Isaías é um rapaz da Baixada Fluminense, gosta de ler, tem boas notas, quer tentar a carreira no Rio. Consegue uma carta de recomendação para um deputado e vem. Na pensão, torna-se amigo de jornalistas, comerciantes. O tal deputado não se interessa em ajudá-lo. Logo as economias que trouxe se evaporam. Começa a passar fome. E ao mesmo tempo frequenta, parasitariamente, as noitadas dos amigos que “têm boas colocações”. Acaba sendo admitido como servente na redação de um jornal chamado “O Globo”. E aí começa a vingança: sua narração na primeira pessoa destrói moralmente o jornal, os jornalistas, a imprensa carioca, a política brasileira.
Diz-se que Lima Barreto fez de Recordações do Escrivão
Isaías Caminha (1909) uma provocação ao Correio da Manhã de Eduardo
Bittencourt (O Globo, de Irineu Marinho, só viria a ser criado em 1925). Típico das muitas atitudes
murro-em-ponta-de-faca do autor, o livro, que desmascarava a imprensa carioca,
foi ignorado pela imprensa carioca. É
um livro cruel pelo modo quase monocórdio como o jovem Isaías, servindo
cafezinhos, enchendo tinteiros, fazendo mandados, ridiculariza a pompa e a
fatuidade de jornalistas abonados, muitos dos quais leram menos e conhecem
menos do que o mulatinho do café.
Isaías sobe profissionalmente – tendo que levar um recado
urgente ao dono do jornal, ele o surpreende num bordel, e desse dia em diante o
dono começa a tratá-lo bem, fazer-lhe agrados (certamente temendo uma
chantagem), até promovê-lo a jornalista.
E Isaías, que sonhava em fazer carreira intelectual nas letras e
tornar-se doutor, acaba se transformando numa daquelas cavalgaduras engravatas
que tanto ridicularizou.
O jornalismo e a literatura do Brasil estão repletos de
antas semi-alfabetizadas, que estão somente um degrau acima do embrutecimento
mental dos seus leitores, mas criam um sistema de elogios mútuos que os mantém
à tona. Isaías percebe isso e não perdoa. Torcemos pelo mulatinho de periferia, mas
ele próprio não nos poupa seu ressentimento (a cada capítulo aumenta o seu lado
“não confiável” como narrador), sua inveja, seu desprezo; e quando parece que
vai escorregar no maniqueísmo, ele se transforma naqueles que despreza. O fato de ter escapado dali (são
recordações, redigidas muitos anos depois) lhe dá o equilíbrio necessário para
evocar aquilo tudo e poder ver à distância seus erros tanto quanto os dos
outros.
Um comentário:
E viva a revolta do sapato!
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