir a montanha dando voltas.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

3404) Ódromo (24.1.2014)






Pode-se contar a história de um idioma através das palavras que ele inventa quando precisa dizer algo pela primeira vez.  Isso vem desde a invenção da fala, então já estamos acostumados.  Uma coisa curiosa nesse processo são certos memes etimológicos, não sei se é este o termo, mas em todo caso – certas estruturas-de-formação-de-palavras-novas que se reiteram, se reproduzem.  Quando o Rio de Janeiro construiu a atual Passarela do Samba feita de concreto (substituindo as passarelas de armação desmontável que havia na Marquês de Sapucaí até o começo dos anos 1980), logo surgiu o nome “sambódromo”, dado (ao que parece) por Darcy Ribeiro. Não por semelhança ao hipódromo da Gávea, creio, mas porque na época o autódromo de Jacarepaguá vivia seus dias mais ruidosos.  (Também o nome da Praça da Apoteose, aliás, deve-se a um arroubo retórico de Darcy, numa de suas euforias criativas.)

Ódromo começou a significar “lugar adequado para tal coisa”.  Deve ter sido com o aumento das campanhas anti-fumo nos anos 1990 que cada escritório ou local de trabalho passou a ter um “fumódromo” onde os funcionários davam um tempo após cada cafezinho.  E Brasília inaugurou há algum tempo o Beijódromo, o Centro Cultural Darcy Ribeiro, o que mostra como um meme-palavra fica girando feito satélite em volta de um cara, até depois de morto.

Quando fizeram o camelódromo da Rua Uruguaiana sabiam que o fenômeno ia transbordar da Rua Uruguaiana, o que não imaginavam é que o nome fosse transbordar por cima de todo o Brasil.  Toda capital ou cidade de médio porte ou já tem um camelódromo, ou está construindo, ou ainda não sabe que precisa.

E foi aí que surgiu essa conotação guetorizante. Quando o pau quebrou e o fogo ardeu nas ruas do Rio ano passado, discutiu-se a sério a possibilidade de construção de um “manifestódromo” onde se poderiam realizar agitações daquele tipo.  Proposta prontamente avacalhada nas redes sociais.  E agora, devido ao impasse dos jovens paulistas que querem dar um “rolezinho” nos shopping centers, surge a proposta: “Vamos construir um rolezódromo!” 

Se a sugestão foi a sério ou por zoação, é irrelevante.  Ela me lembra a piada dos irmãos Marx, num filme em que procuram, desesperados, um documento. Groucho grita: “Procurem na casa ao lado!”. Alguém: “Mas não existe casa ao lado!”. Groucho: “Então mandem construir, e procurem nela!”.  No caso brasileiro, todo mundo percebe o paradoxo lógico de um lugar onde as pessoas são autorizadas a fazer coisas-sem-autorização.  É como uma gravura de Escher.   A questão não é o bizarro da idéia, é que existe gente capaz de pensar nisso a sério e de construir isso, se tiver a chance.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

3403) Os Refugiados do Tempo (23.1.2014)




O transmissor temporal o desintegrou e o recompôs dentro de poucos segundos. Ele não sentiu nada, talvez uma vertigem, uma sensação cega de estar caindo.  Veio uma queda de verdade, na verdade um cambaleio para o lado, como se o chão tivesse se inclinado. Apoiou-se na parede de metal da cabine. 

A porta se abriu. Um homem velho, num uniforme rasgado e sujo, gritou algo mandando-o sair. Ele cambaleou para fora. Era um galpão de tijolo, muito alto, larguíssimo, e ao longo da interminável parede enfileiravam-se cabines idênticas à que ele acabava de deixar.

Parou olhando. Teve tempo de perceber que de vez em quando uma das cabines se abria e um guarda apressava para fora uma pessoa tão desnorteada e cambaleante quanto ele. 

Outros homens, com uniformes diferentes, agora conduziam todos, aos empurrões, para uns veículos longos de metal, acorrentados em fila, grandes quase como galpões também, mas sobre rodas. Seguiram-se horas de sol, poeira, vento áspero, mas tudo aquilo ele absorvia em êxtase, numa excitação que o distraía dos solavancos, dos esbarrões daquela multidão apinhada. 

Um céu azul como lhe tinham prometido. Um sol amarelo e bravio como nunca imaginara existir.

Não falava as línguas dali, mas era forte e diligente, logo arranjou onde trabalhar, o que comer, como dormir. Achou um jeito de se comunicar. Quando perguntavam de onde vinha, mostrava os documentos da viagem e explicava que não lia ideogramas. 

Cruzava na rua com outros e não havia como não se distinguirem dos habitantes locais. Somente eles, os infiltrados, tinham aquela cara de fuinha, aquele olhar assustado, aquela agitação incessante de quem não pode pensar demais no que está fazendo, e ao mesmo tempo aquela maneira de ficar acariciando paredes, tocando em folhas de mato, acocorando-se diante das telinhas coloridas e ruidosas, com pena de dormir e parar de ver aquilo tudo.

A chuva martelava o teto corrugado do canteiro de obras e ele amava a chuva. Enrolava-se nos lençóis descorados, cheirava-os, feliz. Um dia teria um barraco só para si, conseguiria uma mulher. 

Claro que estava valendo a pena. Depois que os Tubos foram construídos e começou o êxodo, diziam os temerosos que se morria, que não se ia a lugar nenhum, que a propaganda de “Volte 100 Anos no Passado e Refaça Seu Futuro!” era para exterminar bilhões que disputavam a pouca água e a pouca comida em jogo. “Século 21... A Melhor Fronteira!”. 

