quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

3409) Não vai doer (30.1.2014)




Não sei se a parteira disse isto quando me puxou pelos pés (pois rezam as crônicas de família que eu nasci com os pés à frente, e talvez se deva ao esforço final para extrair minha cabeça a curiosa conformação craniana que ainda hoje conservo, e que minha mãe descrevia como “o casco de um cavalo” em relevo, como se um alazão tivesse dado um coice de dentro para fora da minha moleira, ou, como disse meu pai, “ele tem um burro no lugar que seria do juízo”), mas como havia ela de não dizer isto, quando é a primeira coisa que se deve dizer aos filhos nossos e alheios? Não vai doer, não doerá nem agora nem nunca, pode ir em frente de olhos fechados e peito aberto. Abra as narinas, os pulmões, o ar não vai doer, a luz também não; isso que você acaba de sentir é uma lâmina de fogo. Aprenda a andar, a falar, a ouvir, porque nada disso vai doer.

Não ligue para os joelhos ralados, o tornozelo torcido, a unha levantada, a mão desmentida, o cotovelo esfolado, o olho roxo, o lábio partido, a pele escoriada. A infância é indolor, basta entender que ela é rápida, mesmo que dure uma eternidade e meia. Nada na infância dói, nada doeu, tá vendo só, um sopro e a dor passa, um sopro e a vida passa, basta soprar que tudo vai embora, tudo se acaba antes de doer, chega-se a um limbo onde não há o que doa, e cada pessoa terá que fazer essa escolha entre a dor e o nada, entre o tudo e o nada, entre o ser e o nada, entre o ser e o não-ser, entre a dor do prazer e o nada-haver.

Difícil equacionar essas generalizações para um menino olhando o primeiro patinete, a primeira bola Drible, a primeira hora-do-recreio em território inimigo. A primeira bebedeira em campo minado. A primeira moça, o terrível primeiro não, o não-menos-terrível primeiro sim, a primeira impersonação das paixões alheias no seu real. Não vai doer, bradam os estatutos do adolescentes e a Constituição de 1988. Não vai doer, diz, quando o vulto se inclina de instrumento em punho, a voz arfante do torturador. Não dói, dizem as promessas sorridentes da ciência que recebe chapa branca e tarja preta. Não vai doer no seu bolso, prometem as euforias da Bolsa. Não vai doer, você é de metal, diz o iceberg ao Titanic.

Não dói. A civilização tem seus distritos industriais fabricando anestesias, senão ninguém dormiria devido aos uivos. É preciso dizer que não dói, quando sabemos que vai doer mesmo que não doa. É como a árvore que desaba mas não soa, ninguém há para ver, ninguém para lhe escutar, e somente onde não há ninguém onde doer também não há – o que temer. É só querer acreditar, é só decidir, porque ou não-vai-doer ou não há.



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