terça-feira, 28 de janeiro de 2014

3407) Lima Barreto: o Motim (28.1.2014)



“O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava cercado por um grande magote de populares, à frente do qual, se movia um bando multicor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade.  Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da força e da fraqueza do populacho naquela ingênua arma. E por todo o caminho, este cenário se repetia.”

Não são as manifestações de 2013 no Rio e nas capitais; é o Rio de Janeiro, sim, mas o de um século atrás, o Rio da Revolta da Vacina de 1904, que Lima Barreto transformou na “Revolta do Calçado” no romance de 1909 Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Existe, na sucessão das gerações humanas, uma certa recorrência de padrões, uma certa semelhança de procedimentos, talvez porque só quando estamos envolvidos numa ação intensamente coletiva (um jogo de futebol, um show de rock, uma manifestação de rua) sejamos capazes de, sintonizados com a multidão, acessar uma memória coletiva que existe em todos e só emerge numa multidão de verdade.

“Da sacada do jornal,” diz Isaías Caminha, “eu pude ver os amotinados.” (Não, ele não fará menção à máscara de Guy Fawkes nem aos Black Blocs. Mas vejam que olho futurista o do escritor.)  “Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros, o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.”

E ele explica: “O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes, não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.”  Em 1909 não havia redes sociais, celulares, TV ao vivo, Rádio AM.  A tecnologia está sendo absorvida pelo modo-de-ser da multidão, e não o contrário.


Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom! Aproveito para recomendar uma outra leitura sobre o Lima:
http://www.pr.anpuh.org/resources/anpuhpr/anais/ixencontro/comunicacao-coordenada/dialogos%20impertinentes%20historia%20arte%20e%20literatura/ClovisGruner.htm