Ele acendia no escuro a maquininha luminosa, olhava a própria foto, pensava, “sim, eu consegui, não estou morto, estou num mundo onde problemas pode ser resolvidos, onde tudo pelo menos é possível!”. E se deixava embalar pelo aguaceiro.




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

3402) O mulato Isaías (22.1.2014)



Isaías é um rapaz da Baixada Fluminense, gosta de ler, tem boas notas, quer tentar a carreira no Rio.  Consegue uma carta de recomendação para um deputado e vem. Na pensão, torna-se amigo de jornalistas, comerciantes. O tal deputado não se interessa em ajudá-lo. Logo as economias que trouxe se evaporam. Começa a passar fome. E ao mesmo tempo frequenta, parasitariamente, as noitadas dos amigos que “têm boas colocações”. Acaba sendo admitido como servente na redação de um jornal chamado “O Globo”. E aí começa a vingança: sua narração na primeira pessoa destrói moralmente o jornal, os jornalistas, a imprensa carioca, a política brasileira.

Diz-se que Lima Barreto fez de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) uma provocação ao Correio da Manhã de Eduardo Bittencourt (O Globo, de Irineu Marinho, só viria a ser criado em 1925).  Típico das muitas atitudes murro-em-ponta-de-faca do autor, o livro, que desmascarava a imprensa carioca, foi ignorado pela imprensa carioca.  É um livro cruel pelo modo quase monocórdio como o jovem Isaías, servindo cafezinhos, enchendo tinteiros, fazendo mandados, ridiculariza a pompa e a fatuidade de jornalistas abonados, muitos dos quais leram menos e conhecem menos do que o mulatinho do café.

Isaías sobe profissionalmente – tendo que levar um recado urgente ao dono do jornal, ele o surpreende num bordel, e desse dia em diante o dono começa a tratá-lo bem, fazer-lhe agrados (certamente temendo uma chantagem), até promovê-lo a jornalista.  E Isaías, que sonhava em fazer carreira intelectual nas letras e tornar-se doutor, acaba se transformando numa daquelas cavalgaduras engravatas que tanto ridicularizou.

O jornalismo e a literatura do Brasil estão repletos de antas semi-alfabetizadas, que estão somente um degrau acima do embrutecimento mental dos seus leitores, mas criam um sistema de elogios mútuos que os mantém à tona.  Isaías percebe isso e não perdoa.  Torcemos pelo mulatinho de periferia, mas ele próprio não nos poupa seu ressentimento (a cada capítulo aumenta o seu lado “não confiável” como narrador), sua inveja, seu desprezo; e quando parece que vai escorregar no maniqueísmo, ele se transforma naqueles que despreza.  O fato de ter escapado dali (são recordações, redigidas muitos anos depois) lhe dá o equilíbrio necessário para evocar aquilo tudo e poder ver à distância seus erros tanto quanto os dos outros.

Isaías Caminha é um livro brasileiro sem esforço, e atual, com sua imprensa mantida às custas de propinas políticas, suas manifestações de rua, seus intelectuais da indústria do entretenimento, suas questões mal resolvidas de raça e de classe social.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

3401) "A Química do Mal" (21.1.2014)



Está passando na TV aberta, desde esta semana, o seriado A Química do Mal (TV Record), que nada mais é do que o famoso Breaking Bad que no ano passado encerrou uma carreira vitoriosa de seis temporadas na TV norte-americana.  A conquista mais recente foi na entrega dos Globos de Ouro, em que ganhou o prêmio de melhor série dramática, e o ator principal, Bryan Cranston, o de melhor ator.

BB é uma excelente série de TV, e minha única preocupação é que seus fãs mais entusiasmados fazem um escarcéu tão grande (“A melhor série de TV de todos os tempos!”, etc.) que o pessoal começa a assistir esperando ver algo transcendental e se logo se decepciona.  Elogios entusiasmados trabalham contra, muito mais do que se pensa. Criam uma expectativa fantasiosa, que nunca se realiza.  A gente fica esperando algo que vai transformar nossa vida, alterar todos os nossos parâmetros de qualidade artística. Aí, vê uma série de TV muito boa... e sai dizendo: “Que série fraquinha!”.

Não costumo ver séries, de modo que minha avaliação não é comparativa, falo apenas do impacto pessoal.  É uma série policial, basicamente realista (com alguns momentos de grotesco e de bizarro, principalmente na primeira metade), cujo enredo é simples o bastante para manter uma história compacta, coesa, e ao mesmo tempo permite reviravoltas, pois a história completa da série acontece ao longo de uns três anos, acho, da vida dos personagens.  Existem transformações notáveis de personalidade, para melhor e para pior, os atores são bons, inclusive os eventuais.  Tem crime, droga, violência, mas é uma série de situações de suspense, e de longas e sofridas decisões morais, mais do que uma série de tiroteios.  Os tiroteios são poucos e cirúrgicos. Há muitos crimes cruéis, alguns deles menos por sadismo do que por incompetência do assassino.

O professor de química, todo nerd, todo bundão, de repente se transforma num cientista louco e logo depois num líder de gang.  Walter White é o médico e o monstro nessa história de descida aos infernos.  A ambientação em Albuquerque (Novo México) dá um perfil único à história e ainda fornece uma cidade pequena o bastante para certas coincidências não serem tão espantosas.  Nas duas primeiras temporadas a série usa uma imaginação selvagem e bizarra, quase de filme dos irmãos Coen ou de romance de Bolaño; depois vai se fechando em thriller policial e psicológico mais realista, tipo Dennis Lehane. Trama e diálogos geralmente são muito bons, não sei como vai ser a dublagem. O subtítulo A Química do Mal é desajeitado, mas é um preço a se pagar pela manutenção do nome original, para não haver dúvidas.